domingo, 8 de julho de 2012

O anteprojeto do novo Código Penal Brasileiro: reflexões iniciais


Introdução
Trata o presente artigo de fazer um breve apanhado sobre as alterações do anteprojeto para o novo Código Penal Brasileiro, o qual teve sua origem no requerimento n.o 756 de 2011, de autoria do senador Pedro Taques. A estrutura deste é a seguinte: (i) síntese do histórico dos trabalhos e considerações iniciais; (ii) parte geral; (iii) crimes contra a vida; (iv) crimes contra o patrimônio; (v) outras alterações; (vi) conclusões e (vii) bibliografia. Ressaltamos, mais uma vez que se trata de um breve apanhado e não se pretende de forma alguma esgotar o tema em tão poucas páginas. Tanto que, em relação aos comentários referentes à parte especial, optamos por aprofundar um pouco mais a análise em relação aos crimes praticados contra a vida e contra o patrimônio. Isso decorre por esses crimes possuírem, por vezes, maior repercussão social. Nos demais casos, preferimos aglutinar brevemente as demais alterações com a menção, na forma de notas de rodapé, à localização das alterações as quais entendemos, s.m.j., serem mais importantes.
Síntese do histórico dos trabalhos e considerações iniciais
No dia 27 de julho de 2012 foi enviado ao presidente do Senado Federal, senador José Sarney, o relatório final com o anteprojeto para o novo CP. O referido documento, resultado do trabalho de uma comissão de juristas renomados, cuja orientação incumbiu ao ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp foi consolidado e dividido em três partes: (i) histórico dos trabalhos, (ii) anteprojeto do novo Código Penal e (iii) a exposição de motivos das propostas realizadas pela comissão.
Como bem aponta o relatório final, tratou-se de um projeto ambicioso com a finalidade de se atualizar o sistema penal pátrio, cujo principal diploma foi editado em 1940. Ainda de acordo com o referido documento, em razão do seu longo tempo de vigência, procurou-se atualizar o CP mediante a edição de leis especiais penais que, inclusive, traziam disposições gerais, criando microssistemas que complementavam ou eram complementados por normas cíveis ou administrativas. O resultado disso é apontado pelo relatório final da comissão e é bem conhecido por nós, operadores do Direito. Um sistema confuso, marcado por incoerências, sobretudo no que se refere à desproporção entre penas para condutas diversas que tutelam o mesmo bem jurídico. Exemplo disso foi apontado em nosso “Concussão: crime praticado por agente público”[2], em que um crime praticado com violência, no caso a concussão, possui no atual ordenamento jurídico, tratamento mais brando que a corrupção, esta praticada sem violência. Ademais, procurou-se criar novas figuras penais e a absorção de outras. Isso, segundo o relatório final da comissão resultou na descriminalização de algumas condutas e a criação de outras de acordo com as novas perspectivas de combate à criminalidade.
Para tanto, o relatório final da comissão apontou os seguintes princípios que orientaram os trabalhos, sendo eles: (i) a necessidade de adequação às normas penais à Constituição Federal de 1988 e em relação aos tratados e convenções internacionais; (ii) a adoção de uma intervenção penal adequada de modo a compatibilizar a lesão ao bem jurídico penalmente relevante e a resposta estatal; (iii) a seleção de bens jurídicos imprescindíveis e a sua harmonização com o texto maior; (iv) a criminalização de fatos concretamente ofensivos; (v) a fragmentariedade do Direito Penal, quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para promover a adequada tutela jurídica a bens considerados fundamentais; (vi) a relevância social de tipos penais e (vii) a proporcionalidade das penas aplicáveis.
Ao final, o anteprojeto foi dividido tradicionalmente em parte geral e parte especial, sendo a primeira contendo: (i) aplicação da lei penal; (ii) do crime; (iv) das penas, compreendendo normas para a sua individualização e medidas de segurança; (v) medidas de segurança; (vi) ação penal; (vii) barganha e colaboração com a justiça e, finalmente, (viii) extinção da punibilidade.
