No artigo passado falamos que os crimes impropriamente militares são aqueles previstos tanto na legislação castrense (CPM), quanto na comum (CP).
Dissemos também que, em alguns casos, aparentemente ambos os diplomais legais seriam aplicáveis ao caso concreto – como se existisse um concurso de normas.
Veja-se que esse tipo de “confusão” não ocorre só com o direito militar. Diante da imensa quantidade de leis especiais esparsas (1) podemos nos deparar com tipos penais incriminadores que, aparentemente, aplicar-se-iam ao mesmo fato.
Vamos ver exemplos de tipos penais onde dependendo da situação fática pode haver conflito?
Código Penal Militar (2):
Roubo simples
Art. 242. Subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante emprego ou ameaça de emprêgo de violência contra pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer modo, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a quinze anos.
Código Penal comum (3):
Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Código Penal Militar:
Lesão leve
Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Código Penal comum:
Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Pois bem. Quais são os modos de solução de concurso (ou conflito) aparente de normas?
Ensina DINIZ (4) que, sendo ambas as normas válidas, o aplicador do direito ficará num dilema, já que terá de escolher, e sua opção por uma das normas conflitantes implicaria a violação da outra. A ciência jurídica, portanto, aponta critérios para sair dessa situação anormal.
Tais critérios, segundo a autora, não seriam princípios lógicos, mas jurídico-positivos, pressupostos implicitamente pelo legislador.
Os modos de solução de antinomia (ou conflito aparente de normas) mais utilizados e mencionados pelos doutrinadores e pela jurisprudência são: o princípio da sucessividade, o da especialidade, o da subsidiariedade e o da consunção.
Critério da Sucessividade (5)
Se houver um período de tempo separando duas ou mais normas aplicáveis ao mesmo fato, é sempre preferível a lei posterior (lex posterior derogat priori), ou seja, a lei mais recente.
Critério da Subsidiariedade (6)
Ensina GRECO que pelo princípio da subsidiariedade, a norma dita subsidiária é considerada como um “soldado de reserva”: na ausência ou impossibilidade de aplicação da norma principal mais grave, aplica-se a norma subsidiária menos grave. Lex primaria derrogat legi subsidiariae.
NUCCI (7) entende que uma norma é considerada subsidiária em relação a outra, quando a conduta nela prevista integra o tipo da principal, significando que a lei principal afasta a lei secundária.
A subsidiariedade pode ser expressa ou tácita.
Falamos em subsidiariedade expressa quando a própria lei faz a sua ressalva deixando transparecer seu caráter subsidiário (“se o fato não constitui crime mais grave”, “se o fato não constitui elemento de crime mais grave”). Veja-se:
Perigo para a vida ou saúde de outrem
Art. 132 (CP) - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. (g.n)
A subsidiariedade tácita, por sua vez, se dá quando embora o artigo não se refira expressamente ao seu caráter subsidiário, este só terá aplicação nas hipóteses de não ocorrência de delito mais grave.
Para NUCCI, ocorre a subsidiariedade implícita ou tácita quando o fato incriminado em uma norma entra como elemento componente ou agravante especial de outra norma. Seria exemplo o dano no furto qualificado pelo arrombamento.
Critério da Consunção (ou da absorção) (8)
Quando o fato previsto por uma lei está, igualmente, contido em outra de maior amplitude, aplica-se somente esta última. A infração prevista na primeira norma constitui simples fase de realização da segunda infração, prevista em tipo de diverso – deve-se aplicar apenas a última.
Trata-se da hipótese do crime-meio e do crime-fim. Um exemplo é o crime de estelionato, que absorve o de falso, fase de execução do primeiro (Súmula 17, STJ: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”).
Critério da Especialidade (9)
Em matéria de direito militar, um dos critérios mais importantes de modo de solução de conflito é o da especialidade. O Direito Penal Militar, assim como a Justiça Militar em si, possui caráter especial já que apresenta diretrizes e princípios próprios, de forma que suas normas prevalecem sobre as do direito comum (10).
