quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Prova ao Acaso - os Conhecimentos Fortuitos nas Escutas Telefônicas, os Limites do Direito e as Vanidades Normativas - Portugal e Brasil


RESUMO: O artigo pretende analisar, do ponto de vista jurídico e filosófico, de que modo podem ser utilizadas como prova as informações obtidas ao acaso em uma interceptação telefônica. A investigação abordará o tema a partir do direito comparado, com enfoque nas leis de Portugal e do Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Prova Criminal. Acaso.
"O acaso pode muito: tem sempre pronto o anzol; no rio de que nada esperas, aparecerá o peixe" - Ovídio
Introdução(1)
(A) Quando fraturou a perna em um acidente, e pôs-se, de sua rear window, a exercer seu ímpeto voyeur, o fotógrafo Jeffries - interpretado magnificamente por James Stewart -, não conjecturava que, diante de si, poderia encontrar desenvolvida a cena de um crime. No clássico de Hitchcock o desfecho é conhecido. Mas suponhamos, num exercício, que, deveras ocorrido um homicídio, nosso fotógrafo houvesse de ser chamado a juízo, como testemunha do que lhe foi dado ver, de sua janela indiscreta.
(B) Durante uma diligência tendente à busca de entorpecentes, na residência do investigado X, logram os policiais em encontrar uma arma de fogo que, na noite anterior, havia sido deixada por Y, amigo daquele, sob os seus cuidados, uma vez que se tratava de artefato utilizado num crime de roubo, e cuja descoberta lhe era imensamente desfavorável.
(C) Ao dirigir-se à casa de banho, numa estação de trem, o jovem amish Samuel jamais pensava em dar-se com um brutal assassinato, tanto mais com envolvimento de policiais. No celebrado Witness, de Peter Weir, é também fruto do acaso a descoberta de um dos assassinos. Pois ao sair de uma frustrada tentativa de reconhecimento de suspeitos, Samuel nota uma fotografia, exibindo um prestigioso Tenente, e o identifica como um dos malfeitores.
(D) Notícias recentes do Brasil dão conta de que, durante a interceptação telefônica deflagrada para apurar as atividades de um conhecido contraventor - na área de jogos ilegais, sobretudo -, tomou-se conhecimento de uma série de diálogos comprometedores que este mantinha com um Senador da República que, eloquente moralista de antanho, e Promotor de Justiça antes de político, em virtude das implicações das conversas, afastou-se de seu partido para melhor defender-se e, no âmbito político, já foi sancionado, com seu mandato cassado(2).
Cada um destes casos, resumidos para o efeito deste texto, apresenta particularidades e distinções que, entretanto, não haveremos de considerar. Importa-nos o que os assemelha, e é da obtenção de um conhecimento por acaso que se está, nisto que os une, a falar. Mas sob este ponto de vista, entretanto, a doutrina é rarefeita. Se o direito material desde muito contou, para o bem e para o mal, com aportes da filosofia, em processo penal, todavia, as portas parecem mais cerradas. Em algumas situações supõe-se a carência normativa, e postulam-se mais leis; noutras, investe-se numa leitura pessoal da Constituição, e dão-se soluções discricionárias para os problemas. Não obstante, algumas questões de enorme relevância permanecem irresolvidas.
Infelizmente não poderemos avançar no tema mais geral do surgimento de provas criminais ao acaso, e quais os efeitos que se lhas há de conferir. De modo que as hipóteses (A), (B) e (C) não serão diretamente abordadas. Isto, contudo, não nos frustra, porquanto indicia, isto sim, uma outra face da temática. Com efeito, a bem da verdade a maior parte das vezes que alguém se faz testemunha de um crime, fá-lo por acaso. O encontro de alguém que esteja voltando a sua casa, e apenas pretende descansar do dia exaustivo, com um outro que se exaure na agressão de um terceiro, que supunha discreta, dá ensejo a que o primeiro seja testemunha de um fato criminoso, e o é por acaso.
Como nossa suposição é a de que não se haveria de discutir a legitimidade de tal prova - e supomo-lo assim pelo menos aos casos (A) e (C) -, pretendemos nos concentrar no que concerne ao surgimento de elementos de convicção decorrentes das interceptações telefônicas, a exemplo do que enunciado no item (D), abordando, de modo não exaustivo todavia, as diversas situações que num tal contexto se podem apresentar. E elas não são poucas, seja dito desde logo. Na realística hipótese mencionada, aparece já a temática de saber-se se o surgimento ao acaso da prova adstringe-se ou não aos critérios de competência relativos àquele que não se apresentava como o alvo primitivo da interceptação - pois o magistrado que autorizou as escutas, dito seja, não o poderia fazer desde logo, fosse mesmo investigado o Senador. Nem seria o caso de aludir que, em Portugal, houve situação em tudo semelhante, pertinente embora a figura política de maior envergadura(3).
Pretendemos, nas entrelinhas, firmar posição sobre estas situações, e, igualmente, sinalizar nosso entendimento a propósito da viabilidade de se considerar, ou não, a prova que num processo penal surja por acaso, em outros âmbitos de apuração de ilícitos, que não ostentem, contudo, natureza criminal. As interceptações telefônicas são campo privilegiado para a abordagem do acaso em processo penal. Não obstante, parece que a vasta produção doutrinária sobre este tema não adotou este ponto de partida; ademais, mesmo com a significativa alteração do Código de Processo Penal Português, diversas questões, inclusive as acima mencionadas, ainda carecem de resposta segura, como ainda duvidosa é a questão da valoração do conhecimento assim obtido - obtido por acaso -, sendo certo que a lei dá-lhe a força de notitia criminis, sem entretanto avançar nos termos de sua potencial aptidão para ensejar, já adiante, um juízo de procedência da acusação.
A tais indagações corresponderá uma tentativa de estabelecer um estatuto filosófico do fortuito, que permita, de um lado, a sua inserção na inerente indeterminabilidade do acaso, e, de outro, a resposta ao questionamento crucial, a respeito da viabilidade de controle pelo Direito daquilo que, por definição, está na órbita do imponderável. Este controle, sabe-se, alude à teoria da proibição das provas, cuja análise, suposto que breve, haveremos de empreender.
Fá-lo-emos de igual modo - breve -, com relação à doutrina e jurisprudência concernentes aos conhecimentos fortuitos - fixando nossa análise ao caso português, mas atentos à repercussão do assunto em terras brasileiras -, menos, contudo, para detalhar os seus pormenores e divergências, mas para tentar entender as razões por que subsistem importantes questões por responder, apesar de o tema não ser novidadeiro.
Assim, não olvidamos o sentido prático do texto, e, no limite, evitamos o buraco, de que Tales não escapou. Mas antes é preciso falar do acaso.
2 O Acaso e o que se Não Pode Proibir: Limites Normativos do Direito
2.1 O Tratamento Filosófico do Acaso(4) e sua Expressão no que É Fortuito
Conforme referido, a abordagem dos conhecimentos fortuitos(5) derivados da interceptação telefônica, em nível dogmático, não conduziu à superação dos problemas que o tema suscita. Embora não sejam poucos os escritos a respeito, tudo tem indicado que sem uma tentativa de avançar as reflexões, para além do campo jurídico, as respostas às indagações mais relevantes permanecerão obscuras. Por isso que os conhecimentos fortuitos estão a cobrar a ampliação do escopo de nossa investigação, que, deste modo, não se há de limitar à teoria das provas.
Se a fortuidade, no sentido de um sucesso inesperado, não é algo exclusivo à interceptação telefônica, é de ser dito que, em tal meio de prova há algo de mais, tendente a alargar a possibilidade deste encontro com o acaso. As condições por que se realiza a interceptação de certo modo favorecem ocorrências fortuitas. Pois, em se tratando de mecanismo direcionado à comunicação entre pessoas, necessariamente fará envolver um terceiro, de regra não investigado, no campo de sua abrangência(6). E mais, a sua persistência por determinado interregno - a interceptação não se esgota num só ato -, torna deveras concreta a possibilidade de serem alcançados resultados diversos daqueles a que inicialmente se teria destinado, e nada contribui ao alvitre de que, na sua estatuição, tenha o legislador desconsiderado os corolários que se afiguram inerentes à medida.
Sucede, por certo, que a ocorrência de fatos para os quais não se dirigiu a ação não pertence apenas à órbita do jurídico. De que se está a tratar aqui?
Se o acaso(7), isto é, a ocorrência de fatos não cogitados, faz parte da condição humana, não se pode, naturalmente, investigar o tema apenas sob a ótica jurídica. E nem se pode olvidar que o fortuito - e a sorte(8), conforme veremos -, são expressões bem acabadas daquilo que, pode-se dizer, ocorreu por acaso. Nossa premissa requer, antes de tudo, a licitude da determinação de interceptação telefônica, de que derivou o encontro fortuito. Sem essa pressuposição, tudo o mais estaria comprometido, pela simples razão, de resto não objeto de nossa investigação, da extensão dos defeitos congênitos da prova. E assim, fixado que seja o pressuposto, cabe indagar, seguindo o questionamento pelo inverso, de que modo se poderia exigir que, diante da obtenção de elementos a respeito de determinado crime, por força do acaso, houvesse o Estado de manter-se inerte.
Poder-se-ia cogitar da imposição de um dever de abstenção quando o acaso contribuísse na obtenção de dados relevantes a propósito de determinado crime, pela simples razão de que este, até então, desconhecia-se?
É preciso aprofundar essa ideia, assinalando, com clareza, que, dizer-se que de um fato criminoso se teve conhecimento fortuito, é o mesmo que afirmar que dele se conheceu por acaso. Seja dito, então, o que é o acaso(9).
Muitas coisas acontecem por necessidade e outras tantas acontecem no mais das vezes; nenhuma delas pertence àquilo que se diz ocorrer por acaso. Diz-se que uma coisa vem a ser por acaso, quando ela vem a ser por concomitância(10). Por isso que o acaso é causa por concomitância, ou seja, reconhecem-se como resultado do acaso apenas as coisas que não ocorrem nem sempre, nem no mais das vezes(11).
Necessariamente não se podem determinar as causas das quais poderia provir o que se dá por acaso e é por essa razão que se reputa que o acaso pertence ao indeterminável(12). Daí a dificuldade de o Direito lidar com aquilo que se dá por acaso, porque o acaso é algo que foge à razão, pois a razão se aplica às coisas que são sempre ou às que são no mais das vezes(13), e o acaso não pertence a este domínio(14).
De modo que se pode dizer, seguindo-se a síntese de Angioni(15), que x produz por acaso y se: (i) a conexão causal entre x e y não é uma conexão necessária, tampouco se dá no mais das vezes; (ii) o resultado y não foi a causa final em vista da qual x ocorreu; (iii) de algum modo o resultado y poderia ter sido causa final em vista da qual x teria ocorrido, ou seja, poderia ter sido escolhido como escopo a ser realizado, se o agente soubesse das circunstâncias favoráveis à sua realização.
Ao tratar do acaso em sua teoria das causas(16), teve Aristóteles a intenção de demarcar que, em si mesmo, o acaso não é uma espécie particular de causa. Justamente porque o evento casual resulta de conjunção concomitante de causas, das quais nenhuma, isoladamente tomada, é causa suficiente do resultado. Assim, o que é casual surge por concomitância, de forma que o que permite que algo seja denominado causa daquilo que resulta por acaso é a conjunção concomitante entre duas séries causais.
Em termos mais próximos ao nosso tema, seria o mesmo dizer-se que a circunstância de um determinado crime estar a ensejar uma interceptação telefônica (i) e o fluxo de informação pertinente a outro crime ou outra pessoa (ii), no contexto do que se está a fazer auscultado, em concomitância, levam à obtenção de informações relevantes sobre um fato criminoso (y). Consideremos a conjunção de (i) e (ii) como x, para dizer que a conexão causal entre x e y não é necessária e nem se dá no mais das vezes, visto que o conhecimento fortuito de um determinado fato nem sempre, e nem no mais das vezes, é consequência de uma interceptação telefônica; ainda mais, porque o resultado y não foi a causa final em vista da qual x ocorreu.
Seria idônea, contudo, a pergunta sobre se, com tal perspectiva, não se causaria um desequilíbrio, uma espécie de diferença quanto aos benefícios do acaso, no âmbito do processo penal. Embora tal asserção não perceba que há certa neutralidade no acaso, pois dele pode resultar algo bom ou ruim(17), é verdade que, na maioria das vezes, diga respeito a um benefício. De maneira que conceber o acaso como sorte não parece indevido. Mas, se é assim, a questão muda, e, sorte de quem?, indagar-se-á.
Vejamos isto noutros termos - pois sobre a sorte nos ocuparemos ao final -, com a inserção da dimensão temporal na pergunta. Nada parece afastar que, por acaso, tenha-se conhecimento de determinado fato criminoso que sequer aconteceu; que esteja situado no futuro(18). Imaginar que numa interceptação telefônica alcancem-se informações de planejamento de um crime qualquer, de um ataque futuro a pessoas, como quer que seja, não é de jeito algum assentir com um argumento ad absurdum. Que, a partir daí, possam-se acionar mecanismos de evitação do crime, prevenindo a sua ocorrência, de que se conheceu por acaso, é algo que, crê-se, não será colocado em discussão. E mais, isto independente de o crime de que se está a cogitar pertencer ou não a qualquer tipo de catálogo(19).
Dir-se-ia, deste modo, que se não pode afastar do Estado, na sua expressão de interessado na evitação de crimes, o elemento sorte, a casualidade, enfim, a possibilidade de ter a seu lado uma coincidência ou um acaso. Seria muito diferente o que sucede no campo da persecução penal, direcionada que seja a um fato situado no passado?
Desde logo avançaríamos para dizer que, em não tendo havido escopo de burla, por parte do Ministério Público ou dos postulantes da interceptação, no sentido de obnubilar a visão judicial, pleiteando algo, mas visando descobrir outra coisa - o que, convenhamos, é em tudo excepcional -, não se poderia afastar a prova que se deu a conhecer por meio da sorte ou do acaso. Mas sobre isso avançaremos depois. Por ora, frisemos que tal conhecimento, isto é, a obtenção de prova ao acaso, ou, na linguagem processual, a aquisição de um conhecimento fortuito, sequer é suscetível de proibição(20). Está, como será visto, num espaço livre de Direito.
2.2 Alcances da Proibição de Produção de Prova
Qualquer pretensão de encontrar-se, nestas linhas, uma abordagem exaustiva a respeito do candente tema das proibições de prova ensejará frustração, e a advertência serve, desde logo, para a circunscrição da abordagem ao que mais de perto concerne com os conhecimentos fortuitos.
Disto não decorre, todavia, deva-se deixar ao olvido o estudo precursor de Beling, que já em 1903 dava conta de que, na suma, estava-se a tratar das limitações à investigação da verdade no processo penal(21). Se, embora o desenvolvimento da doutrina avançou nos conceitos, para registro deixe-se avençado que, em Beling, as proibições de prova se concebiam como as normas jurídicas que prescrevem deixar de lado um determinado fato (proibições de prova absolutas) ou declaram inadmissíveis certos meios de prova (proibições relativas)(22). Com algo de notável, mencionado desde então, no sentido de que, por se tratar de uma limitação auto-imposta pelo Direito, não se estaria a falar do que não se consegue provar, antes, sim, do que não se deve provar. Tudo a revelar que o reconhecimento de uma esfera da personalidade do particular se opõe em medida significativa à aspiração de "averiguación de la verdad por los órganos de la justicia penal"(23).
Acatemos, neste sentido, a distinção estabelecida por Sousa Mendes, de que a prova - essa expressão tão cheia de sentidos, como diz -, compreende, (a) enquanto atividade probatória, o "esforço metódico através do qual são demonstrados os factos relevantes para a existência do crime", ao passo que (b) no sentido de meios de prova, dá conta dos elementos com base nos quais os fatos relevantes podem ser demonstrados, sendo certo ainda que a prova, (c) enquanto resultado da atividade probatória, é a motivação da convicção de quem decide acerca da ocorrência dos fatos relevantes(24).
De modo que a partir dessa configuração se pode compreender que as proibições voltam-se às diversas formas sob as quais as provas apresentam-se; vale dizer, há proibições no tocante à atividade de demonstração de fatos, algumas que são vedadas, como no que concerne à valoração dos elementos eventualmente produzidos(25). A doutrina das proibições de prova compreende, pois, a proibição de investigação de determinados fatos relevantes para o objeto do processo(26), bem como as proibições de levar determinados fatos em consideração na sentença(27).
