domingo, 19 de agosto de 2012

"A advocacia pública cresce com a democracia"


Advogar para o Estado é diferente de advogar para o governo. Para Márcia Maria Barreta Fernandes Semer, presidente recentemente reeleita da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp), a diferença que, para leigos, pode parecer apenas de nomenclatura, deve ser resguardada com cuidado. A classe pode ter, em breve, uma nova Lei Orgânica que pode, segundo ela, misturar as duas coisas.
Trata-se de uma proposta do procurador-geral do estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos, que, para a Apesp, colocará a classe em situação delicada, incluindo entre suas atribuições a defesa de agentes públicos e permitindo, por exemplo, que se abra mão da análise jurídica de licitações e de aditivos de projetos do governo, hoje obrigatória.
Mesmo depois de ser rejeitada por unanimidade em uma assembleia com 600 procuradores, a proposta segue tramitando, impulsionada pelo procurador-geral. Ramos já chegou a dizer que a aprovação da lei é necessária ainda que a classe se oponha a ela.
A distância da procuradoria em relação à avaliação de possíveis irregularidades no governo não é a única preocupação de Márcia quanto ao novo projeto. Ela também aponta a falta de autonomia da carreira, que briga para conseguir status semelhante ao do Ministério Público ou da Defensoria Pública, por exemplo.
Atualmente, a proposta de orçamento da procuradoria é enviada à Secretaria de Planejamento do estado, que a remete recalculada, junto com o orçamento de todo o Executivo, ao Legislativo para votação. Já o MP e a Defensoria enviam as suas próprias propostas à Assembleia Legislativa, sem intermediários.
Dessa forma, segundo Márcia, é o Executivo quem diz aonde deve ir o dinheiro, controlando, indiretamente, as ações da procuradoria. Dinheiro que é outra preocupação: embora a carreira seja bem remunerada — o salário inicial é de R$ 17 mil —, a presidente da Apesp diz que a ideia é equiparar os valores aos recebidos por membros do MP e da magistratura. 
O pleiteado aumento de salários e do número de servidores tem como justificativa a maior carga de trabalho à espera dos procuradores. Com a aprovação da Lei da Ficha Limpa, supõe-se que os governantes estarão mais atentos para evitar atos que culminem com inelegibilidade. Como consequência, na opinião de Márcia, a procuradoria será mais demandada.
A procuradora defende também que a classe tenha maior poder para fechar acordos, diante do aumento de casos em que cidadãos, cada vez mais conscientes de seus direitos, levam à Justiça reclamações contra falhas do serviço público. 
Márcia Semer é procuradora do estado desde 1990, e está à frente da Apesp desde 2010. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1987, e tem especialização e mestrado em Direito do Estado, Administrativo e Constitucional.
Leia a entrevista:
ConJur — A aprovação da Lei da Ficha Limpa e da Lei de Acesso à Informação Pública podem tornar o papel da advocacia pública mais importante?
Marcia Semer — 
Quanto mais transparência nós tivermos dentro da administração, mais importante o trabalho do advogado que está lá para orientar o administrador com relação à validade das ações administrativas. Costumamos dizer que a advocacia pública cresce na democracia. A importância da advocacia pública tem crescido a partir de 1988. Aqui em São Paulo é um pouco deferente, porque a Procuradoria do Estado existe desde 1940, atrelada à Secretaria de Justiça. A partir da redemocratização, a Procuradoria passa a ter a situação de uma Secretaria de Estado. A partir da redemocratização, nós tivemos um crescimento da litigiosidade vertiginoso no Estado brasileiro. Eu entrei na procuradoria em 1990 com 280 ações na minha banca. Hoje em dia, qualquer procurador que trabalha no mesmo setor que eu trabalhava tem, pelo menos, 2 mil ações sob sua responsabilidade. Não existe mais receio das pessoas entrarem com ação contra o Estado. Elas estão mais conscientes dos seus direitos e ajuízam demandas contra o Estado. 
ConJur — O quadro de pessoal da PGE aumentou para acompanhar o crescimento da demanda?
Marcia Semer —
 Nós tínhamos, entre procuradores e defensores, cerca de 850. Hoje, temos um quadro de mil advogados públicos, fora o quadro da Defensoria Pública, que formou uma outra carreira. Além disso, todas as secretarias no estado de São Paulo têm consultoria jurídica formada exclusivamente por procuradores do estado. Isso é um diferencial de São Paulo, porque na União, a consultoria jurídica não é formada só por advogados da União, é formada também por contratados.
ConJur — Como é a estrutura financeira da procuradoria?
Marcia Semer —
 Nós somos uma secretaria de estado. Como toda secretaria, fechamos uma proposta orçamentária, que vai para a Secretaria do Planejamento. A Secretaria do Planejamento faz um equacionamento do montante geral de dinheiro e a proposta segue para o legislativo votar. Ou seja, não temos uma proposta que saia isolada do executivo, como o Ministério Público e a Defensoria, que mandam seus próprios orçamentos.
ConJur — Qual é a meta para essa nova gestão que se inicia à frente da Apesp?
Marcia Semer — 
Ao analisar a estrutura institucional do Ministério Público, da Defensoria e da advocacia pública, é possível perceber que a advocacia pública ainda carece de determinadas conquistas ou garantias peculiares às carreiras essenciais à Justiça, como a questão da autonomia. A autonomia tem sido um instrumento para atuação mais independente do MP e da Defensoria, mas ainda não alcançou a advocacia pública. 
ConJur — Por quê?
Marcia Semer —
