quarta-feira, 27 de setembro de 2017

COTIDIANO CRIMINAL, POR PATRÍCIA PESTANA DE AZEVEDO: O CONFLITO NA ROCINHA E AS (I)LEGALIDADES DE ATOS.

Quem acompanha de longe mais um episódio da guerra entre as facções pelo controle do tráfico no Rio de Janeiro como eu, fica aflito com a nova onda de pânico que a cidade vem enfrentando. Contrapondo essa aflição, há o sentimento de contentamento ao ver a rede de tráfico de drogas na maior favela do Brasil ser desmantelada pela ação conjunta das forças armadas (o acesso à favela passou a ser patrulhado por um contingente de 950 homens) e da polícia militar carioca.



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  • Breve histórico
A favela da Rocinha foi chefiada pelo Comando Vermelho (CV), digamos pacificamente, de meados dos anos de 1980 a 2000 até Antônio Bonfim Lopes, o Nem, ser preso e sair da liderança direta do CV em 2010. Como toda saída de um líder gera um sucessor, Nem confiou a Rogério Avelino, o Rogério 157, o posto no comando.
Ao longo dos últimos anos, Rogério 157 se mostrava distante de Nem e começou a burlar princípios do tácito “Código de Ética do Tráfico”, como cobrar os moradores por serviços de água, gás, moto táxi, etc., mas o estopim se deu com a ordem de execução do comparsa de seu antecessor, Perninha, e da expulsão da esposa ostentação de Nem da Rocinha, agora foragida da polícia. Sabendo disso, Nem acionou de dentro do presídio federal em Rondônia a segunda maior facção do Rio, conhecida como ADA - Amigo dos Amigos, e deu ordem para iniciar a invasão e retomada do controle do tráfico na Rocinha.
  • Ação Repressiva do Estado
Agentes policiais contam com a ajuda de alguns moradores para fazer a varredura na favela, revelar rotas de fuga, denunciar esconderijos e facilitar o cumprimento dos mandados de busca e apreensão de forma pacífica e exitosa e, neste caso, estamos diante de consentimento do morador na conduta do agente, ou seja, trata-se de mera desistência do exercício de direito fundamental constitucionalmente garantido.
Inexistindo consentimento do morador, a entrada em uma casa somente poderá ocorrer no caso de flagrante delito, desastre, para prestar socorro, a qualquer hora do dia ou da noite, ou, durante o dia, por determinação judicial.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XI e o art. 150, do CP, estabelecem ser asilo inviolável a casa do indivíduo, mas essa garantia é relativa e exceções foram permitidas pelas duas normas, tornando atípicas as condutas quando praticadas sob a observância das formalidades legais, dentre elas, a de considerar a natureza permanente do delito, como no caso de tráfico de drogas.
A fim de evitar a nulidade de árduas diligências concretizadas pelos agentes policiais e, também, para impedir uma possível punição disciplinar, civil e penal pela prática do crime de violação de domicílio previsto no art. 150, §2º do CP, o STF fixou tese no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 603.616, com repercussão geral reconhecida, por maioria de votos, nos termos a seguir:
“a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.”  
E se os agentes estiverem diante de iminência de flagrante delito? Perfeitamente cabível, desde que exija atuação imediata da polícia, ainda que a diligência venha a fracassar. Casos difíceis de comprovação.
Em qual momento deve se verificar a existência ou não de abuso dos agentes policiais? Nas audiências de custódia, cuja importância e peculiaridades já foi assunto de artigo publicado neste blog pela colunista Karla Alves.
Qual a amplitude da definição de “casa” para o Código Penal? Compreende “qualquer compartimento habitado”, “aposento ocupado de habitação coletiva” e “compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade” (art. 150, §4º do CP). É, assim, mais amplo do que aquele do direito civil, e sobre esse assunto a nossa colunista Laryssa Cesar tem maior respaldo pra abordar. Para Dinorá Grotti, jardim, garagem, as partes externas, muradas ou não, que se contêm nas divisas espaciais da propriedade abrangem o termo “casa” e não podem ser violadas sem o respeito das restrições acima explanadas.
Dirimida a divergência acima exposta, uma nova modalidade vem querendo ganhar espaço no mundo jurídico penal: OS MANDADOS COLETIVOS DE BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR.
“Em tempos excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com o intuito de restabelecer a ordem pública”, sob essa justificativa decidiu a juíza Angélica dos Santos Costa, durante plantão judiciário do Fórum do Rio de Janeiro, depois de um helicóptero da Polícia Militar cair na Cidade de Deus, em novembro de 2016. Mas, isso pode produção?
NÃO! Sem determinação judicial específica e individual, não! A legislação brasileira não prevê esse tipo de ato, e, portanto, as intervenções previstas no dispositivo constitucional, enquanto exceções, devem ser interpretadas restritivamente, não cabendo ao Judiciário usurpar o poder de legislar, ultrapassando os limites da sua atribuição.
A nulidade do ato e a imprestabilidade das provas colhidas com infringência da existência do mandado foram as principais consequências listadas no julgamento no Recurso interposto contra a decisão da juíza, a qual foi reformada, por unanimidade, pela 5ª Câmara Criminal do TJ-RJ (Processo 0397891-81.2016.8.19.0001).
De qualquer modo, o mandado judicial deve especificar aquilo que se deve buscar, não podendo se revestir de caráter genérico (STF – RE 418.416/SC, Rel. Ministro Eros Grau (06.11.2008).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                
  • E como o Estado poderia restringir a inviolabilidade do domicílio em casos como o da Rocinha, de extremo conflito?
Pela decretação de estado de sítio, instrumento burocrático e político, previsto no art. 137, da CF. Nada aceito pela classe política atual (digo, dos último 113 anos), apesar de ser a única forma legalmente prevista para adoção das medidas temporárias que se procuram adotar através das expedições de mandado coletivo de busca e apreensão domiciliar sem a necessidade de determinação judicial (art. 139, V, da CF).
Os pressupostos formais da decretação do estado de sítio são cumulativos e constam nos 137 a 139 da CF. Cabível em situações de extrema gravidade ocasionadas por comoção grave de repercussão nacional, ou seja, caracterizada por série crise capaz de colocar em risco as instituições democráticas.

A guerra entre facções (iniciada em 17 de setembro) se resume a invasões, tiroteios, com comércios, postos de saúde e escolas fechadas, gente inocente ou criminosa morrendo, correndo, fugindo ou se escondendo, possíveis delatores sendo executados de forma cruel, ônibus incinerados, paredes e veículos marcados por balas de armamento de grosso calibre, o cerco sendo fechado, enfim, um verdadeiro caos urbano que merece um respeito próprio à dignidade dos que vivenciam essa série crise

¹ Art. 5º (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

²Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.
§ 2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder.
§ 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências:
I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência;
II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser.



Patrícia Pestana de Azevedo.
Advogada do Pestana & Azevedo, Advocacia e Consultoria.

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