É verdade que a intuição mais elementar indicaria que a proibição de produção de prova estaria em conduzir à proibição de valoração da prova; porém, isso nem sempre sucede. Há, com efeito, algumas proibições de produção que não implicarão na vedação à valoração judicial da prova(28).
Seria de indagar-se, então, se pode ocorrer de ter-se por vedada a valoração de prova com relação à qual inexista vício ao ensejo de sua produção. Se bem que a questão da valoração se vá analisar mais adiante, não resistiríamos, já aqui, em apontar a adesão de Birnbaum, feita num contexto diverso é certo, ao pensamento de Stübel, para afirmar que o signo distintivo de uma ação não pode ser buscado em uma circunstância casual. Isto é: "la naturaleza da acción no depende del acaso. Si una acción no es antijurídica cuando queda sin resultado, tampoco puede ser tal cuando lo tiene"(29).
De maneira que, mesmo sendo certo que as ingerências estatais não se podem admitir em geral, isto é, sem um prévio condicionamento normativo(30), a cuja obediência se vincula no mais das vezes o juiz, que autoriza ou não a realização de determinadas atividades pelos órgãos de investigação, isto não afasta a circunstância de que, como em nossa hipótese de trabalho, simplesmente seja de inviável regulação jurídica o surgimento de provas que se possam utilizar em contexto diverso daquele em que tiveram nascedouro.
Com efeito, como expõe Roxin, as provas criminais estão a exigir uma estrita obediência aos requisitos de sua produção, sob pena de não se afigurar lícita a sua utilização(31), porquanto este tema não se reduz meramente a aspectos processuais, revelando antes de tudo uma questão que responde à compreensão das relações entre o Estado e o cidadão(32). Entretanto, no que concerne aos conhecimentos fortuitos, estamos diante de uma situação que refoge à órbita do lícito/ilícito, quando mais não seja porque a finalidade última da teoria da proibição de prova, quanto à sua produção, não tem, aqui, qualquer capacidade de rendimento.
Digamos melhor, para assinalar que é o inequívoco escopo de não afetação injustificada de direitos fundamentais a base em que se estrutura a proibição de produção de provas(33). Nem sempre cogitado pela doutrina, é, contudo, relevante o aspecto motivador das normas processuais penais, para o efeito de indicar que, ao se proibir um certo método de obtenção de prova, estar-se-á a imprimir, como corolário, uma tentativa de conteúdo dissuasório(34), mormente sobre os agentes policiais, mas também com relação àqueles que direcionam a atividade de persecução penal(35).
Sucede que, é elementar, apenas frente àquilo que se pode evitar, ostenta a dissuasão algum sentido(36).
Quando o conde russo Araktschejev ordenou, numa colônia militar, que as mulheres todos os anos deveriam dar à luz um filho, e que se fosse filha haveriam de pagar uma multa(37), não produziu Direito, e sim arbítrio, porque nem tudo compete ao Direito controlar. Assim se dá com o acaso.
2.3 Espaço Livre de Direito, ou de como o Direito Não Compreende "Tudo"
O item 7 do artigo 187 do Código de Processo Penal Português estabelece ser possível a utilização de conversas ou comunicações gravadas num processo, em outro, que esteja em curso ou a instaurar, se (a) a interceptação original se tiver feito em meio de comunicação utilizado por pessoa indicada no item 4 de referido dispositivo - acusado, rectius: arguido, intermediário ou vítima - e (b) na medida em que essa prova seja indispensável à demonstração de crime do catálogo.
Do que se vê, aqui tanto se poderá estar diante de um denominado conhecimento de investigação - retornar-se-á ao tema -, como seja o surgimento de elementos contra o acusado, por crime conexo ou em desenvolvimento àquele que determinou a interceptação, como diante de um verdadeiro conhecimento fortuito, por exemplo, a indicação relativa a um crime do catálogo, mas que nada tenha a ver com o que ensejou a interceptação, praticado por um intermediário ou terceiro que tenha mantido conversações com o alvo do meio de prova.
Ocorre que a ressalva inicial, deste mesmo item 7, no que estabelece a remessa, já agora de todo e qualquer conhecimento fortuito, à disciplina do artigo 248 do CPP Português, ou seja, fixando a necessidade de comunicação ao Ministério Público, à guisa de notícia do crime, a tornar possíveis uma série de medidas restritivas, e habilitar o início da perseguição penal - convém não olvidar o artigo 262, item 2, do Código de Processo Penal de Portugal, por exemplo -, permite afirmar, com alguma reflexão, que o artigo 187, item 7, do Código de Processo Penal, é de uma inocuidade quase total(38).
No quadro atual da técnica, em que não se pode isolar apenas e unicamente as falas, frases e comunicações daquele tido como alvo da interceptação - sem contar que isso, aliás, mesmo quando tecnicamente viável, poderia tornar inservível ao processo penal a prova, porque muitas vezes é o conjunto de diálogos, as conversas mesmo, no que reveladas em seu conjunto e, portanto, sem dispensar o que manifestado por ambos interlocutores, que forja o material probatório de algum modo relevante -, o surgimento de conhecimentos fortuitos, rectius: de uma prova ao acaso, suplanta os limites normativos.
Assim, proibi-lo é írrito; permiti-lo, uma desnecessidade e regulamentá-lo, uma vanidade(39). É espaço livre de Direito. Expliquemos isso melhor.
A compreensão antiga de identificar-se o Direito com a lei fez desenvolverem-se uma pluralidade de ideias a respeito das potenciais lacunas no sistema jurídico. Com efeito, Engish dizia da lacuna uma "incompletude insatisfatória no seio do todo jurídico"(40), considerado esse todo jurídico ou (a) o direito legislado, de modo que a lacuna então seria o mesmo que "lacuna da lei", ou (b) o direito que abrange o consuetudinário, sendo aí a lacuna a ausência de resposta a uma questão jurídica pela legislação e pelo costumeiro(41). Não é disso, porém, que estamos a tratar(42).
É que é fora do nível das lacunas que Engish trata do conceito de espaço ajurídico, ou espaço livre de Direito, como sendo o domínio não afetado pelo Direito, isto é, concernente àquilo que "se situa completamente fora do Direito"(43) - dir-se-ia extramuros da cidadela jurídica(44) -, seja por uma deliberada e consciente intenção legislativa, que não ligaria consequências jurídicas a determinados fatos, seja por não serem determinados fatos suscetíveis de regulação(45-46).
Também Larenz afirma a existência de lacuna na lei, quando essa "não contenha regra alguma para uma determinada configuração no caso"(47-48), referindo, entretanto, a ocorrência de casos em que sucede um silêncio eloquente da lei. Noutras palavras, assenta Larenz que somente se cogita de lacuna enquanto a questão de que se trata é (a) idônea a e (b) está necessitada de regulação jurídica, havendo, portanto, um espaço livre de Direito, porquanto determinadas situações não seriam "susceptíveis, por natureza, de uma regulação jurídica"(49), e, deste modo, não configurando lacunas, indicariam uma órbita infensa à regulação jurídica(50).
Da mesma maneira, Kaufmann alude à doutrina do espaço livre de Direito, dando conta de que, apesar da designação, que reputa pouco ajustada, o que estaria em causa não é propriamente a ausência de regulamentação de uma dada situação, mas, sim, a sua não valoração(51); ou seja, apesar de no espaço livre de Direito situarem-se comportamentos relevantes, estes não seriam "valorados nem como lícitos nem como ilícitos"(52).
Seja dito que, não obstante se nos afigure estejam os conhecimentos fortuitos, no que diz com seu surgimento, neste âmbito insuscetível de regulação, em ordem a poder afirmar-se que a sua aparição não se qualifica como habilitada para requerer incidência jurídica - e, assim, nesta medida não propendem a revelar qualquer confrontação com a ordem processual penal -, intentou o legislador português atuar, e o fez, cremos, de maneira frustrante. A adoção de regras que se queiram pormenorizadas, diante do que se não pode afetar pelo Direito, ao invés de ensejar reduções de complexidade, causar-lhes-á(53).
Mas se o quadro legal está posto, e o conhecimento fortuito é, em todo caso, de índole a ser usado como notícia do crime, dando início à perseguição penal, sendo este o corolário ainda que de crimes que não sejam do catálogo se cuide, no campo da valoração da prova a questão ainda está por responder.
Porque não diz muito, convenhamos, aduzir-se o princípio da intervenção equivalente - ou princípio da intervenção substitutiva hipotética -, com o efeito de indicar-se que os conhecimentos fortuitos provenientes de medidas processuais penais apenas podem ser utilizados em relação aos crimes para os quais a mesma medida processual fosse cabível(54), se lhes é dado o efeito de "pista para posteriores investigações"(55), ou de notícia do crime, como indicado na lei portuguesa.
Diz-nos menos, ademais, a suposição de que, isto não obstante, ao depois, ou seja, quando do momento eventual de julgamento, tal conhecimento fortuito, sobre cuja aquisição não pende qualquer peia, haveria de inserir-se no contexto de provas cuja valoração é proibida. Este, todavia, parece ser o caminho amiúde seguido pela doutrina portuguesa; e, para encetarmos nossa discordância, requer-se falemos um pouco dela.
3. A Situação Portuguesa e o Olvido do Acaso
3.1 Antes da Reforma Processual
No que precedeu à reforma processual de 2007, o panorama em Portugal, a propósito do conhecimento fortuito nas interceptações telefônicas mostrava-se, de certo modo, duvidoso. Em termos doutrinários, a elaboração de Costa Andrade, cunhada em 1992, trouxe significativo contributo ao entendimento da matéria. Já à época, noticiava o autor o exponencial relevo pragmático das escutas, que, em virtude dos avanços tecnológicos, passavam a se constituir em importante fonte de prova no processo penal.
Preocupado com as descontinuidades que dominavam o discurso a respeito das proibições de prova, Costa Andrade principiava pela distinção entre a proibição de produção e proibição de valoração, que já foi suscitada alhures, assinalando-a, porém, sempre problemática, fazendo com que, no campo específico das escutas telefônicas, adquirisse maior intensidade, dado o paradoxo que derivaria da (a) sua manifesta eficácia do ponto de vista da perseguição penal e (b) de sua drástica danosidade social, à conta dos direitos fundamentais envolvidos(56).
Mas é, talvez, na demarcação entre o que sejam os conhecimentos de investigação, como categoria autônoma dos denominados conhecimentos fortuitos, que reside a maior contribuição de suas lições ao tema sob exame(57).
Era, e é, a impossibilidade de limitação da escuta aos fatos a que se destinara a razão determinante de se equacionarem os problemas derivados dos conhecimentos fortuitos. Assim, ao empreender a conceituação de conhecimentos da investigação como sendo os fatos que estivessem (a) numa relação de concurso ideal e aparente com o crime que motivou e legitimou a utilização da escuta telefônica, bem assim (b) os delitos alternativos que com aquele estivessem numa relação de comprovação alternativa de fatos, afastava Costa Andrade a qualificação de mera fortuidade a tais descobertas eventuais, fazendo o mesmo, como se sabe, aos casos em que a motivação de interceptação telefônica fosse a (c) apuração de uma associação criminosa, e se desse a descobrir os crimes que se revelassem como constituindo a sua finalidade(58). Ainda que a assunção de conhecimentos dissesse respeito a pessoa alheia à determinação da interceptação, incluir-se-ia, ademais, na perspectiva de conhecimentos da investigação as (d) diferentes formas de concurso de agentes (coautoria e participação), bem como as diferentes formas de favorecimento pessoal, auxílio material e receptação.
A indicação da categoria autônoma dos conhecimentos de investigação tinha a virtude de reduzir o âmbito da problemática, porque em tais casos haveria de se conceber a exclusão da proibição da prova assim obtida(59). O problema dos conhecimentos fortuitos, entretanto, remanescia.
Para a sua solução preconizava-se um início de argumentação que, fundado no princípio da proporcionalidade, estaria em indicar a proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos que não estivessem em conexão com um crime do catálogo, e, além disso, preocupado com que uma redução de exigências para a admissibilidade dos conhecimentos fortuitos redundasse numa minimização dos direitos fundamentais dos envolvidos, Costa Andrade propunha a inclusão de um outro requisito, fundado numa espécie de estado de necessidade investigatório, que o legislador teria "arquetipicamente representado como fundamento da legitimação (excepcional) das escutas telefónicas"(60). Sem prejuízo disso, todavia, consentia-se com o efeito de notícia do crime, ao conhecimento fortuito desconectado do crime do catálogo sob investigação.
Em 2004, Aguilar investigou o tema, acatando a distinção entre (a) conhecimentos da investigação, referentes a fatos obtidos através de uma escuta telefônica legalmente efetuada, e que se reportassem ou ao crime cuja investigação legitimou a realização daquela ou a um outro, pertencente ou não ao catálogo legal, que estivessem baseados na mesma situação histórica de vida daquele e (b) conhecimentos fortuitos, os quais se caracterizariam por não se reportarem ao crime que motivou a realização da interceptação e nem a qualquer outro alusivo à mesma situação histórica daquele. AGUILAR, como é sabido, partia da crítica à concepção de Costa Andrade, que acusava de vaga e suscetível de permitir uma abrangência demasiada aos conhecimentos da investigação, tornando inócua a sua distinção quanto aos conhecimentos fortuitos, para, a partir daí, postular a adoção de solução legislativa mais definida, que minimizasse o problema, levando-se em conta que o adensamento do conceito de conhecimentos da investigação haveria de observar os critérios do artigo 24 do Código de Processo Penal Português, pertinente aos casos de conexão, de forma que a indicação dos conhecimentos fortuitos se faria de forma negativa, isto é, assim o seriam aqueles conhecimentos obtidos não qualificados como da própria investigação.
A ausência de disciplina legislativa, à época em que elaborou seu livro, faria com que houvesse de dedicar uma "recusa total de valoração" aos conhecimentos fortuitos, com a, ainda, extensão da contaminação probatória aos meios de prova secundários adquiridos através daquelas gravações(61-62).
Naturalmente, Aguilar não excluía a atribuição de uma relevância investigatória aos conhecimentos fortuitos, que seriam, portanto, passíveis de utilização como notitia criminis, no caso em que inexistisse um processo que tivesse como objeto esses mesmos fatos(63).
Também é caso de referir a obra de Conceição(64), em que a autora situava o tema no âmbito da proibição de valoração da prova, e não de proibição de sua produção, em conta da premissa de que o conhecimento fortuito encontra pressuposta a realização de uma escuta telefônica válida e, assim, aderia à distinção entre conhecimentos da investigação e conhecimentos fortuitos, para dizer que o conhecimento de fatos que não foram considerados quando da autorização da escuta não podem dela fazer parte por ausência de autorização judicial, de modo que se estaria diante de prova proibida. Em adesão à tese de Aguilar, sustentava que qualquer conhecimento fortuito não poderia ser relevado no processo em curso, se bem que admitisse a sua valoração "para instruir ou iniciar um processo autónomo"(65).
Os Tribunais atendiam à elaboração que distinguia os conhecimentos da investigação dos conhecimentos fortuitos, ainda que inicialmente a referência não se fizesse em pormenor.
Com efeito, já no ano de 1995 o Tribunal da Relação do Porto, no julgado 9441000(66), teve ocasião de assentar que em matéria de escutas era aceite o princípio de vedação dos conhecimentos fortuitos que não estivessem em conexão com um dos crimes do catálogo. Em decisão de 23 de Outubro de 2002, relatada pelo Conselheiro Leal Henriques, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal indicou acatamento à distinção e consentiu que, mesmo na hipótese de o conhecimento fortuito discrepar de um crime do catálogo, terá a virtude de funcionar como notícia de um crime, a ensejar a sua apuração, bem como que, configurado que seja conhecimento da investigação, justificar-se-ia que dados obtidos através da escuta telefônica para determinados fatos fossem extensíveis à prova dos demais, que com ele tivessem relação de afinidade. Igualmente, em Outubro de 2003, no julgamento do processo 03P2134, o Supremo Tribunal de Justiça Português voltou a estabelecer que, em virtude da íntima conexão entre os crimes descobertos fortuitamente e aqueles a que se dirigia a interceptação, isto é, afirmando tratar-se, no caso, de conhecimentos da investigação, a prova era de se conceber como válida(67).
