Primeira Parte:
Raízes
Históricas da Militarização dos Órgãos de Segurança Pública
Muito
se discute acerca de Segurança Pública atualmente no Brasil, porém, percebemos alguns
erros ao se abordar tal tema. Um dos principais é tratar Segurança Pública como
sinônimo de Função Policial, quando, na verdade, a Função Policial é um dos
instrumentos de que o Estado dispõe para manter, dentro de critérios razoáveis e
toleráveis, a convivência entre os indivíduos que compõem uma sociedade. Prova
maior deste erro de abordagem é que os ditos “especialistas” (com muitas aspas)
em Segurança Pública que temos hoje, em sua maioria são ex-policiais; e são estes
que transmitem suas percepções sobre o tema (muitas vezes de maneira
equivocada) à maioria da sociedade, através da grande mídia.
Temos
aí um grande erro. A Segurança Pública requer uma abordagem multidisciplinar e
participativa. Ao se lançar somente um olhar policial sobre a Segurança
Pública, teremos uma visão “caolha” e oligárquica.
Os
operadores da Segurança Pública (policiais) devem ser ouvidos? Lógico que sim,
mas não exclusivamente, e sim em conjunto com outros setores da sociedade,
inclusive, e, principalmente, com a civil organizada.
Em
razão desse fenômeno (aliado a interesses políticos, partidários e até mesmo
estatais) há um tema que é um verdadeiro tabu em Segurança Pública que é a desmilitarização dos órgãos de
segurança pública e a unificação das polícias.
Tentarei
de forma simples explorar esse tema/tabu, mas sem a pretensão de esgotar o
assunto, ao contrário, espera-se iniciar um longo e promissor debate, e que seu
conteúdo seja questionado, criticado, refutado ou aceito, parcial ou
integralmente, pois o que se pretende é o fomento da sua discussão com a
participação de toda a sociedade.
Vejamos
inicialmente alguns conceitos cujo conhecimento é indispensável ao debate:
Militar
- “adj. 1. Relativo à guerra, às milícias, aos soldados. 2. Relativo às três
Forças Armadas (marinha, exército e aeronáutica). 3. Do exército. • Sm. 4.
Aquele que segue a carreira das armas.[1]”
Polícia
- “sf. 1. Conjunto de leis ou regras impostas aos cidadãos com vista à moral, à
ordem e a segurança públicas. 2. Corporação que engloba os órgãos e
instituições incumbidos de fazer respeitá-las. 3. Os membros de tal corporação.
4. Boa ordem; disciplina, • S2g. 5. Membro de corporação policial; policial.[2]”
Bombeiro
– “sm. 1. Homem que trabalha na extinção de incêndios [defesa civil]. (...).[3]”
As
definições acima trazidas pelo popular Dicionário Aurélio demonstram que, em
sua essência, o militar, o policial e o bombeiro desempenham diferentes funções
e que, cada um pertence a uma corporação também com destinações diferentes.
Mesmo
assim, nossa constituinte de 1988, optou por manter em nosso ordenamento
jurídico as figuras de servidores públicos (lato
sensu), e suas respectivas corporações, que mesclam funções primitivas tão
distintas – policial + militar e bombeiro + militar – denominados pela Emenda
Constitucional nº 18 de 1998 de “Militares dos Estados, do Distrito Federal e
dos Territórios” ou pela doutrina jurídica de “militares estaduais/distritais.”
Assim
dispõe o art. 42 da CF/88: “Os membros das Polícias Militares e Corpos de
Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e
disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.
Sua
função é determinada pelo art. 144, § 5º da mesma carta política: “às polícias
militares cabem à polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos
corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a
execução de atividades de defesa civil.”.
Todavia,
é preciso deixar bem claro que as polícias militares não se confundem com as unidades
que exercem o poder de polícia no âmbito interno das Forças Armadas, cuja ação
limita-se apenas às instalações e a seus aos membros (militar federal ou
militar stricto sensu): Companhia de
Polícia do Batalhão Naval (SP) na Marinha; Polícia do Exército (PE) e Polícia
da Aeronáutica.
Dissemos
anteriormente que a constituinte optou por manter os militares
estaduais/distritais em nosso ordenamento jurídico, pois, segundo Paulo Tadeu
Rodrigues Rosa, a presença de uma “tropa” que assemelha ao que denominamos hoje
como polícia militar “data de 1530, quando da chegada da expedição de Martim
Afonso de Souza, passando esta por sucessivas reformulações nos anos de 1534,
1538, 1557, 1565, 1566, 1603 e sucessivamente, até a chegada da família real ao
Brasil em 1808[4]”.
Segundo
Laurentino Gomes, citado por Raimundo Salgado Freire Júnior[5],
com a vinda da família real ao Brasil em 1808, Dom João VI criou no dia 13 de
maio de 1809 a Divisão militar da Guarda Real de Polícia da Corte, baseado no
modelo já existente em Lisboa, criado em 1801 que, por sua vez foi inspirado na
“Gendarmerie” francesa criada por Napoleão Bonaparte. O termo francês Gendarmerie,
deriva do termo gendarme originário
do francês antigo gens d'armes, que significa
“homens de armas”, referência aos cavaleiros dotados de armaduras que serviam
nos exércitos europeus da Idade Média.
