Como o senhor define os crimes de opinião?
A doutrina considera crimes de opinião todos aqueles praticados com abuso do direito de liberdade de expressão. Segundo a lição tradicional, a calúnia e a incitação ao crime são delitos de opinião.
No meu livro, todavia, dou um conceito diferente para crimes de opinião. Denomino crimes de opinião apenas os delitosmeramente de opinião, quer dizer, as manifestações que configuram defesa, ou elogio, de um fato, teoria, ou ideia (apologia de crime, por exemplo). Assim, a calúnia e a incitação ao crime não são delitos meramente de opinião, pois não constituem defesa ou elogio de fato, teoria ou ideia. A importância prática dessa diferença é que os crimes meramente de opinião são, para mim, inconstitucionais, enquanto os outros não. Numa democracia é preciso garantir o pluralismo de ideias, a tolerância de opiniões e um amplo diálogo.
O que vem a ser o princípio da ofensividade?
O princípio da ofensividade, no âmbito do direito penal, é a exigência de que só seja considerado crime o ato humano que provoque dano a algum bem jurídico. Existem duas máximas que o definem: nulla lex (poenalis) sine necessitate (não deve haver lei penal sem necessidade) e nulla necessitas sine iniuria (não há necessidade sem ofensividade).
Aplicado aos crimes de opinião, significa que só pode ser considerada criminosa a manifestação que violar a vida privada, a intimidade, a honra e a imagem das pessoas.
Como definir o perigo concreto de lesão?
Um ato é gerador de perigo concreto se puser em perigo de lesão determinado bem individual ou coletivo, o que precisa ser provado. Vejamos um exemplo. No Código de Trânsito Brasileiro está previsto o seguinte delito: "Art. 306: Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Esse é um crime de perigo abstrato, pois não é necessário provar qualquer perigo de dano a qualquer bem jurídico para que o seu autor sofra a incidência da sanção penal. Já o delito previsto no art. 309 diz: "Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida permissão para dirigir ou habilitação, ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano." Neste caso, a lei exige que fique provado que o autor, ao dirigir sem habilitação, provocou perigo de dano. Se alguém for pego dirigindo sem habilitação, sem ter provocado qualquer perigo a algum bem jurídico, não haverá crime (há uma infração administrativa). Mas se estava dirigindo sem possuir carteira e quase atropelou um pedestre (perigo de dano à vida de outrem), houve delito.
Qual a problemática envolvendo a questão da incitação?
Eu entendo que a incitação ao crime não constitui mera manifestação do pensamento, dessa forma não está protegida pelo direito de liberdade de expressão. Ainda que a incitação não gere perigo concreto de dano, ela pode ser penalizada, pois, no Brasil, a Constituição Federal não disse, claramente, que o legislador apenas poderia considerar crimes atos que produzam dano ou perigo concreto de dano.
Já em relação à apologia de crime, o raciocínio é outro, pois a apologia é a defesa ou elogio de algo ou alguém. Fazer apologia não é o mesmo que incitar. Tão clara é essa diferença que o próprio Código Penal criou tipos diversos ao criminalizar a apologia de crime (art. 287) e a incitação ao crime (art. 286). Se fossem a mesma coisa, não teriam sido tratadas em artigos diferentes.
Ademais, a defesa ou elogio de um ato, pessoa, ideia ou teoria, constitui exercício regular do direito de liberdade de manifestação do pensamento. É um direito fundamental previsto expressamente no art. 5º, incisos IV e IX da Constituição Federal de 1988. Assim, não pode o legislador criminalizar algo que a Constituição autoriza.
O senhor acredita que o STF, no caso da marcha da maconha, abriu um precedente acerca da crítica à legislação? Qual seu entendimento?
Eu assisti ao julgamento, pela TV Justiça, da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental na qual o STF liberou a realização de marchas que defendam a legalização de drogas ilícitas. Lembro-me do Min. César Peluzo dizendo que vedar a realização das referidas marchas era uma forma de impedir a crítica pública à legislação penal, contribuindo para que essa fique "engessada", o que não pode ser admitido num Estado Democrático de Direito. O legislador pode alterar as leis, principalmente para corrigi-las e melhorá-las.
Não tenho dúvida de que a decisão do STF constitui um excelente precedente no sentido de que todos podem criticar publicamente a legislação penal, inclusive o próprio cidadão. Qualquer pessoa tem o direito de apontar falhas na legislação penal e pedir que sejam corrigidas.
Por outro lado, o direito de criticar a lei penal acompanha o de defender ou elogiar fatos que sejam criminosos. Se, por exemplo, o uso de determinada droga não deve ser crime, é preciso dizer o motivo. E isso vai requerer a defesa ou o elogio do uso, que é um crime. Mas esse direito deve valer para qualquer crime, até por uma questão de coerência.
O que vem a ser o risco de concordância?
A apologia (defesa ou elogio) de crime ou do seu autor, não produz, por si só, qualquer dano a terceiro. O efeito imediato da manifestação pública de um pensamento é que outras pessoas, indeterminadas, irão ter contato com ele. A partir daí, concordarão ou não com aquele que se manifestou. Para que isso acarrete um aumento do risco de violação de um bem jurídico são necessários outros fatores, tais como: 1) a influência social da pessoa que manifestou o pensamento; 2) o meio pelo qual foi transmitido; 3) qual o ato que se defendeu ou elogiou.