Não é certo, entretanto, que no ensejo da reforma processual tenha o legislador português acatado a distinção conhecimento fortuito/conhecimento de investigação, em si crucial no modo como se configurou a doutrina em Portugal(68).
E a própria ausência de uniformidade doutrinária, em precisar-lhes os critérios de distinção, contribuiu com a subsistência dos problemas que, em rigor, a reforma pretendia resolver. Vejamos um pouco mais disso.
3.2 A Alteração Legislativa e a Manutenção das Dúvidas: o que Mudou?
Nas decisões posteriores à reforma processual não parece ter havido significativa mudança na orientação dos Tribunais portugueses, presos ainda à concepção anterior. A depender de circunstâncias nem sempre estáveis, é o próprio Tribunal que dá o efeito de conhecimento de investigação ou de conhecimento fortuito, àquilo que sobressai aos escopos originários da interceptação telefônica, sem que se possa traçar um caminho menos fluido para a elaboração. A qual, em boa verdade, segue com remissões à doutrina precedente, sem atualizá-la aos novos termos da lei, quase tornando acertado, sem mais, responder-se com um nada, à pergunta colocada, isto é, sobre com a alteração legislativa, o que mudou?
O Tribunal da Relação do Porto, por exemplo, no julgamento do processo 0743305, em Janeiro de 2008, apontou que não cabem na categoria de conhecimentos fortuitos, mas antes devem ser compreendidos como conhecimentos da investigação, os resultados obtidos através da interceptação e gravação de conversações telefônicas, de outro acusado, numa situação de participação. As remissões a que alude o acórdão são, fundamentalmente, do texto clássico de Costa Andrade, apontado alhures, e a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.10.02, sobre a qual já se fez referência.
No Recurso de Uniformização de Jurisprudência, de resto rejeitado, apreciado em 29 de Abril de 2010 - n. 128/05 -, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal fez coro à persistência dos critérios tendentes a diferenciar os conhecimentos da investigação dos conhecimentos fortuitos. No fim, não se analisou o recurso porquanto as decisões em cotejo eram diferentes, mas iguais, permita-se a troça(69).
Também em Março e Maio de 2010, respectivamente nos processos 538/00 e 156/00, o Supremo Tribunal de Justiça tratou do tema, para indicar serem, nos casos, conhecimento da investigação a obtenção das escutas discutidas, inclusive no segundo acórdão, relativo à prova de crime de branqueamento de capitais, se bem que a interceptação telefônica se dirigisse à investigação de contrabando, assinalando tratar-se de violação a bens jurídicos da mesma família, em ordem a consentir com sua utilização.
É, ainda, de se mencionar a decisão de Outubro de 2010, do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, no processo 70/07, em que se estabeleceu não haver proibição na utilização de prova quando a interceptação de comunicação telefônica foi devidamente autorizada em relação a um investigado e, durante seu curso, adquiriram-se conhecimentos a respeito de outro, desde que o crime respeitante a este pertença ao catálogo permissivo da medida. Neste caso, ainda que se tenha afirmado tratar-se deveras de conhecimento fortuito, isto é, alheio mesmo àquele que motivara a interceptação, e concernente a outra pessoa, deu-se pela validade da prova, com indicação expressa do artigo 187, n. 7, do Código de Processo Penal e a consequente ressalva de que se deve cuidar de crime do catálogo, sem exclusão de, em não o sendo, dar-se o efeito preconizado peloartigo 248 do Código de Processo Penal Português.
Em seu voto, gostaríamos de destacar, o Relator Pires da Graça afirmou: "XV - A questão em termos de processo penal relativamente ao meio de prova 'intercepções telefônicas' não é uma insuportável sujeição em termos abstractos a uma regra de produção de prova tarifada, sem qualquer sustentação teórica ou prática, mas sim a ponderação dos parâmetros impostos em termos constitucionais e, obtida a conformação a estes, uma questão de convicção do tribunal em relação à prova produzida. Se foram observadas as regras de produção de prova legalmente consignadas nada impede que as intercepções telefónicas constituam o único meio de prova a fundamentar a convicção do tribunal". (grifo nosso)
E esse ponto é necessário abordar.
Se a reforma legislativa em Portugal optou por permitir a utilização dos conhecimentos fortuitos apenas quando pertinentes ao suspeito ou arguido e eventuais intermediários deste, sempre, porém, exigindo-se para tanto a referência a um dos crimes do catálogo; e, isto não obstante, determinou sirva como notitia criminis aquilo que não se enquadrar nestes requisitos, de forma a, a partir daí, poder-se dar curso à nova investigação ou processo, não esclareceu, todavia, a força probatória que hão de consubstanciar, no novo processo, o conteúdo que lhes corresponda.
Fica a indagação sobre se a alusão de Pires da Graça, que destacamos acima, em tal caso teria também aplicação(70).
Não é, todavia, enfrentado a fundo o tema pela doutrina portuguesa que se seguiu à reforma.
Susano, para exemplificar, passa ao largo dessas dificuldades, em obra que, entretanto, no título indicava a pretensão de tratar das exigências e controvérsias do atual regime(71). Em suas Notas Soltas Sobre as Alterações de 2007 ao Código de Processo Penal Português, por sua vez, Marques da Silva, se bem que aluda à motivação histórica das modificações, deixa em aberto os temas que ainda subjazem à matéria(72). Aborda, contudo, as mudanças ao artigo 187 do Código de Processo Penal em seu Curso, no qual indica que a nova regulamentação legal permitiria leitura de amplitude provavelmente maior do que a desejada pelo legislador; é que, a rigor, a possibilidade de os conhecimentos fortuitos virem a embasar novo processo, contra qualquer pessoa, por força de servirem como notitia criminis, deixaria de algum modo sem sentido a suposta referência legal àqueles apontados no item 4 do artigo 187(73).
É verdade que Guedes Valente captou adequadamente ser difícil conjugar-se a ideia de impossibilidade de valoração dos conhecimentos fortuitos ao mesmo tempo em que se lhe admite a condição de notitia criminis, para ensejar nova investigação ou processo, como se essa não viesse a ser posteriormente apreciada e valorada pela autoridade judiciária competente(74). Segundo expõe, franquear-se a utilização do conhecimento fortuito como um "auto notícia" poderia legalizar a interceptação telefônica na apuração de crimes que sequer a admitem, uma vez que não pertencentes ao catálogo, no que a reforma processual, ao revés de solucionar o problema, tê-lo-ia aguçado(75).
E, a partir daí, sustenta que mesmo depois da alteração ao Código de Processo Penal, manteria o entendimento(76) de que somente são de valorar os conhecimentos fortuitos que se relacionassem a crimes do catálogo, quer o sujeito destes fatos seja o investigado, quer seja um intermediário - mas, neste caso, apenas se participou das comunicações, exigindo-se ainda que a utilização destes conhecimentos se mostre imprescindível, a partir de uma "probabilidade qualificada", isto é, um juízo hipotético no processo derivado, de que a interceptação telefônica ali se faria também indispensável(77).
Noutras palavras, cuidar-se-ia de, no processo sequente, realizar-se um juízo de hipotética repetição da intromissão(78), o qual o autor aparenta a um estado de necessidade investigatório, como a indagar-se se neste processo autônomo seria de autorizar-se a interceptação, para, positiva a resposta, assentir-se com a utilização do conhecimento fortuito, naturalmente já obtido. Como é evidente, esse juízo afastaria a possibilidade de utilização do conhecimento fortuito no concernente a crimes não pertencentes ao catálogo legal, pois, aqui, a autorização de interceptação já não se poderia dar.
Não concordamos com essa solução.
É que, para além de sua correspondência aos termos estabelecidos pela legislação portuguesa ser no mínimo discutível, uma vez que a invocação do artigo 248 do Código de Processo Penal não reduz à só condição de notícia do crime o conhecimento fortuitamente obtido, parece estranho apor a pecha de nulidade - visto que as provas que não podem ser utilizadas são qualificadas como nulas, a teor do artigo 126 e 126, n. 3, do Código de Processo Penal Português -, àquilo que derivou de uma situação que se não enquadra na relação binária de lícito/ilícito, conforme cremos esclarecido alhures - ou, bastar-nos-ia para o mesmo efeito, dizer que de um ilícito não se está a cuidar(79).
A incorporação de critérios não reconhecidos pelo legislador não esconde que, consoante já apontado, o escopo de alteração do regime dos conhecimentos fortuitos não alcançou o sucesso pretendido. Ademais de persistirem as dúvidas em doutrina, as decisões judiciais são oscilantes, como oscilante é o enquadramento dos fatos obtidos ao acaso sob o regime de conhecimentos fortuitos/conhecimentos de investigação, em ordem a dar-lhes diversa potencialidade quanto aos efeitos.
Mas nossa crítica não é apenas quanto ao que se apresenta visível no panorama que pretendemos traçar; aquilo que não é dito, e que esboçaremos em linhas breves, também contribui para a asserção de que a nossa indagação, ao início deste tópico - sobre se deveras a alteração legislativa portuguesa ensejou mudanças no tema dos conhecimentos fortuitos -, não era de todo impertinente.
A compreensão dos efeitos do acaso, na sua acepção de sorte, haverá de melhorar os termos em que firmamos nossa convicção. Mas antes queremos dar algumas notas de como o tema aflora no Brasil.
4 Ampliando os Horizontes: o Caso Brasileiro
Fosse o caso de justificar a pertinência do tópico, diríamos que a maneira distinta com que se dá o tratamento da matéria, na legislação brasileira, constituir-se-ia em fundamento bastante para o breve escorço que se fará(80). Mas não só. Porque, no Brasil, não obstante certa instabilidade doutrinária, parece que, em termos jurisprudenciais, o tema dos conhecimentos fortuitos obteve maior continuidade(81).
Convém esboçar o quadro da doutrina a este respeito.
Em texto de 1997 Scarance Fernandes já apontava ser difícil o problema consistente na obtenção de prova diversa daquela autorizada e colhida durante a interceptação telefônica. Sem apresentar solução, entretanto suscitava apenas que uma interpretação mais rigorosa da lei brasileira não permitiria que se utilizasse a prova obtida, porque não inserida no âmbito da autorização judicial, mas não desconsiderava a razoabilidade da alegação de que, se a prova foi regulamente obtida porque a interceptação estava autorizada, tudo que se lhe derivasse haveria de ser lícito e, por isso, admissível no processo(82).
Rangel, entretanto, avançava e, em artigo publicado no ano de 1999(83), manifestava-se sobre a dúvida a ser ocasionada na hipótese de obtenção de conhecimentos fortuitos, indagando, para responder em sequência: "será lícita a obtenção desta prova? Não temos dúvida em afirmar que sim". Pois, como dizia, do contrário estar-se-ia a sustentar que do lícito - interceptação regularmente autorizada - adveio o ilícito, de maneira que se a escuta foi realizada nos estritos limites da lei, o que dela adviesse haveria de ser considerado, como consequência do respeito à ordem jurídica.
Em verdade, a distinção entre conhecimentos da investigação e conhecimentos fortuitos ainda não havia sido incorporada à doutrina brasileira, que, igualmente, não se importava em saber se, tratando-se mesmo de conhecimentos fortuitos, a eventual admissão destes exigiria ou não a presença dos demais requisitos legais(84). Apenas em tempos mais recentes, alguns autores inspiraram-se nas preocupações até então suscitadas por juristas portugueses, ao fundamento de que a legislação brasileira não dava conta de grande parte dos problemas práticos verificados a partir das interceptações telefônicas, tanto mais sendo considerada a expansão na sua utilização. Como exemplo pode-se citar Prado, que, em artigo de 2009, cujo tema principal era a extensão temporal da medida, fez apontamentos variados sobre as lições de Costa Andrade, afastando-se, todavia, de suas conclusões. É que, em seu entendimento, o encontro fortuito seria mesmo uma "possibilidade concreta de toda iniciativa dirigida à aquisição de informações"(85); quer dizer, deparar-se com elementos relacionados a outros crimes, durante a investigação de um específico, estaria na própria contingência da atividade de perseguição estatal. Logo, ter-se-ia aberta a possibilidade de utilização probatória do material fortuitamente encontrado, exceto, e a ressalva do autor neste ponto mostrava seu desacordo à jurisprudência do STF(86), nos casos de crimes punidos com detenção(87).
Ao contrário, para Gomes, sendo a interceptação telefônica uma das limitações ao direito à privacidade e intimidade, apenas com base na lei e de forma proporcional se poderia admitir a interferência estatal a propósito de seu conteúdo(88). Deste modo, como as intervenções estatais em direitos fundamentais careceriam de previsão a mais clara possível, na ausência de diretriz legislativa no Brasil com respeito ao conhecimento fortuito, este não poderia ser admitido. Estabelecia o autor, assim, uma divisão entre o que alcunhava como encontro fortuito (ou serendipidade(89)) de primeiro grau, relativo a fatos conexos àquele que determinou a interceptação - o qual, desde que pertinente ao mesmo sujeito investigado, poderia ser valorado como prova -; e, de outra parte, não havendo conexão - ou mesmo que essa haja, mas se a descoberta for pertinente a terceira pessoa -, de encontro fortuito (ou serendipidade) de segundo grau, quando, então, a prova daí decorrente não poderia ser avaliada(90).
Em síntese, é inequívoca certa instabilidade da doutrina brasileira sobre o tema(91-92).
O que, entretanto, não se dá com a jurisprudência. Vejamos, rapidamente.
No ano de 2004, o STF assentou, sem mais, à possibilidade de uso da prova obtida através de interceptação telefônica devidamente autorizada, quando indicasse fatos diversos daqueles que motivaram a medida, mesmo que se tratasse de crimes que, no Brasil, fossem punidos com detenção - ou seja, que não pertencessem ao catálogo de crimes aos quais a legislação concede permissivo à sua realização(93).
A jurisprudência da Suprema Corte brasileira consolidou-se neste sentido, e, já mais recentemente, no ano de 2010, no julgamento de um recurso(94), fez-se o registro da admissão e validade do uso de prova obtida fortuitamente através de interceptação telefônica licitamente conduzida, ainda que o crime descoberto, conexo ao que foi objeto de interceptação, seja punido com detenção(95).
Na Petição 3683-QO, chegou o STF, inclusive, a autorizar a utilização de conhecimento fortuito em procedimento disciplinar, de caráter administrativo, mesmo que dissesse respeito a pessoa diferente daquela contra quem se determinou, na esfera criminal, a interceptação telefônica(96-97).
E, seguindo o mesmo alvitre, mais recentemente, decidiu o Supremo Tribunal Federal que o encontro fortuito de elementos comprometedores contra uma magistrada, ainda que decorrente de escuta levada a cabo em desfavor de um terceiro, para a apuração de crimes não relacionados à sua atuação, habilitar-se-iam a ensejar processo disciplinar, inclusive pela razão de se não poder omitir, o Estado, da apuração de grave situação, cujo conhecimento chegou-lhe, entretanto, fortuitamente(98).
Estamos de acordo com essa perspectiva.
Diríamos mais, no sentido de que, no Brasil, não é a ausência de regulamentação em pormenor dos conhecimentos fortuitos credora de descontinuidades na jurisprudência. Porquanto essa, de modo relevante, não há(99). A admissão do que decorrente do fortuito, do que decorrente do acaso, afigura-se-nos a solução adequada, embora pensemos que se podem acrescer argumentos àqueles que, na jurisprudência brasileira, mais amiúde encontramos.
É este o objetivo da parte final deste texto.
5 A Sorte no Processo Penal
5.1 Proibição de Valoração da Prova?
Defendemos que o conhecimento fortuito, ainda que em sua expressão mais radical - alusivo a crime alheio ao catálogo e pertinente a terceiro, que não o alvo em face de quem se determinou a interceptação - viabilize-se como prova(100), idônea, pois, à valoração judicial(101).
Não se lhe apõe o qualificativo de prova de valoração proibida(102).
