sexta-feira, 8 de março de 2013

ARTIGO DA DRA. NATHÁLIA DE JESUS: Princípios e diretrizes do SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Lei 11.343 de 23 de Agosto de 2006)



Breves apontamentos acerca das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas

Nathália de Jesus


São inúmeras as questões polêmicas a serem trazidas para reflexão dentro desse tema, haja vista da incapacidade por parte do Legislador em fazer-se totalmente claro e coerente em todos os dispositivos legais e também do desencontro entre o que é estabelecido em lei e o que é executado na prática. As respostas, contudo, não serão definitivas, por conta da necessidade de uma análise de caráter subjetivo dos assuntos abordados.

A Lei 11.343/2006, antes de adentrar propriamente na matéria penal, versa sobre a política a se tratar as questões relacionadas ao tema dos tóxicos, criando o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Algumas observações devem ser feitas no que tange aos princípios e diretrizes estipulados por esse sistema.

O primeiro ponto a ser observado é a tentativa inovadora de desmistificação do tabu que envolve a questão das drogas. O sentimento comum é de estigmatização negativa, considerando o usuário de drogas como uma pessoa impura, a ser discriminada. O intuito da Lei, entretanto, é claro no sentido de que a droga deve ser discutida como um problema de saúde pública e não como um conflito moral.

A título de comparação, o Código Penal de 1890 trazia, ao tratar dessa questão, a tipificação objetiva: “ministrar a venda de substância venenosa sem permissão legal”. De tal sorte, não é de fácil compreensão, através de análise histórica, o motivo pelo qual houve uma distorção do caráter negativo do uso de drogas no sentido de apontar como falha moral e não como problema de insalubridade, este muito mais grave e de responsabilidade estatal.

 Em caráter concreto, as finalidades expressas da Lei de Tóxicos são:

  • prevenir o uso indevido (artigo 3°);
  • reinserir na sociedade o usuário e o dependente;
  • reprimir o tráfico de drogas. 


É comum encontrar na doutrina a classificação dessa lei como sendo bifronte: trata com certa misericórdia os usuários e com grande repressão os traficantes. Faz sentido, mas o mundo das drogas não se divide em usuários e traficantes,  tão somente. Há uma imensa gama de sujeitos que figuram em ambos os polos. Desse fato surge a questão: tais sujeitos são passíveis de qual finalidade da lei? A legislação não responde tal indagação, que se torna uma questão a ser refletiva e resolvida modernamente pelo Poder Judiciário, mais uma vez na posição de aperfeiçoar falhas do Poder Legislativo.

Há uma interpretação díspar entre os Tribunais no tocante a finalidade primordial da lei e dessa questão dos sujeitos. O dispositivo legal mais claro quanto à compreensão do problema da droga como sendo questão de saúde pública é o artigo 19, VI, que dispõe como diretriz:

“ O reconhecimento do “não-uso”, do “retardamento do uso” e da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza preventiva, quando da definição dos objetivos a serem alcançados;”.

 Isso é algo positivo, sob essa perspectiva, porque se esclarece que a questão moral fica de fora, tratando o tema com objetividade, o que nos leva a crer que os sujeitos que figuram em ambos os polos (usuário e traficante) devem ser tratados com a objetividade pertinente, no sentido de não excluir a responsabilização penal mas também agregar a ela atividades de reinserção social e tratamento de dependência.

Outro aspecto polêmico é o entendimento equivocado por parte da doutrina de que a lei buscaria a repressão total do tráfico e uso de drogas. Jesús María Silva Sánchez afirma ser impossível reprimir o crime de maneira absoluta, mas que se deve controlar a incidência criminosa, aceitando que a racionalização é mais viável e provável que a ideia de esgotamento das atividades criminosas.

Sob essa premissa, a lei reconhece o não uso como objetivo desejável, portanto. Isso para evitar a insalubridade que a droga traz ao corpo humano, inclusive através da ideia do retardamento do uso (atualmente, a idade de início no uso de drogas é de 12 anos. A lei tenta retardar essa faixa).

Também há a ideia de redução de risco, como é o caso da distribuição de seringas descartáveis. Há quem diga que seria incitação ao crime, mas não o é, porque a pessoa que deseja fazer uso de tóxicos o faria de qualquer maneira, sendo essa prática viável para evitar doenças transmissíveis pelo sangue. Outro exemplo é a campanha pela redução do uso de crack,  droga pesada, “estimulando” as pessoas a fazerem uso de drogas menos lesivas que, portanto, arriscariam menos a vida humana. Um exemplo prático dessa iniciativa é o do próprio crime organizado, em que os comandos criminosos estipulam que seus “chefes” não podem fazer uso dessa droga, para que continuem com a saúde intacta.

 O respeito à diversidade e especificidade populacional existente é outra diretriz interessante, tratada no inciso V do artigo 19.  A ideia é que o Estado deve estar ciente das particularidades sociais: o Brasil é um país muito diferente e a cultura também. Nas favelas, por exemplo, a ideia de que drogas fazem mal à saúde não é de conhecimento geral ( também por isso o índice de uso é bem maior nessas áreas). Uma pessoa que não tem acesso à saúde pública jamais irá respeitar a saúde pública.

O inciso IV do mesmo artigo traz  também a atividade de promoção de consensos nacionais e de ampla participação social nas estratégias para prevenir e reprovar a droga. Contudo, a população não se deixa convocar, por conta de nossa evolução política e de uma cultura que se desenvolveu de maneira ditatorial e com uma falsa democracia. A sociedade brasileira aceita o paternalismo estatal como algo natural, confortável. O Estado resolve tudo e ninguém se insurge contra suas decisões abusivas, jogando “a bola pra frente” e deixando-o com o poder de determinar políticas e posturas que na verdade deveriam ser matéria de decisão da sociedade como um todo. Todos estão preocupados, mas ninguém faz nada: nós nos desempoderamos e esquivamos dessas questões pertinentes.

Outras medidas de prevenção e repressão deixam ainda mais claro o posicionamento legal no sentido da questão dos Tóxicos ser de (in)salubridade: o artigo 23 estabelece que as redes de saúde de todos os entes federativos devem possuir centros de tratamento especializado ao usuário e dependente, o que na prática não acontece. Existe um número de pessoas muito grande que procuram a Defensoria Pública para reivindicar a concretização desse dispositivo legal. Esse tipo de tratamento só existe depois da prisão já efetuada: o Estado só age quando se pratica um crime,  ou seja, não de maneira preventiva, só repressiva. Isso não faz sentido e existe uma absoluta imobilização dos que deveriam tratar disso para obrigar o cumprimento dessa previsão legal, porque a lei garante como direito dos usuários esse tipo de centro de tratamento.

Por fim, o artigo 26 dispõe que o dependente ou usuário que estiver cumprindo pena ou medida de segurança terá direito a um acompanhamento para ser reinserido e tratado, o que também não ocorre na prática. Nas prisões, é mais fácil obter drogas, muitas vezes, que fora delas.

Essas dissonâncias entre a letra da lei e a realidade prática nos fazem questionar a eficácia desses dispositivos e o próprio SISNAD, por conta da falta de interesse do Poder Público em aplicar as medidas legais. Entretanto, é de extrema importância social o enfrentamento dessas questões e a mobilização da sociedade no sentido de garantir os direitos aos dependentes químicos  e a devida aplicação da lei.




Advogada

Graduada em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Pós-graduanda em Direito Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus.


Nenhum comentário:

Postar um comentário