“Lex specialis derogat legi generali”: a lei especial derroga a lei geral. Essa é a máxima utilizada para sintetizar o princípio da especialidade. De acordo com ROMEIRO (11), diz-se especial a norma quando, além de possuir todos os requisitos da norma geral, é acrescida de um elemento especializante, consistente num plus ou num minus de severidade.
Assim, se o caso concreto comporta o elemento especializante, a norma especial prefere à norma geral. Portanto, a lei penal militar prevalece sobre a comum. Ensina CORRÊA (12) que três são os requisitos para identificar a ocorrência do tipo penal especial:
- A norma especial deve conter todos os elementos da norma geral, mais o especializador;
- O elemento especializador (ou especializante) não pode configurar um tipo penal autônomo;
- Os tipos penais genérico e especifico devem estar em vigor quando da prática da conduta.
Como exemplo, o autor cita o crime de prevaricação, previsto no artigo 319 tanto no Código Penal Militar, quanto no Código Penal comum. Configura-se o crime de prevaricação previsto no Código Penal Militar, pois este possui o elemento especificador previsto no artigo 9º, do mesmo diploma legal (a). Este elemento, no entanto, não configura tipo penal autônomo, pois os dispositivos tem a mesma redação (b) e, ambos os tipos penais estão válidos, em vigor (c).
Interessante ver como o conflito é dirimido na prática utilizando o princípio da especialidade, no Superior Tribunal Militar:
Ementa: Acidente de trânsito envolvendo viatura militar e veículo particular, resultando lesão corporal de natureza leve em militares. Absolvição. Apelação interposta pelo MPM. Preliminar de incompetência da Justiça Militar para julgar o feito. Rejeição. Fixação da competência da Justiça Militar. Artigo 9º, inciso III, alínea "d", do CPM. Condenação. Inaplicabilidade do Princípio da Insignificância Penal. Pena mínima. "Sursis". Decisão por maioria. 1. Está plenamente caracterizada a competência da Justiça Militar para processar e julgar o presente feito, em razão de sua especialidade e da exata noção do que seja o Serviço Militar e a vida castrense, onde se busca garantir o salutar desenvolvimento das instituições militares, garantindo a tutela dos bens jurídicos, para a preservação da ordem militar. [...] (BRASIL. Superior Tribunal Militar. Direito Penal Militar. Apelação. Num. 0000083-96.2010.7.02.0202. UF: SP. Relator: Min. José Coelho Ferreira. Decisão: 17/08/2011) (grifo nosso)
EMENTA. Apelação. Uso de substância entorpecente - "maconha" - por agente militar, durante o serviço de guarda ao quartel (Art. 290 do CPM). Lei nº 6.368/76. Inaplicabilidade. O CPM é uma lei especial, possuindo dispositivos próprios e uma justiça especializada para interpretá-los e aplicá-los. A especialidade da legislação penal militar é assegurada constitucionalmente e, como tal, em caso de crime militar, prevalece sobre a lei comum, seja esta especial ou não. Descabe falar em revogação do art. 290, do CPM, porquanto isso só ocorreria se outra lei especial, explicitamente, assim declarasse, o que não é o caso da Lei nº 6.368/76, que, dessa forma, não se manifestou. [...]. (BRASIL. Superior Tribunal Militar. Direito Penal Militar. Apelação. Num: 2001.01.048921-5. UF: DF. Relator: Min. Germano Arnoldi Pedrozo. Decisão: 19/03/2002) (grifo nosso) ·.
No Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR. POSSE DE REDUZIDA QUANTIDADE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE EM RECINTO SOB ADMINISTRAÇÃO CASTRENSE. INAPLICABILIDADE DO POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA DA LEI CIVIL Nº 11.343/2006. IMPOSSIBILIDADE. ESPECIALIDADE DA LEGISLAÇÃO PENAL CASTRENSE. ORDEM DENEGADA. 1. [...]. 2. [...]. Pré-exclusão que se impõe pela elementar consideração de que uso de drogas e o dever militar são como água e óleo: não se misturam. [...]. Senão por afetar temerariamente a saúde do próprio usuário, mas pelo seu efeito danoso no moral da corporação e no próprio conceito social das Forças Armadas, que são instituições voltadas, entre outros explícitos fins, para a garantia da ordem democrática. Ordem democrática que é o princípio dos princípios da nossa Constituição Federal, na medida em que formada como a própria razão de ser da nossa República Federativa, nela embutido o esquema da Tripartição dos Poderes e o modelo das Forças Armadas que se estruturam no âmbito do Poder Executivo Federal. [...] 3. A hierarquia e a disciplina militares não operam como simples ou meros predicados institucionais das Forças Armadas brasileiras, mas, isto sim, como elementos conceituais e vigas basilares de todas elas. Dados da própria compostura jurídica de cada uma e de todas em seu conjunto, de modo a legitimar o juízo técnico de que, se a hierarquia implica superposição de autoridades (as mais graduadas a comandar, e as menos graduadas a obedecer), a disciplina importa a permanente disposição de espírito para a prevalência das leis e regulamentos que presidem por modo peculiar a estruturação e funcionamento castrenses. [...]. 4. [...] 5. [...]. 6. No caso, o art. 290 do Código Penal Militar é o regramento específico do tema para os militares. Pelo que o princípio da especialidade normativo-penal impede a incidência do art. 28 da Lei de Drogas (artigo que de logo, comina ao delito de uso de entorpecentes penas restritivas de direitos). Princípio segundo o qual somente a inexistência de um regramento específico em sentido contrário ao normatizado na Lei 11.343/2006 é que possibilitaria a aplicação da legislação comum. Donde a impossibilidade de se mesclar o regime penal comum e o regime penal castrense, mediante a seleção das partes mais benéficas de cada um deles, pois tal postura hermenêutica caracterizaria um hibridismo regratório incompatível com o princípio da especialidade das leis. 7. Ordem denegada. (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Crime Militar. Habeas Corpus nº 104923 / RJ. Segunda Turma. Rel. Celso de Mello. Decisão: 26.10.2010) (grifo nosso)
Por fim...
Indico para quem quiser saber mais sobre direito militar: https://www.facebook.com/DireitoCastrense
Referências
- NUCCI dá o seguinte exemplo: “quando alguém importa substância entorpecente, à primeira vista pode-se sustentar a aplicação do disposto no art. 334 do Código Penal (crime de contrabando), embora o mesmo fato esteja previsto no art. 33 da Lei de Drogas. Estaria formado um conflito aparente de normas, pois duas normas aparecem aplicáveis ao mesmo fato ocorrido. O direito, no entanto, oferece mecanismos aplicáveis ao mesmo fato ocorrido. O direito, no entanto, oferece mecanismos para a solução desse impasse fictício. Na situação exposta, aplica-se o art. 33 da Lei de Drogas (tráfico ilícito de drogas), por se tratar de lei especial”.
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001Compilado.htm
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm
- DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 19ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 483 et seq.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 157.
- GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 15ª edição. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2013, p. 29.
- NUCCI, 2009, p. 159.
- NUCCI, 2009, p. 160.
- FERNANDES, Amanda Regina. Crimes Militares: O Civil Sob a Jurisdição Penal Militar. 2012. Disponível em: http://www.jusmilitaris.com.br/index.php?s=autores&idautor=296
- Deve-se ter em mente que as instituições militares brasileiras, sejam elas estaduais ou federais, sustentam-se em duas vigas mestras, que são a disciplina e a hierarquia. Cf. artigos 42 e 142, da Constituição Federal de 1988. Mais em: <http://www.tjmmg.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=931&Itemid=66> Acesso em: 23 jul. 2012.
- ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994, p 54.
- CÔRREA, Getúlio. Abuso de Autoridade ou Crime Militar. Dircêo Torrecilhas Ramos, João Ronaldo Roth, Ilton Garcia da Costa, coord. Direito Militar: Doutrina e Aplicações. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 640 et seq..
ADVOGADA
Bacharela em Direito pela Universidade São Judas Tadeu, especializanda em Direito Penal
,
Processual Penal e Criminologia pela Escola Superior de Advocacia (ESA/SP) e em Direito Médico
e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Ex-membro efetivo da Comissão do
Acadêmico de Direito da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional São Paulo.
Tens evoluído positivamente na elaboração dos seus textos. Este, particularmente, foi bastante esclarecedor. Parabéns!
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