É, contudo, pertinente alguma perplexidade, quando se compreende que o suspeito ou investigado, de alguma maneira, ostenta razões para suportar as restrições de uma investigação que se lhe abata, sem que o mesmo suceda com aqueles que não estão nesta condição(103), sobretudo quando se reconhecem legítimas as expectativas dos indivíduos no sentido de que, quando utilizam o telefone, exercem o direito à autodeterminação informacional - que se concretizaria numa "exigência de que aquela comunicação seja fechada", de modo a esperar-se "que o Estado tudo faça para que se mantenha fechada"(104).
Impõe-se-nos suplantar o óbice.
Certo: há novos crimes e há novas formas de investigá-los(105). Que, entretanto, ensejam o problema de atingirem potencialmente terceiras pessoas(106).
Mas não apenas terceiras pessoas de cujas conversas depreenda-se potencial prática de crime. E isto mesmo no quadro legal que estamos apreciando com mais pormenor. Com efeito, já o artigo 188, n. 6, do Código de Processo Penal Português estabelece o corolário a ser dado aos, permitimo-nos assim chamá-los, conhecimentos fortuitos que não sinalizem crimes(107), em ordem a que o Juiz determine a destruição dos suportes técnicos e relatórios que lhe sejam pertinentes.
Fá-lo, todavia, a lei, com a ressalva expressa do já tantas vezes referido artigo 187, n. 7, da legislação processual, ou seja, (a) aqueles suportes e relatórios que em si podem ser desde logo usados como prova em outro processo, em curso ou a instaurar, presentes os requisitos legais, e (b) aqueles que servirão como inicial notícia do crime, sem, em nosso entendimento, à apenas esse desiderato reduzirem a sua pertinência.
Como quer que seja, o certo é que a privacidade, o fechamento da conversa telefônica ao só âmbito dos interlocutores, num e noutro caso, isto é, seja no campo de aplicação do artigo 188, n. 6, do Código de Processo Penal, seja na órbita de incidência do artigo 187, n. 7, da mesma lei, já se viram mitigados ao ensejo em que o falado fez-se escutar à conta da interceptação(108). E isso, dada a natureza da medida, é nada menos do que inevitável.
Seria, então, justamente a sua aptidão como eventual prova futura, nos casos em que o conhecimento fortuito habilitasse-se a tanto, que lhe imporia mácula que não portava ab ovo? Não estaríamos, assim, intentando proibir a valoração de provas que se adquiram por sorte?
Tratemos um pouco da sorte(109).
Na filosofia, as discussões a respeito das influências da sorte - mais especificamente da chamada sorte moral, ou moral luck -, não deixaram de abalar a intuição de que os indivíduos não poderiam suportar juízos morais por sucessos que se devessem, em última análise, a fatores situados fora de seu controle. O que colocaria em xeque a própria idoneidade de se estabelecerem esses juízos(110).
Esse, contudo, não é o ponto de vista que nos interessa por agora(111). Para nós, basta apontar que, em termos processuais penais, a avaliação jurídica sobre o sucesso de uma interceptação telefônica não é algo que se deva realizar de maneira retroativa, em virtude de resultados que não foram, com anterioridade, pretendidos com a sua execução. Aqui, não se trata de afastar a ideia de que a sorte pode determinar se o que realizado está justificado ou não, para usar a linguagem de Nagel(112). Antes, pelo contrário. Pois, como vimos, se é inerente ao meio de prova a assunção de elementos que digam respeito a outras pessoas, dar-lhes o efeito de proibidos, quando eventualmente aparecessem, e dissessem respeito a outros crimes, se bem que não investigados, discreparia de uma projeção que, com anterioridade, já se empreendeu no plano legislativo.
Em palavras mais simples, dir-se-ia que do advento do conhecimento fortuito que indicasse um crime não se arredaria uma certa sorte, aqui tomada numa acepção vulgar, por intermédio da qual seria difícil explicar ao leigo que, justo aí, quando ela fornecesse base segura para uma ulterior tomada de decisão, deparar-se-ia o sistema com uma proibição, que não se lhe impôs de início, como que a desconsiderar que a prossecução da atividade estatal de investigação e julgamento de crimes fosse, por sua vez, relevante.
E que não se cogite de qualquer anuência com uma suposta violação de direitos fundamentais. O discurso fácil, aqui, conceberia que essa sucederia com o permissivo da avaliação, pelo Juiz, ao ensejo da decisão, do conhecimento fortuito. E não estamos de acordo com tal ideia. Para nós, de fato há um consentimento do sistema com a possibilidade de se aceder a conversas telefônicas mantidas por pessoas não investigadas criminalmente, pela razão última, quiçá, de o avanço tecnológico ter permitido um meio de prova tão eficaz quanto o é a interceptação telefônica(113).
Haveria de ser o acesso a essas conversas, que, por acaso, propendam à revelação de outros crimes, o substrato tendente à incidência do Direito; que, todavia, de modo que supomos inevitável, de tanto demite-se, visto não se aventar, aqui, da parêmia lícito/ilícito. Tudo em ordem a não justificar pretenda-se, no fim, isto é, no momento da decisão judicial, em que esses mesmos dados se possam integrar como elemento de convencimento do Juiz, uma qualificação de ilicitude, até então não havida, estatuindo uma proibição, de cuja pertinência até então não se havia cogitado.
Com isso, podemos nos encaminhar para o desfecho.
5.2 Onde, quando e por quê?
Retomemos os exemplos iniciais: a circunstância de o fotógrafo Jeffries estar a observar da janela; a diligência efetivada por policiais na casa de X; a ida do jovem Samuel à casa de banhos, todas essas causas (Z) não possuem uma conexão necessária com o suposto homicídio observado no primeiro caso, o encontro da arma de Y no segundo (ou o roubo em que utilizada e a posterior colocação do artefato no local onde encontrado), e nem o testemunho de uma morte brutal no terceiro (R). Nos três casos, temos provas produzidas ao acaso, tanto mais porque o surgimento dessas provas não são a causa final em vista da qual cada um dos acontecimentos (Z) ocorreu deveras. Noutras palavras, poderíamos dizer que é apenas a concomitância de (Z) e (R), séries causais entre si independentes, que casualmente ensejam elementos de interesse ao processo penal.
Não negaríamos, no geral destes casos, idoneidade probatória(114) - e diríamos como obter dictum que, muito provavelmente, nas três hipóteses, cada um destes dados teria funcionado ademais como notícia do crime respectivo, sem prejuízo da ulterior valoração, quando próprio o ensejo para a decisão.
Mas a essa nossa asserção logo viria o contraponto de que, ora, para nenhum destes crimes estabelece-se uma restrição quanto à prova - testemunhal nos casos (A) e (C) e de apreensão de objetos no caso (B) -, semelhante que seja à definição de um catálogo ou tipo de crimes em que sejam aceitáveis. Noutras palavras, ficaria por resolver nosso entendimento de aceitação do conhecimento fortuito como prova suscetível de valoração, na situação limite em que se cuidasse de um crime de fora do catálogo, ou, consoante a legislação brasileira, punido que fosse com detenção.
Cremos que a objeção pode ser profligada.
É mesmo a circunstância de não ser o acaso algo que suceda sempre, e nem no mais das vezes, a razão para suplantarmos o óbice.
Com efeito, os sabidos consectários da interceptação telefônica impõem que, para o deferimento da medida, sejam atendidos variados critérios, entre os quais avulta, sobretudo, a necessidade de que se esteja a cogitar da apuração de crimes previamente definidos pelo legislador e, também, regras de competência para a determinação da medida.
Nestes casos, sendo certa a intencionalidade probatória da interceptação, ou seja, em virtude de sua destinação precípua, já ponderou o legislador restrição ao nível dos crimes para cuja apuração lhe é de dar cabimento.
Como, entretanto, nem sempre, e nem mesmo no mais das vezes, haverá o surgimento excepcional de conhecimentos concernentes a crimes diversos dos investigados, e menos ainda relativos a outras pessoas, que não aquela contra quem se destinava a medida, a aposição de restrição ao nível do catálogo teria quase nenhum sentido(115). Tanto mais quando não era suposta a aquisição de tais elementos, que, de resto, se não poderia evitar; a não ser que se abdicasse de um dever de persecução penal que surge, a partir do conhecimento da prática de crimes(116).
De maneira que, na situação inicial apontada na letra (D), consistente na descoberta de diálogos potencialmente malfazejos a um Senador da República brasileira, resolvidas as questões formais, de remessa dos suportes e transcrições pertinentes ao juízo competente para processamento e julgamento de eventual crime, há de, para os conhecimentos fortuitos adquiridos, dar-se, para além do efeito de propender à abertura de investigações, como seja de notícia de eventual crime, ademais a capacidade de, no nível de julgamento, serem avaliados, valorados, porque se não deve cogitar, aqui, de qualquer proibição(117).
No fim, sequer se poderia aludir a alguma autorização da medida por juiz diverso do estabelecido, em termos de competência por prerrogativa de função(118-119).
É que a interceptação não foi autorizada para este efeito; deu-se ao acaso este seu corolário que, como dito, surge sem que se o possa inibir.
De maneira que permanece hígida a ideia de que a determinação de medidas de investigação contra certas autoridades colhe no sistema normas de competência que lhe são específicas; como tal, será mesmo a remessa posterior ao juízo competente a confirmação de que o suporte probatório assim obtido é de valoração possível. Aí sim, no juízo competente; quando a regra definidora da competência terá razão idônea para a sua aplicação.
Conclusão
Assim postas as coisas, à guisa de conclusão, diríamos que:
A obtenção de conhecimentos fortuitos, consectário do acaso que é, não se faz suscetível de normatização jurídica que lhe dê o qualificativo de prova proibida quanto à sua produção. Seu advento é, portanto, fruto de uma inevitabilidade, que entretanto não sucede sempre e nem no mais das vezes. Pela razão de que não se insere no binômio lícito/ilícito, a sua virtualidade de ser utilizada como notícia do crime não exclui, para além, seu valor probatório futuro e sua potencialidade para a formação da convicção judicial.
Em termos, pois, de uma suposta proibição de valoração da prova assim obtida, não a impõe o Direito; autoriza-a a sorte, que faz parte da vida.
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Notas
(1) O presente texto, com as devidas adaptações, decorre de nosso Relatório, na disciplina de Processo Penal, realizado durante a parte escolar do Curso de Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
(2) Como a hipótese nos interessa aqui como figuração de uma particular problemática do tema sob investigação, não nos preocuparemos com as suas minúcias e os desenvolvimentos que, em sua peculiaridade, poderão advir após a formulação de nosso trabalho.
(3) No correr do texto a situação será, ainda que de modo sintético, aludida.
(4) Permitimo-nos utilizar como nossa a admoestação de CERQUEIRA, que em obra antiga - na qual alude às interferências do acaso em vários setores do Direito, todavia não em termos processuais penais -, registrou, e ora o fazemos com o mesmo intento, que: "para o fim modesto que me proponho - consignar as relações do acaso com o direito português - não é, porém, indispensável tentar penetrar na essência dessa entidade, nem embrenhar-me em profundas considerações philosoficas a tal respeito". CERQUEIRA, Antonio Augusto. O acaso no Direito Português. Lisboa: Tipografia Universal, 1916, p. 08.
(5) Definiríamos como conhecimentos fortuitos aqueles que, na interceptação telefônica, surgem por acaso.
(6) A obviedade de que alguém que conversasse ao telefone consigo mesmo revelaria em si situação de esquizofrenia e, portanto, de inimputabilidade, a escapar dos limites deste texto, dispensa considerações, permitida que seja a ironia.
(7) Faça-se aqui uma concessão à arte. É conhecida a experiência de Duchamp que faz cair, de uma altura de um metro, três fios, cada qual com um metro de comprimento, num plano horizontal. Cada um deles, deixados em queda a partir da mesma distância, ao se encontrarem com a superfície adquirirão uma forma particular, desvirtuando o padrão de medida, o metro. Intervenção do acaso, os três fios, com a forma que adquiriram, serão armazenados num vidro. Dir-se-ia, com JIMÉNEZ, que se trata do "acaso em conserva". Segundo o autor espanhol, o que é decididamente "subversivo na atitude de Duchamp é, antes de tudo, o processo mediante o qual se estabelecem essas unidades imaginárias de medida (...), dependente inteiramente do acaso". JIMÉNEZ, José. A vida como acaso. Tradução Manuela Agostinho. Lisboa: Passagens, 1997, p. 162-8. A crítica do artista à pretensão totalizante da ciência dá conta do que é imponderável no contexto da vida. Quando um fio cai, não é possível prever a forma que tomará; como quando se empreende a interceptação telefônica, não é possível antever a teia que fará encetar, ainda que o queira a pretensão totalizante do Direito. Mas já aqui estamos fora de um contexto artístico.
(8) O reconhecimento jurídico de estados de coisas produzidos pela sorte, e sua repercussão à vista de critérios morais, não é estranho a situações que, em Direito Penal, identificam-se com o estado de necessidade Neste sentido: VELOSO, José António. Sortes. In: Jornadas de Homenagem ao Professor Doutor Cavaleiro de Ferreira, separata da revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa, 1995, p. 87-90.
(9) Fica registrado que, em grande medida, as considerações que se farão sobre o acaso estão baseadas na obra de ARISTÓTELES, sobretudo na Física. Para o efeito, sobretudo quanto ao Livro II, capítulos 4, 5 e 6, consultamos: The Physics. Tradução de Philip H. Wicksteed, M.A e Francis M. Cornford. London: William Heinemann Ltd. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 1970, p. 139-161; Física. Tradução de Guillermo R. de Echandía. Madrid: Editorial Gredos, S.A., 2008, p. 146-158 e Física I-II. Tradução e comentários de Lucas Angioni. Campinas: Editora Unicamp, 2010, p. 50-7. A suposta distinção entre acaso (tychê) e espontaneidade (automaton) não apresentam, para o fim deste trabalho, relevância significativa, embora se possa dizer que o espontâneo é mais amplo do que o acaso, uma vez que este estaria confinado às coisas que decorrem de ações humanas. Mais importante, entretanto, é sublinhar o que os conceitos têm em comum, isto é, a ausência de coordenação teleológica em séries causais independentes entre si. Para uma análise das concepções contrárias à ideia de acaso, com ênfase no estoicismo, Cf. KENNY, Anthony. Nova História da Filosofia Ocidental (volume 1): filosofia antiga. Tradução de Maria de Fátima Carmo e Pedro Galvão. Lisboa: Gradiva, 2010, p. 210-4 e, igualmente, mas também referindo a abordagem kantiana, Cf. NUSSBAUM, Martha C.. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Tradução de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 286-290.
(10) O que pode ser dito a partir do exemplo de BOHM, segundo o qual, se soltarmos qualquer objeto no ar, ele cairá; porém, sendo uma folha de papel e se por acaso soprar uma brisa forte, o papel pode subir em vez de cair. Isto é, a lei causal propriamente dita é afetada por fatores externos, que representam componentes independentes do escopo daquilo que está submetido a seu contexto de consideração. A estes fatores denominamos como acaso. Isto significa, portanto, que o acaso não é uma ausência total de fatores causais, mas supõe o concurso de fatores externos ao escopo da lei natural. BOHM, David. Causality & Chance in Modern Physics. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1957, p. 1-2.
(11) ARISTÓTELES. Ética a Eudemo, 1247a35. Tradução de J. A. Amaral e Artur Morão. Lisboa: Tribuna da História, 2005, p. 110. Também conferimos a versão francesa: Éthique a Eudème. Tradução de Vianney Décarie. Second tirage. Paris: Librairie J. Vrin. Montréal: Les presses de l'Université de Montréal, 1984, p. 211.
(12) Nos comentários à Física, assinala ANGIONI que, neste sentido, o acaso é algo que escapa ao cálculo, por ser indeterminado. Mas ser indeterminado não acarreta ser pura indeterminação. Em suas palavras: "o que Aristóteles quer dizer é que não há critérios suficientemente determinados para afirmar de antemão quais coisas seriam incluídas no conjunto das 'causas por concomitância'". ANGIONI, Lucas. Física I-II. Campinas: Editora Unicamp, 2010, p. 296. Neste sentido, ademais, Cf. SILVA, Luciana Rohden da. Sobre as causas em Aristóteles. In: Intuitio-Revista de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, volume 2, n. 01, Junho de 2009. Porto Alegre: PUC-RS, 2009, p. 79.
