fato é conhecido de todos nós e, infelizmente, acontece corriqueiramente: os acusados são expostos pela mídia através da divulgação de gravações telefônicas e “julgados” pela opinião pública. Posteriormente, o Poder Judiciário anula ou desconsidera tais “provas”. O motivo? As interceptações telefônicas acabam sendo consideradas ilícitas…
O caso mais recente diz respeito às acusações que pesam contra o senador Demóstenes Torres. Fica a dúvida: as gravações telefônicas divulgadas nos últimos dias serão ou não consideradas lícitas?
Não tenho condições de falar do caso referido, pois não conheço o teor das investigações em curso. Pretendo, no presente texto, apresentar algumas das bases dispostas na Constituição Federal que, em princípio, deverão nortear a solução do problema.
De acordo com o artigo 5º, inciso LVI, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Considera-se inadmissível não apenas a prova obtida por meio ilícito, mas também, por derivação, as provas decorrentes do meio de prova obtido ilicitamente: “Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação (...). A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos ‘frutos da árvore envenenada’) repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal” (STF, RHC 90.376/RJ, j. 03.04.2007, rel. Min. Celso de Mello). O princípio é previsto no artigo 157, caput, do Código de Processo Penal: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.
Considerando que “qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária” (STF, RHC 90.376/RJ, cit.), exclui-se a ilicitude “quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas [derivadas] e outras [ilícitas]” (artigo 157, parágrafo 1º, 1ª parte do CPP), hipótese em que, a rigor, as provas não são derivadas das ilícitas, sequer podendo-se falar em incidência da teoria dos frutos da árvore envenenada.
O princípio aplica-se também ao processo civil, já que descende do contido na norma constitucional: “o processo administrativo disciplinar que impôs a Delegado de Polícia Civil a pena de demissão com fundamento em informações obtidas com quebra de sigilo funcional, sem a prévia autorização judicial, é desprovido de vitalidade jurídica, porquanto baseado em prova ilícita. Sendo a prova ilícita realizada sem a autorização da autoridade judiciária competente, é desprovida de qualquer eficácia, eivada de nulidade absoluta e insuscetível de ser sanada por força da preclusão” (STJ, RMS 8.327/MG).
Considera-se, assim, por exemplo, ilícita a interceptação eletrônica não autorizada judicialmente, orientação que tem sido aplicada pela jurisprudência tanto para o processo penal (conforme STJ, HC 64.096/PR) quanto para o processo civil (conforme STJ, REsp 2.194/RJ; tratava-se, no caso, de gravação telefônica que comprovaria adultério de cônjuge). Não é considerada ilícita a prova obtida através de gravação telefônica ou por vídeo, se realizada por um dos interlocutores. No caso, não se trata de gravação de conversa alheia (interceptação telefônica, que depende de autorização judicial), não havendo que se falar em ilicitude. Nesse sentido: “é lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro” (STF, RE 583937 QO-RG, j. 19.11.2009, rel. Min. Cezar Peluso).
Embora, como regra, sejam inadmissíveis as provas ilícitas e as provas delas derivadas, consideram-se admissíveis as provas derivadas quando “puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras” (artigo 157, parágrafo 1º, 2ª parte do CPP). A respeito, o STF decidiu, em julgado antes referido, que se “o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova — que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal —, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária” (STF, RHC 90.376/RJ, j. 03.04.2007, rel. Min. Celso de Mello). Neste caso, percebe-se que inexiste nexo causal, sequer podendo-se falar em ilicitude por derivação. Em outro julgado, decidiu o STF: “encontro fortuito de prova da prática de crime punido com detenção. (...) O Supremo Tribunal Federal, como intérprete maior da Constituição da República, considerou compatível com o art. 5º, XII e LVI, o uso de prova obtida fortuitamente através de interceptação telefônica licitamente conduzida, ainda que o crime descoberto, conexo ao que foi objeto da interceptação, seja punido com detenção. (STF, AI 626.214-AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2.a T., j. 21.09.2010).
Os sistemas constitucional e processual penal admitem, assim, a doutrina da fonte independente (independent source doctrine) como forma de exclusão da doutrina dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree).
O CPP considerou, ainda, fonte independente “aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova” (artigo 157, parágrafo 2º, do CPP), o que, a nosso ver, mais parece ajustar-se à doutrina da descoberta inevitável (inevitable discovery doctrine) que à doutrina da fonte independente (independent source doctrine) referida no parágrafo 1º do mesmo artigo.
De todo modo, o ordenamento processual penal incorporou ambas as doutrinas, como atenuação à incidência da doutrina dos frutos da árvore envenenada (nesse sentido, conforme STJ, HC 146.959/BA, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., j. 16.09.2010).
Este, pois, é o panorama oferecido pelo nosso Direito e que, em princípio, deve nortear os julgadores, ao decidir acerca da admissibilidade, como provas, das gravações telefônicas. Resta aguardar a decisão que será proferida pelo Poder Judiciário, para solucionar o problema relativo às gravações telefônicas que envolvem o Senador antes mencionado.
Fonte:Conjur
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