Imaginemos que um famoso ator de cinema diga, num canal de televisão, que o estupro é útil à sociedade. A maioria dos telespectadores certamente não irá concordar com ele, pois o estupro é considerado algo abominável por quase todo mundo. Pode ser que algumas pessoas concordem com o ator, mas mesmo assim elas não irão praticar estupros, simplesmente para não sofrer as sanções penais previstas em lei (bastante graves, inclusive).
Porém, há o risco de que alguém, além de concordar com tal opinião, resolva praticar o crime, vindo a alegar, depois de preso e condenado, que se sentiu estimulado pela manifestação pública do primeiro. Esse risco, embora teoricamente exista, não é suficiente para proibir a manifestação inicial do ator, que defendeu tal conduta, pois na nossa vida diária muitos outros atos perigosos são permitidos, como dirigir, praticar artes marciais, vender facas, comercializar produtos venenosos, etc. E proibir alguém de se manifestar dificulta a discussão sobre a injustiça das leis penais.
O que o senhor acha do crime de incitação? Tem alguma sugestão para o caso?
Eu concordo que a incitação ao crime possa ser punida criminalmente, pois não constitui mera manifestação do pensamento. Constitui algo a mais, um plus, que é justamente provocar outras pessoas a praticar um ato criminoso.
Contudo, seria melhor que fosse exigida, por lei, a prova de que determinada incitação gerou perigo concreto de dano. Pode ser que o meio utilizado torne-a incapaz de produzir qualquer risco à segurança (incitação escrita na parede do muro de um beco sem movimentação).
Como a liberdade de expressão em relação ao racismo é disciplinada no direito norte americano?
Segundo Alexis de Tocqueville, não há país que reflita melhor o dogma da soberania popular do que os Estados Unidos, onde cada indivíduo constitui uma porção igual do soberano e participa igualmente do governo do Estado. Cada um é julgado tão esclarecido, tão virtuoso, tão forte quanto qualquer outro dos seus semelhantes. A consequência disso é que toda opinião, por mais absurda que possa parecer, pode ser externada.
O norte-americano dá muito valor à liberdade de expressão. A liberdade individual é muito valorizada, desde a fundação das 13 Colônias, pois lá é o povo quem governa, não uma classe ou minoria mais esclarecida. Houve um personagem recente da história americana, o médico Jack Kevorkian, que auxiliou várias pessoas a cometer suicídio (sofriam de doenças degenerativas ou muito dolorosas e não queiram viver), vindo a ser condenado por uma das mortes. Após cumprir pena ele se candidatou a um cargo legislativo e fez campanha defendendo o direito ao suicídio assistido. No Brasil o auxílio ao suicídio é crime (art. 122 do Código Penal). Aqui, ao fazer sua campanha, ele seria enquadrado no crime de apologia de delito.
Nos Estados Unidos aplica-se o princípio do perigo iminente e manifesto. Só as manifestações que produzam perigo concreto de lesão a bens jurídicos são consideradas ilícitas. Relato no meu livro alguns julgamentos (declaração de inconstitucionalidade de uma lei que proibia a exposição pública de símbolos capazes de gerar raiva ou medo em virtude de raiva ou religião, decisão que garantiu o direito de manifestação da Ku Klus Klan) que demonstram que na América do Norte apenas expressões do pensamento que provoquem perigo iminente e manifesto são proibidas e geram punição.
O senhor acredita que é possível uma proteção contra teorias preconceituosas no Brasil?
Não existe lei, no direito penal brasileiro, que defina como crime fazer apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias. O que existe é uma decisão do Supremo Tribunal Federal (HC nº 82.424/RS) considerando crime escrever livros que defendam teorias desse tipo, por aplicação analógica do art. 20 da lei n. 7.716/89, que criminaliza os atos de incitar e induzir à discriminação. Foi um caso claro de analogia in malam partem.
No meu entender, uma forma de proteger a sociedade de teorias preconceituosas é através de ações coletivas de natureza civil. A lei penal só pode criminalizar a manifestação de teorias que gerem perigo concreto de lesão a um bem jurídico individual ou coletivo. Por isso sugeri no meu livro a criação de um novo delito, em substituição ao de apologia ao crime. Enquanto a lei penal não for adaptada, cabem ações civis por dano moral coletivo, caso um determinado grupo sinta-se atingido e prejudicado por um ponto de vista preconceituoso manifestado publicamente.
Qual seu posicionamento acerca da desobediência civil e exclusão da culpabilidade?
Ao longo da história da humanidade, muitos avanços e conquistas sociais só foram alcançados depois da prática de atos de desobediência civil. Gandhi, por exemplo, realizou a Marcha do Sal, desobedecendo a proibição imposta pelos ingleses, na Índia, de fabricarem o próprio sal. Foi um ato de desobediência civil que tinha um fim nobre: a independência da Índia.
Quem realiza um ato de desobediência que constitui infração penal, mas não produz danos a terceiros, pode ter sua culpabilidade excluída (causa supra-legal de exclusão da culpabilidade), dependendo das circunstâncias e do elemento subjetivo do autor.
É bastante complicado, principalmente para um juiz, reconhecer o direito à desobediência civil como forma de exclusão da culpabilidade. Eu entendo, entretanto, que isso é possível, principalmente quando se luta contra uma injustiça.
Fonte: Jornal Carta Forense
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