Contudo, as maiores mudanças encontram-se, de fato, na parte especial que, como foi dito anteriormente, sofreu o afluxo de novos tipos penais, bem como absorveu o conteúdo de leis penais especiais. A estrutura é a seguinte: (i) crimes contra a pessoa; (ii) crimes contra o patrimônio; (iii) crimes contra a propriedade imaterial; (iv) crimes contra a dignidade sexual; (v) crimes contra a incolumidade pública; (vi) crimes cibernéticos; (vi) crimes contra a saúde pública; (vii) crimes contra a paz pública; (viii) crimes contra a fé pública; (ix) crimes contra a Administração Pública; (x) crimes eleitorais; (xi) crimes contra as finanças públicas; (xii) crimes contra a ordem econômico-financeira; (xiii) crimes contra interesses metaindividuais; (xiv) crimes relativos a estrangeiros; (xv) crimes contra os direitos humanos e (xvi) crimes de guerra.
Parte geral
A partir de uma leitura sucinta do anteprojeto do novo CP podemos notar que a comissão elaboradora buscou sanar também alguns debates que dividiam a doutrina e a jurisprudência. Um deles diz respeito à possibilidade do juiz, no curso do processo, combinar leis já revogadas de forma a beneficiar o réu[3]. Vislumbra-se, portanto, a tentativa de se encerrar o debate, cujo argumento gira em torno da possível usurpação de atividade legislativa por parte do juiz. Sendo assim, aumenta-se a margem discricionária do juiz no sentido de beneficiar o réu, reforçando o caráter garantista do Direito Penal pátrio.
Já no Título II – Do crime, temos nas causas excludentes de ilicitude o reconhecimento do princípio da insignificância nas seguintes hipóteses: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; (iii) inexpressividade da lesão jurídica provocada[4].
Outra importante alteração diz respeito ao reconhecimento do instituto da autoria mediata ou do domínio do fato. Ou seja, buscou-se acabar com a incongruência de se apenar o mandante do crime na condição de partícipe. Evidentemente, o fraco argumento de que o mentor não praticou os atos materiais para produzir a lesão ao bem jurídico penalmente relevante, não poderia mais prosperar no nosso sistema penal[5].
O anteprojeto do novo CP ainda trouxe a questão da imputabilidade à pessoa jurídica[6], questão antes muito combatida até o advento da lei de crimes ambientais que fez a previsão expressa nesse sentido, mas somente em crimes dessa natureza. Agora, a proposta é ampliar a responsabilidade penal da pessoa jurídica também para os crimes praticados contra a Administração Pública, ordem econômica e sistema financeiro.
Outras alterações dignas de menção é a inserção do rol de crimes hediondos na parte geral do CP[7]. Ainda em relação aos crimes hediondos, o anteprojeto prevê o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal que julgou inconstitucional o dispositivo que dispunha sobre o regime de cumprimento de penas em sede de crimes hediondos. Portanto, o regime inicial será o fechado com a possibilidade de progressão[8]. Mencione-se também a exclusão da hediondez nos casos de tráfico de drogas quando o agente ostentar bons antecedentes e não integrar quadrilha ou organização criminosa[9].
Por fim, no que se refere à ação penal, o anteprojeto do novo CP prevê a possibilidade de renúncia da ação penal pública em determinadas circunstâncias, em moldes semelhantes ao plea bargain[10] observado no direito processual penal estadunidense e a figura do imputado colaborador[11].
Parte especial
Crimes contra a pessoa
Por sua vez, em relação à parte especial, o anteprojeto trouxe também muitas novidades. No caso do homicídio, temos a inserção da qualificadora se aquele é cometido em razão de preconceito de qualquer natureza[12]. Ainda no caso do homicídio, o anteprojeto do novo Código Penal traz a inovação dos chamados graus de culpa, assim como no Direito Civil, em que a culpa gravíssima é condição para o agravamento da pena imputada[13]. A ortonásia passa a ser reconhecida como excludente do crime de homicídio[14]. Nos demais crimes contra a vida, destacamos o reconhecimento da excludente de tipicidade nos casos de aborto quando constatada a anencefalia[15] e no período até doze semanas de gestação, com consentimento da gestante e mediante constatação de profissional da psicologia, quando aquela não tiver condições de levar adiante a gestação[16].