(13) ARISTÓTELES, Física II, 197a18. Com efeito, diz-se que "o acaso é inconstante; pois nenhuma das coisas que são por acaso pode ser sempre ou no mais das vezes". IDEM, 197a30. De modo igual, ARISTÓTELES, The Physics. Tradução de Philip H. Wicksteed, M.A e Francis M. Cornford. London: William Heinemann Ltd. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 1970, p. 155.
(14) É que Aristóteles mostrará que o acaso pode dar-se unicamente em condições nas quais há relações determinantes entre efeitos e causas apropriadas. Noutras palavras, um evento casual não é uma irrupção totalmente desconhecida do campo de possibilidade do que lhe deu causa; poderíamos dizer: o obter informações a respeito de um fato criminoso não investigado numa interceptação telefônica não é totalmente estranho ao campo de possibilidades de uma tal medida, quando, necessariamente, ela envolve outras pessoas, para além de apenas o alvo de investigação.
(15) ANGIONI, Lucas. Física I-II. Campinas: Editora Unicamp, 2010, p. 300.
(16) Sobre os tipos de causas em Aristóteles, Cf. KENNY, Anthony. Nova História da Filosofia Ocidental (volume 1): filosofia antiga. Tradução de Maria de Fátima Carmo e Pedro Galvão. Lisboa: Gradiva, 2010, p. 207-210 e, ainda: DAVID ROSS, Sir. Aristóteles. Tradução de Luis Filipe Bragança S.S. Teixeira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, p. 80-3.
(17) ARISTÓTELES, Física II, 197a25. Correspondentemente, nas versões citadas: The Physics, p. 154-5; Física, p. 154; Física I-II, p. 54.
(18) Em verdade, o grau de complexidade atingido pelo fluxo de comunicações na atualidade aumentou extraordinariamente. Nas palavras de FARIA COSTA a comunicação à distância atingiu uma escala "de cujos mecanismos fundamentais ainda não nos apercebemos", pois "o espaço e o tempo comprimiram-se, tornando-se absolutamente comezinho alguém comunicar do cimo da Serra da Gardunha com uma pessoa que se passeie calmamente debaixo das bétulas da floresta russa ou olhe embevecido o rico traçado de um templo em Katmandu". FARIA COSTA, José Francisco de. Direito Penal da Comunicação:alguns escritos. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 153. Com desenvolvimento em razão das novas formas de comunicação, em virtude dos imensos avanços tecnológicos em tempos recentes, Cf. RODRIGUES, Benjamin da Silva. Da prova penal. Tomo II: bruscamente...a(s) face(s) oculta(s) dos métodos ocultos de investigação criminal. Lisboa: Rei dos Livros, 2010, p. 376-380.
(19) Pense-se numa interceptação alusiva a um crime x, constante do catálogo, em que um determinado interlocutor, não investigado, indica estar a preparar um furto, indicando o local de sua prática. A adoção de meios preventivos da ocorrência do crime parece tout court impositiva, ainda que não pertencente ao catálogo do Código de Processo Penal Português, como hábil a ensejar a interceptação telefônica, o furto. Fica, ainda, em aberto saber-se se, não exitosa a atividade de prevenção, e consumado que seja o crime - ou, de outro modo, ingressado que seja em fase de conatus -, ter-se-ia como suscetível de valoração o conhecimento adquirido fortuitamente, que versa, viu-se, sobre crime que não pertence ao catálogo legal. Em sentido semelhante, com BACHMAIER WINTER se poderia dizer que os instrumentos do processo penal, a rigor reativos, tornam-se insuficientes, e, diante de certos crimes graves - entre os quais, claro, não figuraria o de nosso exemplo -, deverá a investigação antecipar-se, para evitar mesmo o seu cometimento. BACHMAIER WINTER, Lorena. Investigación criminal y protección de la privacidad en la doctrina del Tribunal Europeo de Derechos Humanos. In: 2 Congresso de Investigação Criminal. Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes. Lisboa: Almedina, 2010, p. 166. A este respeito, ainda Cf. ALBRECHT, Hans-Jörg. Vigilância das telecomunicações: análise teórica e empírica da sua implementação e efeitos. In: Que futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 725-8. Em sentido crítico ao potencial "esbatimento da fronteira" entre a repressão/investigação e a prevenção, Cf. COSTA ANDRADE, Manuel da. Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria geral). In: Que futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 530-1.
(20) Conforme aponta David Ross, como são bastante indeterminadas as coisas que se podem tornar causas de um resultado fortuito, não se pode estabelecer nenhuma regra tendente a limitá-las. DAVID ROSS, Sir. Aristóteles. Tradução de Luis Filipe Bragança S.S. Teixeira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, p. 84.
(21) BELING, Ernest von. Las prohibiciones de prueba como limite a la averiguación de la verdad en el proceso penal. In: Las prohibiciones probatórias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, p. 04. No sentido de que as proibições de prova (Beweisverbote) constituem o núcleo essencial de um processo penal adaptado às exigências do Estado de Direito, e, ademais, reconhecendo o caráter precursor do estudo de Beling, Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. De las prohibiciones probatorias al Derecho procesal penal del enemigo. In: Revista Penal, n. 23, 01.2009. Madrid: La Ley, 2009, p. 73-4. Para um panorama da doutrina portuguesa, ao propósito de consentir que "as proibições de prova têm por fundamento a tutela dos direitos fundamentais dos indivíduos" e de sua conciliação com os interesses do processo penal, Cf. BÉRTOLO ROSA, Luís. Consequências processuais das proibições de prova. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 20, n. 02, Abril/Junho/10. Director: Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 232-3. Também AMBOS, ao dizer que "la tesis de la importancia de los derechos constitucionales fundamentales y del estado de derecho encuentran en la temática de las prohibiciones de prueba su constatación legal". AMBOS, Kai. Las prohibiciones de utilización de pruebas en el proceso penal alemán. In: Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, p. 64.
(22) BELING, op. cit., p. 05.
(23) BELING, op. cit. p. 16. Dito de outra maneira, a natureza de proteção que ostentam as proibições de prova "crean un espacio sagrado frente a la mirada inquisitoria de los órganos de persecución penal, que revindica el derecho a permanecer oculto. Fiscal, policía y juez no pueden forzar la puerta cerrada". BELING, op. cit., p. 44.
(24) SOUSA MENDES, Paulo. As proibições de prova no Processo Penal. In: Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Coordenação científica de Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p. 133.
(25) No mesmo sentido, segundo AMBOS as regras de proibição de prova (Beweiserhebungsverbote) regulam ou limitam o modo de obtenção de provas, enquanto que as proibições de utilização (Beweisverwertungsverbote) tratam do uso judicial das provas que já foram obtidas. AMBOS, Kai. Las prohibiciones de utilización de pruebas en el proceso penal alemán. In: Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, p. 65.
(26) Não se põe aqui em causa que a temática do objeto do processo coloca-se associada à estrutura acusatória, pois na antiga lição de CASTANHEIRA NEVES somente esta implica que o tribunal apenas possa agir no pressuposto de uma prévia acusação, cujo conteúdo intencional delimitará justamente o âmbito de seu conhecimento e decisão. CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Sumários de Processo Criminal (1967-8), policopiado, p. 208 e segs. Igualmente, Cf. SOUSA MENDES, Paulo de. O regime da alteração substancial de factos no processo penal. In: Que futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 755.
(27) GÖSSEL, Karl-Heinz. As Proibições de Prova no Direito Processual Penal da República Federal da Alemanha. Revista Portuguesa de Ciências Criminais, ano 2, fascículo 3, Aequitas Editorial Notícias, 1992, p. 397-8. Mais pormenorizadamente, Cf. GÖSSEL, Karl-Heinz. El Derecho Procesal Penal en El Estado de Derecho. Obras completas, Tomo I, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2007, p. 148 e segs.
(28) Ou seja, a transgressão "en contra de una prohibición (primaria) de producción probatoria en el mejor de los casos indica - pero no implica automáticamente - la no utilización posterior". AMBOS, Kai. Las prohibiciones de utilización de pruebas en el proceso penal alemán. In: Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, p. 67. O exemplo aqui já clássico é o da busca pessoal em mulher conduzida, entretanto, por agente policial masculino.
(29) BIRNBAUM, Johann Michael Franz. Sobre la necesidad de una lesión de derechos para el concepto de delito. Tradução de José Luis Guzmán Dalbora. Buenos Aires: Editorial B de F, 2010, p. 53.
(30) Neste sentido, quando trata da proteção da privacidade, nas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, BACHMAIER WINTER deixa claro que este Tribunal definiu como pressuposto básico à adoção de qualquer restrição a um direito fundamental que essa esteja prevista na lei, ou seja, que suceda "in accordance with the law". BACHMAIER WINTER Lorena. Investigación criminal y protección de la privacidad en la doctrina del Tribunal Europeo de Derechos Humanos. In: 2 Congresso de Investigação Criminal. Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes. Lisboa: Almedina, 2010, p. 166.
(31) ROXIN, Claus. Pasado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. Versión castellana de Julián Guerrero Peralta. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2007, p. 102.
(32) GÖSSEL, Karl-Heinz. El Derecho Procesal Penal en El Estado de Derecho. Obras completas, Tomo I, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2007, p. 145. Do mesmo autor, Cf. GÖSSEL, Karl-Heinz. As proibições de prova no direito processual da República Federal da Alemanha. In: Revista Portuguesa de Ciências Criminais, ano 2, fascículo 3, Lisboa, p. 410, particularmente quando indica ser fundamental a ponderação entre os interesses comunitários da perseguição penal e os interesses do acusado, na determinação de critérios atinentes às proibições de valoração de provas.
(33) Em termos normativos, é o que se extrai do artigo 32, n. 8, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 126 do Código de Processo Penal. No sentido do texto, Cf. COSTA ANDRADE, Manuel da. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 188.
(34) Deste modo, embora esteja a falar mais enfaticamente do sistema estadunidense, Cf. VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal: acción significativa y derechos constitucionales. 2 edición. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, p. 906. De um modo mais abstrato, a partir da concepção de que as ordens, proibições e mandatos, em que consistem as normas jurídicas, estão a requerer uma certa capacidade de atendimento por parte de seus destinatários, Cf. ENGISCH, Karl. El ámbito de lo no jurídico. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1960, p. 56-7.
(35) Ou seja: "é como se o legislador anunciasse aos virtuais prevaricadores: - Não sucumbam ao canto de seria da obtenção das provas a qualquer preço, porquanto isto vos custaria a inutilização absoluta dos meios de prova ilicitamente obtidos, nem sequer se podendo repetir essas provas por outros meios!". SOUSA MENDES, Paulo de. As proibições de prova no Processo Penal. In: Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Coordenação científica de Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p. 142.
(36) E tal não ocorre com o acaso. TEIXEIRA DA CUNHA assinala a imponderabilidade do que se dá por acaso e, resgatando o pensamento de Boécio, diz que o acontecimento provindo do acaso tem as suas causas próprias e "que é o encontro imprevisto destas causas que dá lugar ao acaso". Assim: "pode definir-se, por consequência, o acaso como um acontecimento imprevisto, ocasionado por um encontro de causas ( )". TEIXEIRA DA CUNHA, Manuel Araújo. A ideia de acaso em filosofia. Dissertação para licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas. Policopiado. Lisboa: 1961, p. 11-12. No mesmo sentido, com base em reflexões de Cícero, TIAGO DE OLIVEIRA aponta a concepção de haver no acaso a "necessidade do não necessário, a previsibilidade de haver imprevisto, a inevitabilidade do que se pensaria evitável". TIAGO DE OLIVEIRA, J. Acaso, determinismo e indução. In: Collected works: obras completas - textos históricos e filosóficos, didácticos e expositórios e miscelânea. Évora: Pendor, 1995, p. 179.
(37) Para a narrativa desta experiência histórica, Cf. ENGISCH, Karl. El ámbito de lo no jurídico. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1960, p. 34.
(38) Claro, porque não houvesse, suponhamo-lo, este dispositivo, a só existência do artigo 248 do Código de Processo PenalPortuguês já faria brotar a consequência de comunicação ao Ministério Público de uma notícia de crime apurado em interceptação destinada a prova de outro e, mesmo que se cuidasse, isto deve ser dito, do que precisamente se concebe como conhecimento de investigação, numa mesma constelação delitiva com o crime que determinou a medida, este mesmo artigo, conjugado com o artigo 24 do Código de Processo Penal, ao que parece, dar-se-ia ao mesmo efeito que o atualmente preconizado pela lei.
(39) Daí a explicação, a esta altura tardia, do título deste trabalho, que alia, numa tentativa de trocadilho, a um só tempo o que é fortuito à vanidade - no sentido de uma qualidade daquilo que é em vão. Em Aristóteles vê-se que o em vão se utiliza quando aquilo que é em vista de outra coisa não vem a ser em vista dela - certo evento A que, sendo naturalmente orientado em vista do resultado B, não produz B; ora, isso é o oposto do que se dá com o acaso, em que certo evento A, não sendo orientado em vista do resultado B, vem a produzi-lo. Portanto, título de trabalho que não se deu por acaso; e que se espera não se tenha dado em vão.
(40) ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução J. Baptista Machado. 10. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 276.
(41) ENGISCH, op. cit, p. 277.
(42) Mais claramente, em sua monografia inteiramente dedicada ao tema, esclarece ENGISCH que as lacunas, metaforicamente falando, estariam "en el derecho y, por el contrario, el ámbito vacío de derecho existe 'alrededor del derecho'". ENGISCH, Karl. El ámbito de lo no jurídico. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1960, p. 116. Não teremos condições de examinar as diversas situações em que ENGISCH enquadra a sua concepção, nem mesmo os diversos pontos de vista que, em termos de uma tomada de posição sobre a essência do Direito e de suas normas, poderiam ser adotados a tal respeito. Fica, porém, o registro de que "el saber hasta donde se extiende el derecho y donde comienza su limitación, sirve para descubrirnos el contenido del concepto de derecho". IDEM, op. cit., p. 11. Para nós, a compreensão dessa limitação afigura-se em tudo e por tudo relevante.
(43) ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução J. Baptista Machado. 10. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 279. Em sentido semelhante, segundo VIRGA: "lo spazio vuoto di diritto viene configurato come zona di fatto non regolata in nessun modo dal diritto, la zona delle azioni non comandate né vietate né permesse, la sfera che sta al difuori dell'ordinamento giuridico". VIRGA, Pietro. Libertà giuridica e diritti fondamentali. Milano: Giuffré, 1947, p. 24.
(44) BIGOTTE CHORÃO, Mário. Temas fundamentais de Direito. Coimbra: Almedina, 1986, p. 224.
(45) ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1968, p. 221-235.
(46) A distinção entre a hipótese de lacunas e aquilo que designa como situação extrajurídica é também realizada por ASCENSÃO, que corretamente alude ao equívoco consistente numa pretensão totalizante da ordem jurídica, que se haveria de afastar pois - e o autor di-lo com fina ironia -, debalde "procuraremos nas leis regras sobre passos de dança, ou lançamento de satélites espaciais ( ) nem o direito adianta se alguém se queixa de que o vizinho não o cumprimenta quando se cruza com ele na rua". ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral. 11. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 422.
(47) LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução de José Lamego, 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 525.
(48) A diferenciação entre a integração de lacunas, como espaços não regulados pela lei, e a interpretação jurídica, que se identificaria com a interpretação da lei, foi traço marcante do positivismo jurídico. Neste sentido, Cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O actual problema metodológico da interpretação jurídica- I. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 40. Sobre esta perspectiva, ademais: BIGOTTE CHORÃO, Mário. Temas fundamentais de Direito. Coimbra: Almedina, 1986, p. 234-5.
(49) LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução de José Lamego, 4. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 526. Em sentido semelhante, forte na antiga admoestação dos juriconsultos romanos, de que neque leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus, qui quandoque inciderint, comprehendantur - isto é: nem as leis nem os senatuconsultos podem ser escritos de modo a que compreendam todos os casos que de vez em quando ocorrem -, Cf. SANTOS JUSTO, António. Introdução ao estudo do Direito. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 342-3. A este respeito, com o acréscimo de que o evoluir do desenvolvimento técnico, das relações econômicas e sociais, podem produzir um deslocamento do espaço ajurídico, em ordem a tornar necessária a regulamentação "de um domínio de relações que até ali se não revelavam juridicamente significativas ou merecedoras de tutela jurídica", Cf. BAPTISTA MACHADO, João. Introdução ao Direito e ao discurso legitimador. Coimbra: Almedina, 1987, p. 200-1.
