domingo, 16 de setembro de 2012

....projeto do CP e o jogo dos 7 erros....



A ideia de que o Direito Penal é a solução para a criminalidade (que não deixa de ser nada mais do que o triunfo da esperança sobre a experiência) vem norteando o populismo legislativo há décadas.

A criação de tipos penais que buscam atingir a todo custo novas situações, ainda que a tutela penal seja excessiva (e por isso mesmo jamais estiveram dentro dela) ou tornar mais ampla sua abrangência, mais rigorosas suas penas ou seus regimes, tem claro comprometimento com essa submissão à “opinião pública”, rendição ao populismo midiático, que a edição de um Código Penal, estruturado e balanceado, deveria impedir.

Ao trazer o populismo penal para dentro do Código, os autores não apenas o legitimam, mas prolongam a sua sobrevivência. Não dá mais para dizer: quando o novo Código vier, esses tipos de ocasião serão revogados. Não, os tipos fazem parte agora de um Código de ocasião.

O Código Penal acolhe os tipos recentemente criados pelo Estatuto do Torcedor –que chega a punir com prisão de um a dois anos quem invadir local restrito aos competidores (art. 249), entre outros tipos criados com a nítida preocupação de preparar a legislação para osgrandes eventos. É sinal de que a realização da Copa do Mundo e das Olímpiadas prometem nos deixar um legado pior ainda do que apenas um esperado déficit.

A mesma preocupação de exibir aos visitantes uma legislação “moderna e eficaz”, pode ter levado os autores a tipificar o terrorismo (art. 239) de uma forma tão ampla e ao mesmo tempo genérica. Sim, o projeto não esquece de agravar a pena quando a conduta é praticada por arma de destruição em massa, mas a abrangência do delito sugere que a preocupação dos autores não foi propriamente o inimigo externo.

(2) A legislação penal de emergência

O terror pode, como uma novel Lei de Segurança Nacional, atentar contra o Estado democrático, ser causado por razões políticas ou ideológicas, e se restringir a condutas como a de manter alguém em cárcere privado ou invadir qualquer bem púbico ou privado. Será isso mesmo o terrorismo?

Não é preciso ir longe para inferir o potencial de criminalização de movimentos sociais que a nova legislação contém.

O antídoto do projeto, a esse respeito, é claramente insuficiente. A causa de exclusão esta lançada assim: “Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”.

A contrario sensu, portanto, caracteriza-se terrorismo se o juiz entender que os objetivos e meios do movimento social são incompatíveis e inadequados à sua finalidade. Risco grande, portanto.

E a punição ao terrorismo se amplia também para os lados, punindo-se quem dá abrigo ou guarida (seja lá o que isso queira dizer) a pessoa de quem se saiba ou se tenha fortes motivos para saber, que tenha praticado ou esteja por praticar crime de terrorismo -criando uma inédita figura culposa de favorecimento, com a bagatela de quatro a dez anos de reclusão (art. 241).

Por fim, nada menos conforme a esse direito penal da emergência, do que a causa de aumento do art. 242, do tipo de terrorismo, segundo a qual as penas serão aumentadas se as condutas forem praticadas durante ou por ocasião de grandes eventos esportivos e etc. Aqui se explica um pouco o porquê da urgência de aprovação do projeto.

Bullying e stalking são temas da moda e nada melhor do que aproveitar o prestígio e estender a eles a tutela mágica do Direito Penal. Que Direito Penal será esse, devem se perguntar os autores do projeto, se não pode ir a todos os campos, perscrutar todas as asperezas, intervir em todos os conflitos, mesmo os mais íntimos?

A inépcia dos tipos consegue ser ainda pior que a decisão de criminalizar.

A “perseguição obsessiva ou insidiosa” (art. 147) destina-se a tutelar a liberdade, mas não se sabe exatamente qual e por isso atira para todos os lados, protegendo a “integridade psicológica”, a “capacidade de locomoção” e a “perturbação a esfera de liberdade”, seja lá o que isso possa significar.