No art. 133 do anteprojeto, temos a tipificação da conduta de se exigir garantia financeira para prestação de serviço médico-hospitalar em condições de emergência e no art. 135 a conduta de participação de confronto entre grupos organizados.
Nos crimes referentes à liberdade individual, destaque para a tipificação das condutas inseridas nos arts. 147 e 148 que dispõem, respectivamente, sobre a perseguição obsessiva ou insidiosa, mais conhecida como stalking e também a intimidação vexatória, praticada contra criança e adolescente, também conhecida como bullying.
Crimes contra o patrimônio
Em relação ao crime de furto, foi reconhecida a aplicação do princípio da insignificância, hipótese em que o juiz aplicará somente a pena de multa se a coisa subtraída é de pequeno valor e o réu é primário[17]. Também foi prevista uma causa de extinção da punibilidade nos casos de reparação do dano pelo agente e sua aceitação pela vítima até a prolação da sentença de primeiro grau[18]. A última grande novidade no crime de furto é que este passa a ser processado mediante ação penal pública condicionada à representação praticado na sua forma simples ou quando incidentes causas especiais de aumento de pena[19] que antes eram tratadas como qualificadoras. As qualificadoras para o crime de furto constam agora nos §§ 4.o e 5.o sendo este último, o furto praticado com explosivo.
No crime de roubo, uma das principais inovações é a previsão do chamado roubo sem violência real ou dano psicológico. Nessa hipótese, combinada com o fato de que a coisa subtraída é de pequeno valor, o juiz deverá reduzir a pena de um sexto a um terço[20].
Acompanhando a atual tendência de crimes praticados pela via informática, temos tipificado no art. 164 do anteprojeto do novo CP, a conduta de destruir, danificar, deteriorar dados de informática sem autorização. Trata-se, portanto, de nova modalidade para o crime de dano fora das hipóteses previstas especificamente na nova parte correspondente a crimes cibernéticos. Ainda em relação aos crimes cometidos contra o patrimônio por meios de informática, temos a fraude informática, prevista no art. 170 do anteprojeto do novo CP.
Outra grande inovação é que o crime de corrupção deixa de ser próprio de agentes públicos e poderá ser praticado por particulares, na condição de representante de empresa ou instituição privada[21].
Por outro lado, no estelionato foi prevista uma causa especial de aumento de pena quando a fraude atinge um número expressivo de vítimas[22], salvo nos casos de concurso formal. Para o estelionato também foram previstas a aplicação de multa[23] e extinção da punibilidade nos casos de reparação do dano e aceitação da vítima até a prolação da sentença de primeiro grau[24]. Finalmente, de acordo com o § 5.o do art. 171 do anteprojeto do novo CP, o estelionato na sua forma simples será processado mediante ação penal pública condicionada à representação.
Outras alterações
Outras alterações significantes foram percebidas no anteprojeto para o novo CP, sobretudo no que se refere à inclusão de novas categorias de crimes. No título VI, temos os crimes praticados por meios cibernéticos, em que temos definições para efeitos penais, assim como a tipificação de condutas. A mesma situação é observada nas seguintes hipóteses: (i) crimes praticados contra eventos esportivos e culturais[25]; (ii) crimes relativos a estrangeiros[26]; (iii) contra os direitos humanos[27] e (iv) crimes de guerra[28].
Outros crimes, antes previstos em legislação especial foram trazidos para o bojo do Código Penal, como é o caso do tráfico de drogas e crimes correlatos[29] que passaram a ser tratados como crimes contra a saúde pública. A mesma situação pode ser observada nos demais casos: (i) crimes relacionados a armas de fogo[30]; (ii) abuso de autoridade que, inclusive, passa a ser tratado com maior rigor[31]; (iii) crimes praticados contra licitações e contratações promovidas pelo Poder Público[32]; (iv) crimes eleitorais[33]; (v) crimes contra a ordem econômico-financeira, entre eles a lavagem de dinheiro e crimes falimentares[34]; (vi) crimes praticados contra bens jurídicos difusos, entre eles ao meio ambiente e ao consumidor[35].