(50) Apesar de sob outro enfoque, RECASÉNS SICHES manifesta a limitação do legislador na regulamentação de certos setores da vida social. Segundo o autor, se "trata de poner de manifiesto que la realidad tiene sus propias leyes fácticas, las cuales operan como limitaciones al arbitrio del legislador y del órgano jurisdiccional, quienes, ni uno ni otro, no pueden preceptuar aquello que no es realizable, porque tropiezan contra imposibilidades físicas, o biológicas, o psíquicas o sociales, o económicas, etc.". RECASÉNS SICHES, Luis. Experiencia jurídica: naturaleza de la cosa y lógica razonable. México: Fondo de Cultura Económica, 1971, p. 199.
(51) No mesmo sentido, a este respeito, Cf. ENGISCH, Karl. El ámbito de lo no jurídico. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1960, p. 67, mormente quando assinala que a "acción no está 'autorizada', o prohibida jurídicamente, sino simplemente no prohibida, es jurídicamente indiferente".
(52) KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 4. ed. Tradução de Antonio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 339. Isto é, determinadas situações, particularmente os chamados casos de necessidade - que KAUFMANN exemplifica nas hipóteses de interrupção da gravidez, participação em suicídio ou estado de necessidade -, não se poderiam resolver com base numa exclusiva valoração binária, de lícito/ilícito, porque nenhuma regulamentação do Direito seria convincente e nem teria capacidade de conferir respostas satisfatórias aos problemas particulares que nalguns casos dessa ordem possam surgir.
(53) Neste sentido, partilhamos do entendimento de ROGALL que, de um lado assinala a necessidade de ser a lei exigente quanto à admissibilidade das medidas de vigilância das telecomunicações, o que, entretanto, não se há de confundir com um excesso de detalhes que acarrete a propensão para o erro na produção da prova, com consequências para o plano de sua valoração. Mais especificamente sobre a situação na Alemanha, o autor critica a "regulamentação excessivamente complexa e dificilmente compreensível, que - reconhecendo de forma integral o direito dos cidadãos à reserva da vida privada - não faz jus às necessidades da praxis". ROGALL, Klaus. A nova regulamentação da vigilância das telecomunicações na Alemanha. In: 2 Congresso de Investigação Criminal. Coordenação de Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes. Lisboa: Almedina, 2010, p. 124-140.
(54) Seguimos, aqui, a exposição de ROGALL, op. cit. p. 138, dada a semelhança da situação portuguesa com a legislação alemã, a que o autor está se referindo neste ponto. Mais especificamente sobre a legislação portuguesa, Cf. COSTA ANDRADE, Manuel da. "Bruscamente no verão passado", a reforma do Código de Processo Penal: observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra editora, 2009, p. 173-4, se bem que mais à frente ficará mais clara nossa discordância com sua perspectiva, já aqui refutada no que alude às insuficiências da reforma processual portuguesa sobre os conhecimentos fortuitos, insuficiência num sentido de que competiria à legislação suportar toda a variabilidade de situações que, de nosso tema, são decorrentes. Nem a extensão de suas lições, nem seu reclamo a um mais acabado labor legislativo, segundo pensamos, dariam conta da vastidão de hipóteses que o acaso, rectius: os conhecimentos fortuitos, mostram-se hábeis a revelar. Ficássemos no só exemplo da competência, ver-se-ia que o mesmo autor, em mais de uma ocasião, indicou as dramáticas contradições encontráveis em doutrina, em caso de relevo inequívoco para a política portuguesa, acontecido em tempos bastante recentes. A este respeito, Cf. COSTA ANDRADE, Manuel da. Escutas telefónicas, conhecimentos foruitos e Primeiro Ministro. In: Revista de Legislação e Jurisprudência, n. 3962, 139 (2010). Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 269-289 e, do mesmo autor, Escutas: coisas simples duma coisa complexa. Jornal Público, edição de 18.11.09. In: <http://www.publico.pt/Sociedade/opiniao-escutas-coisas-simples-duma-coisa-complexa-por-manuel-da-costa-andrade_1410823?all=1>. Acesso em: 11 abr. 2012. Tudo a indicar que a confrontação de normatização excessiva com o imponderável produz efeito diverso daquele a que, em rigor, propor-se-ia.
(55) ROGALL, IDEM, p. 139.
(56) COSTA ANDRADE, Manuel da. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 281.
(57) Desde aquela época, não obstante todo o avanço da técnica, ainda não se fez possível limitar a escuta e a gravação telefônicas aos elementos com relevo direto ao processo penal para o qual se tenham ordenado. A circunscrição do alvo, quiçá, teria o condão de afastar a possibilidade sempre presente de obtenção de elementos diversos ao da perseguição penal, em desfavor de terceiros, mas continuaria sempre em aberto o caminho para o acusado postular, em sua defesa, a abertura de todo o conteúdo relativo à interceptação, que, aqui também, poderia culminar no alertarem-se as autoridades sobre crimes até então desconhecidos, eventualmente praticados por interlocutores. Repitamo-nos, pois. Parece que nalguns casos, senão na maioria deles, a apreensão com proveito do que revelado numa conversa telefônica exige a auscultação de sua integralidade, no que uma pretendida limitação de captação a apenas um dos interlocutores reduziria a enorme relevância do meio de prova. Quer dizer, é mesmo ínsito à interceptação telefônica a possibilidade de se dar a conhecer ao Estado mais do que se situava no restrito campo de razões que justificaram a medida.
(58) COSTA ANDRADE, Manuel da. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 306.
(59) Na doutrina espanhola, BARAJAS PEREA assinala distinção semelhante, ao afirmar que "hemos de distinguir el hallazgo casual de la aparición de hechos diversos pero propios de una misma actuación criminal, donde, como señala la jurisprudencia, no se produce una novación del tipo penal investigado, sino una adición o suma". BARAJAS PEREA, Inmaculada López. La intervención de las comunicaciones electrónicas. Madrid: Wolters Kluwer, 2011, p. 167.
(60) COSTA ANDRADE, Manuel da. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 312.
(61) AGUILAR, Francisco Manuel Fonseca de. Dos conhecimentos fortuitos obtidos através de escutas telefónicas: contributos para o seu estudo nos ordenamentos jurídicos alemão e português. Coimbra: Almedina, 2004, p. 108-9. No mesmo sentido já eram as suas conclusões elaboradas por ocasião de Curso de Mestrado. Cf. AGUILAR, Francisco Manuel Fonseca de. Introdução ao estudo dos conhecimentos fortuitos obtidos através de escutas telefónicas nos ordenamentos jurídicos alemão e português. Relatório de Mestrado. Universidade de Lisboa, ano escolar de 1998/9, p. 91-3.
(62) No mesmo sentido parecia ser o alvitre de FONSECA, para o qual a escuta somente poderia ser utilizada contra quem assumisse um estatuto no processo penal, no caso o suspeito, investigado ou acusado. FONSECA, Jorge Carlos. Reforma do Processo Penal e Criminalidade Organizada. In: Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p. 435.
(63) No que supomos inequívoca contradição, pois admitir-se a deflagração de investigações a partir dos conhecimentos fortuitos, a um tempo, e, na mesma toada, afirmar que se terá uma extensão da contaminação probatória aos meios de prova secundários derivados destes mesmos conhecimentos, parece fazer pouco sentido. Ter-se-ia, de fato, investigação algo como um natimorto.
(64) Que, embora editada já depois da reforma processual de 2007, por razões que a autora indicou em nota explicativa, não incluiu em seu texto os aportes da inovação legislativa.
(65) CONCEIÇÃO, Ana Raquel. Escutas Telefónicas - Regime Processual Penal. Lisboa: Quid Juris, 2009, p. 222-231. Sua crítica à formulação de Costa Andrade, sobre os conhecimentos da investigação, ficava a meio caminho, pois a um tempo aludia que (a) se mostraria demasiado perigoso, por conferir licitude à prova que encontrava limites constitucionais à sua produção, não obstante admitisse (b) uma maior abertura neste regime, tratando-se de investigação de criminalidade violenta, altamente organizada ou terrorismo. Parece-nos que o argumento casuísta, no entanto, é de frágil sustentação.
(66) Este, e os demais acórdãos relativos a Tribunais de Portugal, foram obtidos em consulta ao sítio www.dgsi.pt, de maneira que nos pouparemos de ulteriores remissões.
(67) Há, ainda, duas decisões do ano de 2007 que calha referir. No processo 3554/2007, o Tribunal da Relação de Lisboa reafirmou que os conhecimentos da investigação não estariam sujeitos à mesma disciplina que os conhecimentos fortuitos, pois que a questão a respeito destes somente se colocaria quando constituíssem meio de prova diverso do pertinente ao crime que se investiga. Também o Tribunal da Relação do Porto esposou o mesmo entendimento no processo 0744715, dando por válida a prova obtida contra um terceiro - a interceptação buscava apurar o crime de lenocínio -, que prestava a este favorecimento pessoal, pois tratar-se-ia, igualmente aqui, de conhecimento da investigação.
(68) Neste ponto, Cf. RODRIGUES, Benjamin da Silva. Da prova penal. Tomo II: bruscamente...a(s) face(s) oculta(s) dos métodos ocultos de investigação criminal. Lisboa: Rei dos Livros, 2010, p. 366, particularmente quando assinala que não se deu qualquer específica regulamentação aos conhecimentos de investigação, de modo que "eles 'flutuam' ao sabor de algumas considerações doutrinárias que, 'contra a corrente', vão fazendo curso". Se bem o lemos, também NEVES, no item 1.3.4 de seu relatório concernente à disciplina de Processo Penal, no curso de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Lisboa, aponta a flutuação dos critérios de destrinça entre os denominados conhecimentos da investigação e os conhecimentos fortuitos, inclusive indicando decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, julgado em em 11.09.07, Relator Gomes da Silva, em que se alcançou a inusitada asserção de que um crime de tráfico de estupefacientes inseria-se no mesmo pedaço de vida de um roubo qualificado, este que deveras era objeto das escutas, para assim validar-se a prova pertinente àqueloutro. Para além de ficar o registro de nosso agradecimento sincero ao jovem autor, que nos enviou o seu texto antes mesmo de sua publicação, do alvitre extrai-se, e aqui já somos nós quem o dizemos, que nalguns casos será a pura discricionariedade judicial que fará inserir num ou noutro âmbito o que de mais surgir na interceptação telefônica, e isto porque o enfrentamento do tema dos conhecimentos fortuitos ainda se não realizou a contento. Sobre o ponto mencionado, Cf. NEVES, António Brito. Da utilização de Conhecimentos Fortuitos obtidos através de escutas telefónicas. Relatório de Mestrado na disciplina de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: não paginado e não publicado, 2011.
(69) Cabe explicar: rejeitou-se o recurso, pois o artigo 437 do Código de Processo Penal Português requer a existência de dois acórdãos tirados sob a mesma legislação e que assentem soluções opostas quanto a mesma questão de direito. Neste caso, entretanto, segundo a decisão isso não se verificava. É que se trataria de saber se pode ser usado como prova de um crime não mencionado no n. 1, do artigo 187 do Código de Processo Penal o resultado de interferência nas telecomunicações, que, porém, foi autorizada por invocação de outro crime, previsto no catálogo. Conforme consta da decisão, ambos acórdãos em cotejo teriam a mesma posição: depende. Depende de estarem em causa conhecimentos fortuitos ou não. Quer dizer, se houver uma conexão intrínseca, não meramente processual, ou seja, um conhecimento da investigação, admite-se a utilização da prova; já se isso não houver, a prova é inadmissível, embora o acórdão sugira a possibilidade de sua utilização se referir-se a um crime do catálogo. Como em cada um dos acórdãos cotejados a conclusão foi diversa - num se afirmava haver conhecimento da investigação e no outro, fortuito -, mas a razão de decidir foi equivalente, por tal fundamento, o recurso foi rejeitado, na forma do artigo 441, n. 1, do Código de Processo Penal Português.
(70) A questão não é trivial. No julgamento do processo 538/00 - em 18.03.2010 -, pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, ficaram registradas, como sendo alegações de um dos recorrentes, o seguinte - permitimo-nos transcrever: "F - ( ) entende, ainda, o Recorrente que não poderiam ser valorados, como foram, relativamente aos crimes pelos quais veio o Recorrente a ser condenado nos presentes autos, os conteúdos das transcrições das intercepções telefónicas realizadas ( )
G - Na verdade, os conhecimentos advenientes das ditas intercepções telefónicas, realizadas em investigação de factos distintos dos integradores dos propalados crimes de contrafacção de moeda, furto qualificado, furto simples, falsificação de documento e burla qualificada, pelos quais veio o Recorrente a ser condenado, sempre terão que ser entendidos com autênticos 'conhecimentos fortuitos', não sendo, por isso, e com fundamento de reserva constitucional de lei, susceptíveis de integrar, ou não, a prática desses mesmos crimes, mas, apenas e só, como uma mera 'notitia criminis' relativamente aos mesmos. ( ) J - Não sendo, nessa medida, ( ) susceptíveis de serem valorados enquanto meio de prova, mas, apenas e só, como uma mera "notitia criminis", até porque, com base nesses mesmos 'conhecimentos fortuitos' procedeu-se, então, a posteriori, à realização de diligências de investigação, vigilâncias e buscas( ).L - Donde, tendo a condenação do Recorrente tido lugar com base, quase que exclusiva, nas transcrições das intercepções telefónicas presentes nos autos, padece o douto Acórdão proferido em sede de 1.ª instância, e confirmado pelo douto Acórdão sob recurso, de nulidade por haver o Digníssimo Tribunal formado a sua convicção em prova de valoração proibida. No voto do relator Soares Ramos afirma-se que, deveras, as interceptações telefônicas realizadas se constituíram "ao nível da ponderação probatória ( ) como factor assaz relevante para a condenação do arguido", o que, entretanto, não daria razão ao recorrente, porque - e não temos condições aqui de examinar em detalhe se realmente houve correção da decisão neste ponto -, tratar-se-ia de conhecimento de investigação. O certo é que talvez de conhecimento de investigação não se tratasse, e o enquadramento neste conceito, de resto suscetível de dúvida, propende à aceitação da valoração decorrente de uma prova surgida ao acaso, sem o enfrentamento importante de qual há de ser o efeito, na decisão judicial, dos elementos encontrados fortuitamente, propulsores de um novo processo à guisa de notícia do crime, por isso que, quanto à investigação original, sem qualquer conexão.
(71) SUSANO, Helena. Escutas Telefónicas: exigências e controvérsias do actual regime. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 35-42.
(72) MARQUES DA SILVA, Germano. Notas soltas sobre as alterações de 2007 ao Código de Processo Penal Português. In: Processo Penal do Brasil e Portugal. Estudo comparado: as reformas portuguesa e brasileira. Lisboa: Almedina, 2009, p. 77-81.
(73) MARQUES DA SIL,VA, Germano. Curso de Processo Penal, II, Lisboa: Verbo: 2008, p. 251. Mas acrescenta pouco o autor, no dilema a surgir no processo futuro, sobre de que maneira e com que peso se haverá de valorar o conhecimento fortuito que, eventualmente, lhe deu origem.
(74) GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro. Escutas Telefónicas: da excepcionalidade à vulgaridade. 2. ed. Lisboa: Almedina, 2008, p. 122.
(75) GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro. A Investigação do Crime Organizado: buscas domiciliares nocturnas, o agente infiltrado e intervenção nas comunicações. In: Criminalidade organizada e criminalidade de massa: interferências e ingerências mútuas. Coordenação: Manuel Monteiro Guedes Valente. Coimbra: Almedina, 2009, p. 176-7.
(76) GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro. Conhecimentos Fortuitos: A busca de um equilíbrio apuleiano. Coimbra: Almedina, 2006, p. 135.
(77) GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro. Escutas Telefónicas: da excepcionalidade à vulgaridade. 2. ed. Lisboa: Almedina, 2008, p. 125.