A intimidação vexatória, por sua vez, é pródiga nos verbos, em que reúne condutas bem distintas: intimidar, constranger, ameaçar, assediar sexualmente, ofender, castigar, agredir, segregar. Tira-se de barato que repete o erro da criminalização do assédio sexual, em queconstranger, tradicional verbo transitivo direto e indireto na linguagem do direito penal, vem esvaziado de seu conteúdo.

A questão mais grave, porém, é que todas essas condutas, a serem praticadas direta ou indiretamente (o que as torna ainda mais inimagináveis), devem ocorrer com o agente valendo-se de pretensa situação de superioridade.

E aqui o busílis é mais sério, pois ou o agente se vale de uma situação de superioridade (e teremos a criminalização do assédio moral, comum em especial nas relações de trabalho) ou apenas projeta sua própria e inexistente situação de superioridade (e o crime se aproxima, por exemplo, de alguma forma qualificada de injúria).

Mas nada representa melhor a emergência do que a criação do crime de milícia –dirigido a combater a situação das comunidades dominadas do Rio de Janeiro. Incapaz de estipular por si só condutas abstratas, o projeto resolve explicá-las ao público leigo, com a discutível técnica de exemplificação:

“Se a organização criminosa se destina a exercer, mediante violência ou grave ameaça, domínio ilegítimo sobre espaço territorial determinado, especialmente sobre os atos da comunidade ou moradores, mediante a exigência de entrega de bem móvel ou imóvel, a qualquer título, ou de valor monetário periódico pela prestação de serviço de segurança privada, transporte alternativo, fornecimento de água, energia elétrica, venda de gás liquefeito de petróleo, ou qualquer outro serviço ou atividade não instituída ou autorizada pelo Poder Público, ou constrangendo a liberdade do voto”.

O projeto faz crer, e nisso reside seu defeito, que a situação só pode ser punida pela criação de um novo tipo –este sim eficaz. Mas a ânsia de explicar as possibilidades de extorsão fragiliza a própria compreensão do “domínio ilegítimo de território”.

A dificuldade sempre residiu em questões de prova e, mais precisamente, em enfrentar o poder, não na ausência de tipo, eis que a cumulação de extorsões e formação de quadrilha sempre foi juridicamente viável.

Mas a ideia da autoria incorporada pela cláusula dodomínio do fato, a tipificação do enriquecimento ilícito(plasmando a inversão do ônus da prova), a ampliação do início da execução para atos preparatórios imediatamente anteriores, segundo o plano do autor, enfim, tudo está a indicar que, como a jurisprudência que vem se formando nos momentos de exceção, a exigência da prova tende a ser cada vez mais flexível.

O futuro parece não reservar ao direito penal a mesma rigidez do sistema de provas, fato de que, certamente, vamos nos arrepender no futuro, quando se espalhar para todos os tipos. Princípios, dificilmente se regeneram, uma vez rompidos.

O direito penal de emergência se junta ao direito penal do autor, ademais, quando o projeto estabelece circunstância qualificada pela participação de ex-agente do sistema de segurança pública (supra item 4). E, a despeito de ser um crime que se dirige fundamentalmente à intimidação coletiva (pelo tal ‘domínio territorial’ ou sobre a comunidade) a pena da milícia pode ser ainda aumentada quando a violência ou grave ameaça recair sobre pessoa incapaz, com deficiência ou idoso –como se fosse possível a existência de uma comunidade sem incapazes, idosos ou deficientes.

Quando a causa de aumento é obrigatória, representa na verdade, um disfarçado aumento de pena. E aí sim, o legislador da emergência pode se dar por satisfeito, porque o novo tipo já atingiu a pena máxima de trinta anos. Não há mais por onde crescer –quem poderá lhe acusar de não ter resolvido definitivamente o problema das milícias?

E como convém a um país que cresce no cenário internacional e passa a ser disputado como destino de imigrantes, nada melhor do que prevenir e dobrar as penas de quem, por exemplo, oculta clandestino ou estrangeiro irregular. Bush manda lembranças.

 

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46 anos, juiz de direito em São Paulo e escritor. Membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, autor do romance "Certas Canções". Colunista no Terra Magazine.

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