A
Guarda Real de Polícia era organizada militarmente, e foi o embrião da Polícia
Militar do Rio de Janeiro. Ela possuía amplos poderes para manter a ordem e
estava subordinada ao Intendente-Geral de Polícia.
Raimundo
Salgado[6]
menciona ainda que com a independência do Brasil, em 1822, a Guarda Real de
Polícia foi desarticulada e foram criadas as Guardas Municipais Provisórias.
Estabelecida a Regência Trina, foi criado mediante Lei, em 10 de outubro de
1831, o Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte e autorizado que fosse
feito o mesmo nas províncias.
Com
a Proclamação da República foi acrescentada a designação Militar às Guardas
Municipais Permanentes, as quais passaram a denominarem-se Corpos Militares de
Polícia.
Em
1891 foi promulgada a Constituição Republicana, que, inspirada na federalista
estadunidense, passou a dar grande autonomia aos Estados.
No
final do século XIX e início do XX, os Estados mais ricos passaram a investir
cada vez mais nas suas corporações policiais militares, transformando-as em
“exércitos estaduais” com fim de intimidar adversários políticos, mas,
principalmente o Governo Federal.
Com
a eclosão da 1ª Guerra Mundial, o Exército Brasileiro vê a premente necessidade
de se modernizar frente ao novo aparato tecnológico bélico trazido pela Revolução
Industrial, como tanques e aviões. É o que se extrai das lições de Jayme Araújo
Bastos Filho:
Um aperfeiçoamento notável no
material de artilharia. Uma transformação radical no armamento de infantaria.
Um desenvolvimento considerável nos processos de ligação. A necessidade de
dotações de munições até então insuspeitadas. Adoção de meios novos, como os
carros de assalto. A importância primordial tomada pela Aviação. (...) Aviões
de caça. Aviões de bombardeio. Aviões de reconhecimento e de observação. (...) O armamento e aparelhagem mencionados
devem basear-se nas necessidades da instrução, em tempo de paz, e no
aprestamento, em tempo de guerra, de forças que assegurem, ao Exército
Brasileiro, uma superioridade interna apreciável [grifo nosso][7].
Nesse
intuito de reorganização e modernização para assegurar ao Exército essa
superioridade interna, através do Decreto nº 11.497, de 23 de fevereiro de 1915,
passou-se a permitir que as forças militarizadas dos Estados pudessem ser
incorporadas ao Exército Brasileiro, em caso de mobilização nacional. Ainda
nesse mesmo processo, a legislação pátria permitiu que outra organização
militarizada dos Estados fosse incorporada ao Exército Brasileiro, o Corpo de
Bombeiros.
Sobre
o Corpo de Bombeiros, é preciso dizer que esta corporação teve suas origens no
Brasil através do Imperador Dom Pedro II que, organizou o Corpo Provisório de
Bombeiros da Corte através do Decreto Imperial 1775, de 02 de julho de 1856,
reunindo as seções existentes do serviço de extinção de fogo nos Arsenais de
Guerra e de Marinha. Todavia, apesar de militarmente organizado e aquartelado,
o Corpo de Bombeiros não era considerado como unidade militar. Somente a partir
da publicação em 15 de julho de 1880 do Decreto nº 7.666, que aquela corporação
é militarizada[8] e,
como informado acima essa corporação tornou-se força auxiliar do Exército coma
edição da Lei nº 3.216, de 3 de Janeiro de 1917.
A
partir da década de 20, dando continuidade ao processo de reorganização e
modernização do Exército, o Brasil firma diversos acordos de cooperação militar
com países como França, Alemanha e por último os EUA e, sob a influência dessas
potências militares, cada uma em certo período da história, se reformula a
Doutrina Militar existente até então, no que tange à instrução e material.
Guardem esta expressão – “Doutrina Militar” – pois voltaremos a ela mais à
frente.
Durante
os regimes ditatoriais ocorridos no Brasil República, as forças policiais
militares dos Estados, afastaram-se da sociedade, passando a desempenhar um
papel preponderantemente repressor através de ações violentas, com o propósito
de assegurar a manutenção daqueles regimes de exceção.
Mas
foi durante a ditadura militar ocorrida no Brasil de 1964 até 1985, período em
que a denominação “Polícia Militar” se sedimentou, que o “gene” belicista que
sempre integrou a “cadeia genética” daquela corporação, e que o Estado sempre fez
questão de preservar e utilizar se tornou ativo em definitivo.
Através do Decreto-Lei nº. 667 de 2 de julho
de 1969 (vigente até os dias atuais), as polícias e corpos de bombeiros
militares são reorganizados, como forças auxiliares e de reserva do Exército,
para que, sob o controle e organização deste, mantivessem a ordem pública e a
segurança interna dos Estados, Territórios e no Distrito Federal.