(78) GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro. A Investigação do Crime Organizado: buscas domiciliares nocturnas, o agente infiltrado e intervenção nas comunicações. In: Criminalidade organizada e criminalidade de massa: interferências e ingerências mútuas. Coordenação: Manuel Monteiro Guedes Valente. Coimbra: Almedina, 2009, p. 178. Parece ser este, por igual, o alvitre sustentado por RODRIGUES. Cf. RODRIGUES, Benjamin da Silva. Da prova penal. Tomo II: bruscamente...a(s) face(s) oculta(s) dos métodos ocultos de investigação criminal. Lisboa: Rei dos Livros, 2010, p. 365.
(79) A aceitação, portanto, da tese, exigiria quando menos fosse esclarecido como admitir que de uma notícia de crime cuja utilização como prova é vedada - e se o é, é porque se lhe afirma nula -, admite-se a derivação de outras provas, de outras investigações, que, porém, se não contaminariam de sua eiva.
(80) Haveria diversas abordagens relevantes a se fazer sobre os concretos dilemas derivados da legislação brasileira - prazo exíguo de quinze dias da medida, limites de sua prorrogação, necessidade de transcrição, ou não, de todo o conteúdo gravado, entre outros -, mas é caso de restringirmos o nosso escopo ao tema objeto dessa investigação.
(81) A lei brasileira que cuida das interceptações telefônicas - Lei nº 9.296/96 -, por efetiva opção legislativa não tratou da situação alusiva aos conhecimentos fortuitos. Dizemos cuidar-se de opção legislativa, pois um dos anteprojetos de lei, formulados no ano anterior à edição normativa atual, pretendia estabelecer, in verbis: "Os resultados das operações técnicas não podem ser utilizados para a instrução de processos ou investigações relativos a crimes diversos daqueles para os quais a autorização foi dada, salvo quando se tratar de crime constante do art. l, hipótese em que se observará o disposto no art. 7 desta Lei". Este anteprojeto - de número 1258/95 -, contudo, não vingou. Há, hoje, em tramitação no parlamento brasileiro, pelo menos dois projetos de lei que pretendem dar nova regulamentação às interceptações telefônicas. No primeiro deles - de n. 3272/2008, de autoria do Presidente da República à época, deixa-se sem pormenor o tratamento dos consectários referentes aos conhecimentos fortuitos, aos quais se faz menção apenas num artigo, nos seguintes termos: "Art. 16. Na hipótese de a quebra do sigilo das comunicações telefônicas de qualquer natureza revelar indícios de crime diverso daquele para o qual a autorização foi dada e que não lhe seja conexo, a autoridade deverá remeter ao Ministério Público os documentos necessários para as providências cabíveis". No outro, e que se trata de um substitutivo, que engloba mais de quinze anteprojetos que lhe estão apensados - de autoria de parlamentares diversos -, estabelecer-se-ia que: "Art. 16. As provas resultantes das operações técnicas realizadas nos termos desta lei não poderão ser utilizadas para a instrução de processos relativos a crimes diversos daqueles para os quais a autorização foi concedida, salvo quando se tratar de crime conexo ou de outro crime constante do art. 2º. Parágrafo único. Na hipótese de a quebra de sigilo das comunicações telefônicas revelar indícios de crime que não se inclua nas hipóteses do caput, a autoridade deverá remeter ao Ministério Público os documentos necessários para as providências cabíveis".
(82) SCARANCE FERNANDES, Antonio. A lei de interceptação telefônica. In: Justiça Penal: críticas e soluções, volume 4-Provas ilícitas e reforma pontual. Coordenação Jaques Camargo Penteado. São Paulo: RT, 1997, p. 48-70. Também em seu Processo Penal Constitucional o autor omite uma proposta de solução sobre o assunto, que, de passagem, é referido. Cf. SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 94-95.
(83) RANGEL, Paulo. Breves Considerações sobre a Lei 9296/96. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 26, abril-junho de 1999. São Paulo: RT, 1999, p. 147.
(84) No Brasil não há exatamente um catálogo de crimes que admitam a interceptação telefônica como prova, senão que se indica a necessidade de serem crimes punidos com pena de reclusão.
(85) PRADO, Geraldo. Limite às interceptações telefônicas: a jurisprudência do STJ no Brasil e a alteração introduzida no Código de Processo Penal Português. In: Processo Penal do Brasil e Portugal: estudo comparado - as reformas portuguesa e brasileira. Lisboa: Almedina, 2009, p. 134.
(86) Que já será mencionada.
(87) PRADO, op. cit., p. 135.
(88) GOMES, Luiz Flávio. Escutas Telefônicas. In 2 Congresso de Investigação Criminal. Coordenação: Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes. Lisboa: Almedina, 2010, p. 145.
(89) O termo tem origem no conto Os Três Príncipes de Serendip, de Horace Walpole. Trata-se de história passada no antigo Ceilão, onde os três filhos do rei Giaffer, em viagem, passam a fazer descobertas de coisas que não procuravam. Diz-se que o conto foi baseado na vida do imperador persa Bahram V, sendo contado no Ocidente a partir da obra de Michele Tramezzino, com o seu Peregrinaggio di tre figliuoli del re di Serendippo. A publicação em inglês de Walpole teve grande influência, a ponto de gerar a palavra inglesa serendipity.
(90) GOMES, Luiz Flávio. Escutas Telefônicas. In: 2 Congresso de Investigação Criminal. Coordenação: Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes. Lisboa: Almedina, 2010, p.. 156. Ocorre que, num caso ou noutro destes denominados encontros fortuitos de segundo grau, admitir-se-ia a sua utilização como notitia criminis, isto é, a descoberta "vale como fonte de prova". IDEM, p. 155. É dizer, a partir dela poder-se-ia desenvolver nova investigação. Não há diferença entre este e o escólio do mesmo autor, em livro precedente. Cf. GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Interceptação Telefônica. SP: RT, 1997, p. 192-5. Não se pode, entretanto, considerar como acertado o alvitre, tanto mais quando GOMES indica por mais de uma vez ser, em seu entendimento, ilícita a prova consistente no encontro fortuito, a qual se deveria repelir por nula. Claro, afirmada que seja a nulidade da prova, não se faria admissível a abertura de investigação que tivesse, em sua raiz, procedimento de licitude duvidosa, e que viesse a contaminar tudo o mais que se produzisse neste processo posterior, da mesma maneira que entendemos inadequado, neste aspecto, o ponto de vista semelhante manifestado por Aguilar.
(91) Apenas para registro, mesmo a doutrina mais antiga, forjada na sequência do advento da Lei 9296/96, já mostrava pontos de vista divergentes, em sentido semelhante aos que apontados no texto. Neste sentido: Cf. JESUS. Damásio Evangelista de. Interceptação de Comunicações Telefônicas: notas à Lei 9296/96. In: RT 735, v. 86, janeiro de 1997. SP: RT, 1997 p. 458-473, onde sustentava a invalidade do conhecimento fortuito, como prova, em qualquer hipótese e GRECO FILHO, Vicente. Interceptação Telefônica. 2 edição. SP: Saraiva, 2005, p. 22-5, que desde a primeira edição de seu livro, do ano de 1996, admitia-a sem restrição. Com o mesmo entendimento de Greco Filho, Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. SP: RT, 2006, p. 355-6. Com o mesmo entendimento de Jesus, Cf. CAMARGO ARANHA, Adalberto Q. T. de. Da prova no processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 295.
(92) A situação não é, neste aspecto, diferente da que sucede na Espanha. Como se sabe, o artigo 579 da Ley de Enjuiciamiento Criminal não tratou do estatuto jurídico dos conhecimentos fortuitos - hallazgos casuales - e a doutrina, a este respeito, é divergente. BARAJAS PEREA, por exemplo, assinala que "no se puede renunciar a investigar una notitia criminis incidentalmente descubierta en el marco de una interceptación dirigida a otro fin". BARAJAS PEREA, Inmaculada López. La intervención de las comunicaciones electrónicas. Madrid: Wolters Kluwer, 2011, p. 165. VILABOY LOIS e NOYA FERREREIRO, por outra parte, dando conta da inevitabilidade da captação de conversas alheias, na interceptação, sustentam a necessidade de interrupção da medida, se em seu curso surgirem elementos a propósito de outros fatos, se bem sugiram, no fim, que "ante las dificultades técnicas que impiden evitar la grabación accidental de conversaciones que no resulten útiles para la investigación pocas o ninguna solución existe". VILABOY LOIS, Lotario; NOYA FERREREIRO, Lourdes. La intervención de las comunicaciones telefónicas en el proceso penal. Santiago de Compostela: Tórculo Artes Gráficas, 2010, p. 23-4. BARJA DE QUIROGA circunscreve a possibilidade de aceitação do conhecimento fortuito ao caso em que diga respeito ao próprio investigado, defendendo a sua exclusão se disser respeito a um terceiro, seja em que condição for. BARJA DE QUIROGA, Jacobo López. Las escuchas telefónicas y la prueba ilegalmente obtenida. Madrid: Akal, 1989, p. 200-1. LÓPEZ FRAGOSO, de sua parte, admite a utilização dos hallazgos casuales, desde que em conexão ao crime para que se autorizou a interceptação. LÓPEZ FRAGOSO, Tomás. Los descubrimientos casuales en las intervenciones telefónicas como medidas coercitivas en el Proceso Penal. In: Derechos y Libertades: Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, ano 1, Out. 1993/Mar.1994, n. 2. Madrid: Universidad Carlos III, 1994, p. 81-9.
(93) Com efeito, o relator à época, Ministro Nelson Jobim, ao apreciar o HC nº 83.515/RS, afirmou que se a escuta telefônica, executada de forma legal, acabou por trazer novos elementos probatórios de outros crimes que não geraram o pleito das gravações, especialmente quando são conexos, podem e devem ser levados em consideração. Este julgamento afinou-se à decisão do Superior Tribunal de Justiça - tomada no Habeas Corpus nº 13.274-RS -, anteriormente dada ao mesmo caso e na qual já se afirmara que, se no curso da escuta telefônica, deferida que seja para a apuração de crime punido com reclusão, são descobertos outros crimes, ainda que punidos com detenção, não há porque afastá-los da denúncia, diante da possibilidade de existência de outras provas hábeis a embasar eventual condenação. É verdade que, nesta hipótese, os delitos apenados com detenção, que se fizeram apurar pela interceptação telefônica, guardavam conexão com o crime que a motivou, tendo, inclusive, os mesmos autores. Sobre essa decisão, Cf. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. SP: Atlas, 2005. p. 54 e 55.
(94) Trata-se de AgRg, no AI. 626.214, relator o Ministro Joaquim Barbosa.
(95) Houve, é certo, breve menção à temática dos encontros fortuitos também no HC nº 84.388-3, julgado em 2004 pelo STF, mas neste caso afastou-se a própria ocorrência de um conhecimento fortuito, visto que se tratava de fatos vinculados estreitamente com aqueles que determinaram a interceptação telefônica. E ainda, admitindo o uso da interceptação telefônica para crime diverso daquele que motivou a diligência, no STF, Cf. Ag.Reg.761706, relatora a Ministra Cármen Lúcia.
(96) Neste julgamento, realizado em 13 de Agosto de 2008, consignou o relator, Ministro Cezar Peluso, que: dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, bem como documentos colhidos na mesma investigação, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessas provas.
(97) Para uma síntese da doutrina portuguesa neste ponto, Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4. ed. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, 528-9. Em sentido crítico - e particularmente ácido em relação a parecer de Vital Moreira, no caso denominado Apito Dourado, em que sustentava admissível trasladar certidões de escutas telefônicas realizadas em âmbito criminal, para processo de outra natureza -, Cf. RODRIGUES, Benjamin da Silva. Da prova penal. Tomo II: bruscamente...a(s) face(s) oculta(s) dos métodos ocultos de investigação criminal. Lisboa: Rei dos Livros, 2010, p. 364-5, em especial nota 493. Não teríamos condições, naturalmente, de aprofundar a análise deste caso concreto. Porém, e apesar de ter-se revelado minoritário, temos como insuperáveis os argumentos de Vital Moreira no sentido de que (a) a Constituição Portuguesa restringe a obtenção de prova por meio de escutas telefônicas em processo penal, mas não se refere a nenhuma reserva de sua utilização apenas neste âmbito, o que os consectários civis de uma condenação criminal lastreada em tal prova bem estão em revelar; (b) seria de uma incoerência total a hipótese de a afirmação do fato, em nível criminal, dar-se por esta via probatória e, no âmbito disciplinar, ter-se a possibilidade de o mesmo fato considerar-se não demonstrado, ficando impunível ao argumento de falta de provas. Para ampla abordagem deste ponto de vista, e de diversos outros argumentos aos quais sequer fizemos alusão - e com os quais, portanto, não nos comprometemos -, Cf. MOREIRA, Vital. A utilização e valorização do resultado de escutas telefónicas em processos disciplinares desportivos - Parecer. In: Desporto&Direito: Revista Jurídica do Desporto, ano VI, n. 18 - Maio-Agosto de 2009. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 431-502. Por isso também não estamos de acordo com a rejeição cabal, manifestada por COSTA ANDRADE, no sentido de que deveria ter como inadmissível colocar-se à disposição de investigações parlamentares os dados obtidos em decorrência de interceptações telefônicas realizadas licitamente. Para este efeito, Cf. COSTA ANDRADE, Manuel da. Escutas telefónicas, conhecimentos fortuitos e Primeiro Ministro. In: Revista de Legislação e Jurisprudência, n. 3962, 139 (2010). Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 273. A manifesta incoerência revelada no item (b) acima, já agora em termos de responsabilidade política, como seja a que em geral se pretende apurar nestas investigações parlamentares, a nosso ver fala por si só. Aliás, no Brasil, muito recentemente - em 24 de Maio de 2012 - no Inquérito 3430, o STF, em decisão de lavra do Ministro Ricardo Lewandowski, autorizou o envio de nove DVDs, com cerca de mil horas gravadas de conversas telefônicas, à CPI que versa, entre outros fatos, justamente sobre o caso do Senador da República a que aludimos em nossa hipótese inicial de trabalho, sob a letra (D). Com base neste e noutros elementos, o parlamentar acabou por perder o seu mandato.
(98) Cuida-se do MS 28003/DF, julgado em 08 de Fevereiro de 2012, onde se extrai do voto do relator, Ministro Luiz Fux: na situação em apreço, a autoridade judiciária competente teria autorizado o aludido monitoramento dos telefones de outros envolvidos em supostas irregularidades em execuções de convênios firmados entre determinada prefeitura e órgãos do governo federal. Ocorre que a impetrante teria mantido contatos, principalmente, com o secretário municipal de governo, cujo número também seria objeto da interceptação. Assim, quando das degravações das conversas, teriam sido verificadas condutas da impetrante consideradas, em princípio, eticamente duvidosas - recebimento de vantagens provenientes da prefeitura -, o que ensejara a instauração do processo administrativo disciplinar. Acresceu-se que a descoberta fortuita ou casual do possível envolvimento da impetrante não teria o condão de qualificar essa prova como ilícita. Dessa forma, reputou-se não ser razoável que o Conselho Nacional de Justiça deixasse de apurar esses fatos apenas porque o objeto da citada investigação criminal seria diferente das supostas irregularidades imputadas à impetrante. Discorreu-se, ademais, não poder o Judiciário, do qual o Conselho Nacional de Justiça seria órgão, omitir-se no tocante à averiguação de eventuais fatos graves que dissessem respeito à conduta de seus magistrados, ainda que colhidos via interceptação de comunicações telefônicas judicialmente autorizada em inquérito instaurado com o fito de investigar outras pessoas e fatos diversos.
(99) Mormente no STF. É de referir que no âmbito do STJ Brasileiro também já se decidiu, no HC nº 78.420, no sentido da desnecessidade de conexão entre o fato investigado e aquele descoberto, para efeito de admissão do conhecimento fortuito. E, no MS 15207, relatado pelo Ministro Benedito Gonçalves, em que policial rodoviário federal foi demitido, à conta de processo administrativo em que se utilizou de escutas telefônicas realizadas na órbita do processo criminal referente ao mesmo fato, assentou-se que: 4. ( ) é firme o entendimento deste Tribunal de que, respeitado o contraditório e a ampla defesa em ambas as esferas, é admitida a utilização no processo administrativo de 'prova emprestada' devidamente autorizada na esfera criminal. ( .) 5. Na espécie, a referida prova foi produzida em estrita observância aos preceitos legais, cujo traslado para o procedimento disciplinar foi precedido de requerimento formulado pela Comissão Processante do PAD perante o Juízo Criminal Federal ( ), devidamente deferido e submetido ao contraditório e ampla defesa em ambas as esferas. 6. Tendo sido a interceptação telefônica concretizada nos exatos termos da Lei 9.296/96, haja vista que o impetrante também responde criminalmente por sua conduta, não há que se falar em ilegalidade do uso desta prova para instruir o PAD.