Outra situação é da inserção de novas condutas no texto do anteprojeto do novo CP que atendem à demanda da criminalidade do século XXI, como é o caso da definição e tipificação de crimes de terrorismo[36], afastando a incidência da defasada Lei de Segurança Nacional. O mesmo se aplica à tipificação e conceito de organização criminosa[37] e milícia[38], lacuna reclamada tanto por juristas quanto pela sociedade.
Conclusões
As primeiras impressões ao analisar o texto do anteprojeto do novo CP agradam. De fato, a comissão de juristas sob a orientação do ministro Gilson Dipp buscou dirimir conflitos que geralmente dividiam a doutrina e a jurisprudência em correntes majoritárias e minoritárias o que causava certa insegurança jurídica. Exemplo disso era polêmica questão sobre a sucessão de leis penais no tempo em que se debatia a possibilidade do juiz transitar entre leis mais benéficas ao réu.
Por outro lado, a aglutinação de leis penais especiais num sistema único, o qual se aplicam disposições gerais uniformes, certamente nos livrará também de incongruências recorrentemente criticadas pelos operadores do Direito. A atualização do CP de 1940 por meio de legislação extravagante sempre foi duramente criticada, sobretudo em razão do surgimento de sistemas penais paralelos ao CP, causando mais insegurança jurídica.
Outras inovações, muito oportunas por sinal, dizem respeito à inserção de novos tipos penais em decorrência de mudanças sociais, como o caso dos crimes praticados por meios eletrônicos. A criação de outros tipos penais também veio a suprir lacunas eminentemente jurídicas. Como exemplo, temos o caso da definição de organização criminosa em que a solução adotada  é adotar o conceito da Convenção de Palermo para a apuração de tais crimes em território pátrio.
A conclusão que se chega é que, de fato, o anteprojeto para o novo CP daria um ótimo CP.
Contudo, o texto foi para a apreciação do Congresso Nacional e, nesse momento, surgem as primeiras questões. A primeira delas diz respeito ao tempo que o CN precisará para debater e promover todas as alterações para o novo CP, considerando, por exemplo, que o atual Código Civil Brasileiro demorou quinze anos para estar pronto. Outra questão que exsurge, também diz respeito ao nosso sistema de representação parlamentar. Com efeito, a Câmara dos Deputados é composta por parlamentares que representam os grupos que colaboraram na sua eleição. É o que se espera de um regime democrático. Contudo, salta aos olhos certa falta de capacidade de se chegar a um consenso sobre questões públicas. Assim, as nossas leis acabam saindo do jeito que saem, partindo-se da ideia de que o interesse público é a somatória de todos os interesses privados, o que nem sempre é verdadeiro. Recentemente, pode-se perceber isso durante o processo de edição do novo Código Florestal. De um lado, a bancada ruralista que, aparentemente, não fez muitas concessões, a despeito da preservação ambiental ser também fundamental para a atividade agropecuária. Por outro lado, os ambientalistas que, a princípio, pareciam propor medidas que guardam um resquício do “crescimento zero” sem considerar que a falta de desenvolvimento econômico também gera prejuízos ambientais, pois originados na condição social de pessoas.
No caso do Direito Penal, a questão torna-se ainda mais complexa, relevando, inclusive, a exposição desvirtuada de crimes pelos meios de comunicação, no que o professor Luiz Flávio Gomes chama de populismo penal midiático. Certamente, essa exploração irá afetar os debates para o novo CP e isso já se mostrou muito prejudicial para o sistema penal brasileiro. Ora, sabe-se que criticada edição de leis extravagantes deu-se pela exposição e exploração de determinados crimes pelos meios de comunicação, ainda que outros tão graves mal cheguem ao conhecimento da sociedade por não terem sido objeto daquela exploração.  O populismo penal midiático reflete no entendimento da sociedade acerca sobre questões penais de forma negativa. Prova disso é o recente estudo publicado pelo Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo, em que se constatou o apoio da sociedade à pena de morte e a prática de tortura para obtenção de provas
Fonte:Blog do Delegado

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