 A advocacia pública foi introduzida como órgão constitucional na Constituição Federal de 1988. Ela teve essa conquista em um momento histórico no qual o país se dissociava de um Estado opressor para entrar em uma situação de democracia. A defesa do Estado, que era, à época, visto como aparato opressor, não teve os mesmos contornos que se deu, por exemplo, ao MP, que ganhou autonomia e foi considerado uma carreira equivalente à magistratura. Na área federal, por exemplo, a advocacia pública nada mais é do que um desdobramento do próprio MP. Era uma carreira única que foi desdobrada em MP, defesa do cidadão e advocacia pública  defesa do Estado. Tanto é que os profissionais que atuavam no MP à época podiam optar se queriam ficar na Procuradoria-Geral da República ou se queriam ir para a Advocacia da União. Em São Paulo, como não existia Defensoria Pública, quem ocupava e fazia as funções de Defensoria Pública por 60 anos era a Procuradoria-Geral do Estado. Com a criação da Defensoria Pública houve um momento em que os procuradores do estado puderam optar por integrar a Defensoria Pública. 
ConJur — Por que não seu autonomia plena à advocacia pública?
Marcia Semer —
 Primeiro essa questão do medo do Estado, por acharem que o Estado não pode ter tantos poderes. Também por uma visão também equivocada de que a advocacia do Estado é uma advocacia de governo. Evidentemente ela deve orientar o governante em relação à legalidade das políticas que ele pretende implementar e parametrizar as atividades políticas. Mas a função do advogado público, funcionário efetivo de carreira, concursado, é de defesa do Estado enquanto ente jurídico, patrimônio público, de interesse público. Se o interesse público do governante conflita com o interesse do Estado, não compete ao procurador do Estado dar guarida ao governante. Ele não é obrigado a fazer isso.
ConJur — A falta de autonomia impede que esse trabalho técnico seja feito da forma como deveria?
Marcia Semer —
 Ela não chega a impedir que o trabalho seja realizado, mas a advocacia pública poderia avançar na liberdade de tomar determinadas medidas que não só barrassem algum tipo de ação passada, mas que barrassem ações que eventualmente estejam acontecendo, e que por algum motivo, sejam prejudiciais ao patrimônio e ao interesse público.
ConJur — E como a senhora pretende avançar nessa questão?
Marcia Semer —
 A gente pretende avançar trabalhando no Congresso esse assunto, sensibilizando a classe política da importância do reconhecimento da advocacia pública. No ano passado, tivemos a oportunidade de fazer um seminário para o qual trouxemos a ministra Cármen Lúcia e o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. O ministro Toffoli tem uma posição muito interessante, de que a advocacia pública, o MP e a Defensoria Pública não são órgãos que integram, necessariamente, o Poder Executivo, porque são constitucionalmente consideradas carreiras essenciais à Justiça. Se o constituinte quisesse alocá-las no Executivo, não teria destacado um capítulo na parte relativa ao poder Judiciário a essas três carreiras. Elas têm um papel dentro do Estado: uma de defender a cidadania, outra de fazer a defesa dos hipossuficientes e a outra de fazer a defesa do patrimônio e interesse públicos do Estado.
ConJur — Como é a relação dos procuradores com o procurador-geral do Estado em São Paulo?
Marcia Semer —
 Há uma briga, pois o procurador geral apresentou um projeto de alteração da nossa Lei Orgânica, que organiza a Procuradoria do Estado, sobre a qual há grandes divergências. Há um grande descontentamento da carreira com relação à proposta apresentada por ele. Primeiro porque foi uma proposta gerada intramuros, no gabinete, sem a participação de mais ninguém, e, quando veio a conhecimento da carreira, veio com um tempo muito curto para nossa apreciação. Quando fomos tomando conhecimento do texto, o pessoal ficou boquiaberto com o que constava lá, ficou muito desgostoso. E ele insiste em encaminhar essa proposta. Nós fizemos uma assembleia geral com a carreira para discutir o assunto. Nessa assembleia geral, que contou com a presença de mais de 600 procuradores, 100% dos votos foram pela rejeição do projeto do procurador-geral. Nós tivemos também as manifestações do conselho da Apesp, que foram majoritariamente contrários à proposta. Nós tivemos a reunião dos ex-presidentes da associação nos últimos trinta anos e colegas das mais diferentes orientações políticas dentro da carreira foram contrários à proposta. Não obstante todas as manifestações, o procurador-geral diz que vai encaminhar o projeto para o governador. Em declaração pública, ele disse que “ainda que a carreira inteira não quisesse, ainda que todos os seus assessores, subprocuradores gerais subscrevam um abaixo assinado contrário ao encaminhamento do projeto”, ele vai encaminhar o projeto porque ele acha que é uma contribuição que ele tem para dar.
ConJur — Quais são as restrições que a classe faz ao projeto?
Marcia Semer —
 Ele apequena os órgãos em uma série de itens. Por exemplo, circunscreve a atuação da procuradoria na área consultiva ao assessoramento do Poder Executivo. Nós entendemos que essa é uma redução da competência constitucional da Procuradoria do Estado. Diferentemente da Advocacia da União, em que a Constituição diz que compete a ela fazer a defesa do patrimônio público, do interesse público e o assessoramento do executivo, a Constituição diz que às procuradorias dos estados compete fazer a defesa jurídica e o assessoramento do ente federado. Ela não discrimina o poder que vai contar com a assessoria jurídica das procuradorias de estado. Qua
Fonte:Conjur

Nenhum comentário:

Postar um comentário