(100) Na potencialidade de significados que comporta o termo, o que vale dizer - conforme já referido alhures -, como meio de prova, isto é, como " elementos com base nos quais os factos relevantes podem ser demonstrados" e como "motivação da convicção da entidade decidente acerca da ocorrência dos factos relevantes". SOUSA MENDES, Paulo de. As proibições de prova no Processo Penal. In: Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Coordenação científica de Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p. 133. De maneira que não concordamos com a observação do autor, no que sustenta haver, neste caso, uma proibição de valoração da prova, entretanto estranha à existência de qualquer vício em sua anterior produção. IDEM, op. cit., p. 143-4. A verdade é que o Código de Processo Penal Português não alude a tal proibição de valoração. Deixa-a em aberto, porquanto remete aos efeitos do artigo 248 do Código de Processo Penal a informação ao acaso obtida, sem impedir que essa, no curso do processo eventualmente inaugurado à sua razão, seja utilizada, pelo Juiz, como fundamento para a sua decisão. No limite, e falemos com as ressalvas que um argumento no limite impõe, na suposição de que nenhum dado mais de relevo haja no processo, remanescendo o que lhe deu nascimento, isto é, o conhecimento fortuito que se prestara como notícia do crime, com uma plenitude tal que, em si e por si, permitisse um juízo de procedência, no momento da sentença seria de recusar-se tal decisão? Estaria o Juiz proibido de valorar o conteúdo destas escutas? Dizemos que não.
(101) Condiciona-o, certamente, que a interceptação primitiva tenha atendido todos os requisitos que lhe são exigidos, os quais - neste ponto concordamos com Costa Andrade -, cobram da autoridade judiciária algo mais do que mera adesão à postulação do Ministério Público. Aliás, se "o Juiz não pode deferir a medida só porque o Ministério Público a solicita, também não pode, pura e simplesmente, remeter-se à fundamentação por ele apresentada". COSTA ANDRADE, Manuel da. Métodos ocultos de investigação (plädoyer para uma teoria geral). In: Que futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 550. De modo que nosso entendimento não está em coadunar com qualquer suposta banalização da interceptação telefônica, e isto há de ficar bem compreendido. Ao contrário, pois na sua virtualidade de produção de efeitos perante terceiros residirá, para além do mais, a necessidade de que seu deferimento seja dado sempre cum grano salis.
(102) O que nos exime da controvérsia sobre se a consideração de uma prova de valoração proibida, em sentença, conduziria a vício do ato ou a erro de julgamento, com repercussões em termos recursais. Sobre a problemática, Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Processual Penal. Volume I. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 462-3 e, mais recentemente, BÉRTOLO ROSA, Luís. Consequências processuais das proibições de prova. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 20, n. 02, Abril-Junho de 2010. Director: Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 240-1.
(103) HASSEMER, Winfried. Processo Penal e Direitos Fundamentais. In: Jornadas de Direito Processual Pena e Direitos Fundamentais. Coord. Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p. 22.
(104) FARIA COSTA, José Francisco de. Direito Penal da Comunicação:alguns escritos. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 157. No mesmo sentido, Cf. RODRIGUES, Benjamin da Silva. Da prova penal. Tomo II: bruscamente...a(s) face(s) oculta(s) dos métodos ocultos de investigação criminal. Lisboa: Rei dos Livros, 2010, p. 346-7.
(105) Diga-se, sem peias, que o "mundo criminal tenta optimizar, obviamente em seu favor, as fragilidades que, muito naturalmente, as sociedades democráticas, plurais e hipercomplexas apresentam ( ) o mundo criminal tenta desfrutar da protecção da privacidade para conseguir ou prosseguir seus intentos ilícitos". FARIA COSTA, José Francisco de. Direito Penal da Comunicação:alguns escritos. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 173.
(106) Neste sentido, entre tantos, Cf. ROXIN, Claus. Sobre o desenvolvimento do Direito Processual Penal alemão. In: Que futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 392-3. Na verdade, atinge antes o próprio suspeito ou investigado, que, a despeito de seu desconhecimento - suposto necessário para uma mínima eficácia da medida - vê-se na contingência de dar cabo da produção de prova cujo destino é a utilização em seu desfavor. Conforme ROGALL, naturalmente que a vigilância das comunicações parte do princípio de que tal medida abrangerá afirmações relevantes para a apuração dos fatos. ROGALL, Klaus. A Nova regulamentação da vigilância das telecomunicações na Alemanha. In: 2 Congresso de Investigação Criminal, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes, Almedina, 2010, p. 128. Questionar-se, todavia, a validade de tais meios sob o fundamento simplesmente restritivo da não intervenção é algo de que não se pode cogitar, sob pena de renunciar-se ao avanço da técnica e à apuração de crimes que, também eles, em sua prática, não olvidam os novos mecanismos tecnológicos. Dito de outro modo, o nemo tenetur se ipsum accusare não repugna, só por si, a apuração de determinados crimes, presentes circunstâncias de antemão trazidas pela lei processual, por intermédio de medidas que, no fim das contas, podem culminar em confissões involuntárias ou elementos equivalentes. Acerca dos fundamentos constitucionais do nemo tenetur em Portugal, e sua problematização, Cf. SILVA DIAS, Augusto; COSTA RAMOS, Vânia. O Direito à não auto-inculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-ordenacional português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 14-37. O contrário disso, segundo cremos, é a manutenção de um ponto de vista liberal-individualista, como parece advir da posição de HASSEMER - Cf. HASSEMER, Winfried. Processo Penal e Direitos Fundamentais. In: Jornadas de Direito Processual Pena e Direitos Fundamentais. Coord. Maria Fernanda Palma. Lisboa: Almedina, 2004, p. 17-8 -, que não resistiria à crítica política de um certo elitismo, porquanto é escusado dizer que tais mecanismos não propendem à resolução do que se convencionou chamar de street crimes, no que, a este respeito, não podemos deixar de concordar com SCHÜNEMANN, embora sua argumentação esteja mais voltada a aspectos de Direito Penal, que, entretanto, muito naturalmente convergem para o que aqui se está a dizer. Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Del Derecho Penal de la clase baja al Derecho Penal de clase alta: Un Cambio de paradigma como exigencia moral? In: Temas actuales y permanentes del Derecho Penal después del milenio. Madird: Editorial Tecnos, 2002, p. 53-9.
(107) E o faz com sobradas razões também a propósito de conhecimentos que abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado - artigo 188, n. 6, letra b, do Código de Processo Penal Português.
(108) Em sentido semelhante, Cf. MOREIRA, Vital. A utilização e valorização do resultado de escutas telefónicas em processos disciplinares desportivos - Parecer. In: Desporto&Direito: Revista Jurídica do Desporto, ano VI, n. 18 - Maio-Agosto de 2009. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 474.
(109) Fazendo-o, estamos ainda no âmbito do acaso. Segundo ANGIONI - nos comentários à Física -, embora Aristóteles sugira a neutralidade do acaso, porquanto resultante de uma conjunção concomitante de séries causais entre si independentes, quando do acaso resulta algo que "é bom, dizemos que se trata de um 'bom acaso' (tychê agathê), ou 'boa sorte', mas, quando é ruim, dizemos que se trata de um 'mau acaso' (tychê phaulê) ou 'má sorte' ( ) o mesmo termo 'tychê' exprime tanto acaso como sorte". Cf. ARISTÓTELES. Física I e II. Tradução de Lucas Angioni. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 310. Na tradução portuguesa da Ética a Eudemo, igualmente, constata-se a utilização de sorte, onde se poderia ler acaso. Neste ponto, Cf. ARISTÓTELES, Ética a Eudemo. Lisboa: Tribuna da História, 2005, p. 110-1, evidenciando-se a seguinte passagem: "( ) a natureza é causa ou daquilo que existe sempre do mesmo modo ou daquilo que é na maioria dos casos, enquanto a sorte é o contrário ". A tradução espanhola da Física, utiliza-se de suerte, invariavelmente, como sinónimo de acaso. Basta-nos aludir ao início do capítulo 4, do Livro II, em que assim se estabeleceu: "se suele decir también que son causas la suerte y la causalidad y que muchas cosas son y acontecen debido a la suerte y a la causalidad". ARISTÓTELES, Física. Tradução de Guillermo R. de Echandía. Madrid: Editorial Gredos, S.A., 2008, p. 146. Na tradução inglesa, amiúde vê-se utilizado luck, para efeito de tratamento do acaso. Para tanto, Cf. ARISTÓTELES, The Physics. Tradução de Philip H. Wicksteed, M.A e Francis M. Cornford. London: William Heinemann Ltd. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 1970, p. 141 e p. 147-8. Aliás, DAVID ROSS já assinalava a indistinta utilização, por Aristóteles, dos conceitos de fortuito e sorte, em contextos variados. Cf. DAVID ROSS, Sir. Aristóteles. Tradução de Luis Filipe Bragança S.S. Teixeira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, p. 84-5. Consoante CERQUEIRA, ainda, os dicionaristas dariam o acaso como "equivalente dos termos accidente ou caso fortuito, azar, sorte e fortuna (no sentido de eventualidade) ". CERQUEIRA, Antonio Augusto. O acaso no Direito Português. Lisboa: Tipografia Universal, 1916, p. 09.
(110) Por razões evidentes, não temos condição alguma de aprofundar essa discussão, que restringiremos ao campo pertinente de nosso trabalho. Sobre o tema, porém: Cf. WILLIAMS, Bernard. Moral Luck. In: Philosophical Papers 1973-1980. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 20-40, talvez o precursor da análise nestes termos. Discutindo seu ponto de vista, Cf. NAGEL, Thomas. La fortuna moral. In: Ensayos sobre la vida humana. Tradução de Héctor Islas Azaís. México: Fondo de cultura económica, 2000, p. 54-76 e, do mesmo: NAGEL, Thomas. Williams: un pensamiento de más. In: Otras mentes - ensayos críticos (1969-1994). Tradução de Sandra Girón. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000, p. 210-7. Com amplas referências, Cf. ainda: ARAÚJO, Fernando. Sorte Moral, carácter e tragedia pessoal. In: Estudos em memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches. Volume I: Direito Público e Europeu, Finanças Públicas, Economia, Filosofia, História, Ensino, Vária. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 781-836.
(111) As implicações dessa abordagem levar-nos-ia a um desvio de rota, do qual seria difícil escapar. Não poderíamos, por exemplo, deixar de aludir que o impacto de circunstâncias não controladas ou não controláveis pelo agente é uma dimensão, apenas, da "tensão que sempre perdura na nossa condição humana ( ) tensão entre a nossa vontade de comandarmos e transformamos o mundo e a resistência que o mundo oferece, vulnerabilizando-nos" - Cf. ARAÚJO, Fernando. Sorte Moral, carácter e tragedia pessoal. In: Estudos em memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches. Volume I: Direito Público e Europeu, Finanças Públicas, Economia, Filosofia, História, Ensino, Vária. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 783 -, e que não exclui uma outra, de que nós mesmos, nosso modo de ser, nossas características pessoais, em alguma medida são, também, derivadas de uma espécie de sorte. Neste sentido: ARISTÓTELES, Retórica - (1362a). Tradução de Manuel Alexandre Júnior e outros. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 112.
(112) NAGEL, Thomas. Williams: un pensamiento de más. In: Otras mentes - ensayos críticos (1969-1994). Tradução de Sandra Girón. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000, p. 212.
(113) Que se o queira discutir, em si, é algo que abriria outro nível de argumentação, que não pretendemos desenvolver.
(114) Não resistiríamos em opor à potencial objeção quanto ao caso (A), de que, por estar Jeffries a violar a intimidade de seus vizinhos, ter-se-ia por inválido - rectius: proibido - o seu testemunho, uma anedota do mundo forense - vinda não sabemos de onde, escusamo-nos -, segundo a qual o ladravaz, dentro da residência em que se encontrava a apanhar objetos, acabou por testemunhar um homicídio conjugal e, por isso - diríamos por acaso -, preso que foi, num caso era acusado, no outro, testemunha ocular.
(115) Por isso não teria qualquer razão quem dissesse que nosso alvitre poderia confundir-se com algo como uma defesa de que para a interceptação telefônica se prescindisse de alguma espécie de prévio catálogo. Não! Para o que sucede sempre, para o que sucede no mais das vezes, que é a produção ou o intento de produção de prova de crime determinado, praticado por pessoa definida, é mais do que conveniente estabelecer o campo de incidência do meio de prova que, evidentemente, redunda em séria limitação a direito fundamental eminente. Mas essa mesma razão não subsiste para o efeito das situações menos corriqueiras, em que, obra da sorte, deu-se a conhecer de outro crime.
(116) Retomando-se uma alegoria já feita, seria algo como se Duchamp, antes de deixar cair os seus fios, indagasse ao sistema se poderia fazê-lo e não encontrasse qualquer empecilho - o qual, crê-se, se houvesse, dar-lhe-ia uma razão para não agir, motivando-o -; depois da queda, todavia, depois do acaso, veria afetada a apreciação de sua obra, numa pantomima que, para nós, já não há de ser apenas estética.
(117) O homem do povo, leigo em Direito, diria ser mesmo muita sorte lograrem-se elementos contra alguma autoridade de tão alto escalão - o que falamos independentemente do caso concreto, cujos detalhes desconhecemos -, e isto demonstra que o senso comum é menos ignaro do que se possa supor.
(118) Numa asserção que nos reconduziria ao tema do espaço livre de Direito, dir-se-ia que não foi autorizada, nem por algum magistrado, nem pela ordem jurídica, e tampouco se poderia proibir o advento dos conhecimentos fortuitos, que, destarte, outrossim escapam às regras de determinação de competência.
(119) E aqui nos encontraríamos na companhia de COSTA ANDRADE, em sua abordagem sobre o artigo 11, n. 2, alínea b, do Código de Processo Penal Português. Com efeito, tal dispositivo encerraria norma de competência, pela qual a autorização de interceptações telefônicas, a gravação e a transcrição de conversas, em que figurassem certas autoridades - Presidente da República, Primeiro-Ministro e Presidente da Assembleia da República -, caberiam ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sem que daí se pudesse extrair consequências para a potencial obtenção de elementos probatórios contra essas mesmas autoridades sob a forma de conhecimentos fortuitos. Será mesmo a validade da interceptação primitiva o que haverá de determinar, neste plano, a validade da recolha dos conhecimentos fortuitos, não os afetando a "circunstância de apanharem peixe miúdo ou tubarão". COSTA ANDRADE, Manuel da. Escutas telefónicas, conhecimentos fortuitos e Primeiro Ministro. In: Revista de Legislação e Jurisprudência, n. 3962, 139 (2010). Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 286. Consoante o autor, o cediço caso ocorrido em Portugal, concernente ao à época Primeiro Ministro, deixou "atrás de si um rasto de documentação inabarcável". IDEM, op. cit., p. 270. Não teríamos, portanto, espaço ou tempo para dizer mais do que aquilo que nos parece crucial, e que é não haver fundamento idôneo para cogitar da exclusão da apreciação de um conhecimento fortuito quando este aludir a quem ostente condição tal que o órgão jurisdicional pertinente para eventual julgamento não seja o mesmo que determinou a interceptação telefônica, de onde o conhecimento fortuito brotou. A este respeito, parece ser correto o ponto de vista de Costa Andrade, no sentido de criticar a decisão adotada pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça Português - que acabou por determinar, asseverando a nulidade, a destruição dos registros e transcrições das conversas em que interviera o Primeiro-Ministro de então, uma vez que era terceira pessoa o alvo da interceptação telefônica determinada por Magistrado da Comarca de Aveiro. Distanciamo-nos de seu alvitre, todavia, no que concerne aos critérios de valoração dos conhecimentos assim obtidos, como parece evidente pelo curso de nossa exposição.
Fonte: Lex M.

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