Isso
significa dizer, do que se extrai dos dizeres de Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, que as policias militares:
(...) diante da ruptura da ordem
pública, atuam como força de choque, precedendo o emprego eventual das Forças
Armadas (ações repressivas) e, finalmente, sob convocação federal, atuarão em missões de guerra
externa ou em caso de grave subversão da ordem ou ameaça irrupção (ações
repressivo-operativas). [grifo nosso][9]”.
Obviamente que se as policias e corpos de
bombeiros militares estão sob o controle, comando e organização do Exército,
seguirão o seu “método de trabalho”, e para tanto serão doutrinados, receberão
o que se chama de “Doutrina Militar”. Mas o que compreende tal doutrina?
Segundo
Lindolfo Ferraz, a doutrina militar é:
Um conjunto de elementos básicos,
de princípios militares de guerra adequados, processos e normas de
comportamento que sistematizam e coordenam as atividades do Poder Militar da
Nação, para realizar as ações estratégicas e táticas, a fim de fazer face às
hipóteses de Guerra admitidas[10].
Guerra?
Mas para que tipo de guerra as polícias militares seriam doutrinadas e empregadas
naquele momento histórico do Brasil? Contra quem?
Como
dito anteriormente a Doutrina Militar Brasileira foi reformulada a partir da
influência direta da França, Alemanha e EUA.
Esses
países travaram uma guerra contra um inimigo comum, o Comunismo; a Alemanha
nazista antes e durante a 2ª Guerra Mundial e França e EUA após o citado
conflito.
E
por tal razão, o Brasil “importou” a guerra desses países. Prova maior foi o
Golpe Militar de 1964, que depôs o Presidente João Goulart da Presidência da
República, sob a ameaça dos EUA de intervirem militarmente no país caso não
fosse ele deposto. Para os EUA e os militares brasileiros, Goulart pretendia
transformar o Brasil numa “China Comunista” no Continente Americano.
Entre
um dos elementos estratégicos dessa Doutrina Militar de combate ao comunismo
está o controle da população através da utilização policial das Forças Armadas,
principalmente o Exército.
O Exército Brasileiro, as Forças Armadas como
um todo aplicaram essa doutrina de forma bem eficiente durante os chamados
“anos de chumbo”, porque além de contarem com a sua própria tropa, contavam com
as Forças Auxiliares sob seu comando e organização, especialmente a polícia militar.
A
polícia militar se transformou numa máquina repressiva brutal contra os
inimigos do regime ditatorial militar e, assim, se afastou de sua missão de
servir e proteger a sociedade e passou a investir contra ela. A polícia militar
tinha a sua guerra – contra o comunismo – e o seu inimigo a combater - o subversivo,
assim chamado pelo regime.
Com
o fim da ditadura militar no Brasil na década de 80, a guerra contra o comunismo
chegou ao fim, mas a polícia militar continua sendo doutrinada até os dias de
hoje na ideologia da guerra; mas, parafraseando o subtítulo de “Tropa de Elite
2”: “O inimigo agora é outro”, como se verá na segunda parte desse artigo.
[1] FERREIRA, A. B.
H. Minidicionário Aurélio. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 317.
[2]
Op, cit, p. 372.
[3]
Op, cit, p. 70.
[4] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Evolução e origem da atividade de polícia
no Brasil. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/364. Acesso em: 23 de março de 2013.
[5] GOMES, Laurentino apud FREIRE
JÚNIOR, Raimundo Salgado. Origem e
Evolução Históricas dos Regulamentos Disciplinares Militares no Brasil e a
Necessidade Inadiável das Policias Militares Apresentarem Regulamento
Disciplinar Próprio. Disponível em: http://www2.forumseguranca.org.br/content/origem-e-evolu%C3%A7%C3%A3o-hist%C3%B3ricas-dos-regulamentos-disciplinares-militares-no-brasil-e-ecessidad. Acesso em 23 de março de 2013.
[6] Idem.
[7] BASTOS FILHO, Jayme Araújo. A Missão Militar Francesa no Brasil. Rio de
Janeiro: BIBLIEX, 1994.p.29.
[8] BRASIL. Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro. Disponível
em: www.cbmerj.rj. gov.br. Acesso em: 20 de junho de 2010.
[9] MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de Direito Administrativo.
14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 418.
[10]
FERRAZ FILHO, Lindolpho. Bases
Fundamentais da Doutrina Militar. Rio de Janeiro: ESG, 1965. p.25.
Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes - RJ, Pós-graduado (especialização) em Direito Público, Pós-graduado (especialização) em Direito Militar (Direito Constitucional Militar, Direito Penal Militar, Direito Processual Penal Mlitar, Direito Administrativo Militar, Direito Previdenciário Militar e Direito Internacional dos Conflitos Armados), Pós-graduado (especialização) em Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia, todas pela Universidade Gama Filho - RJ. Compõe o quadro de advogados do escritório A. C. Burlamaqui Consultores S/C desde 2008.
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