A sentença que integra este post do “Fazendo Justiça” é uma aula de direito. Uma não, várias.
Desde a atipicidade processual da imputação alternativa à inconstitucionalidade do conteúdo do tipo de casa de prostituição; da ofensa ao princípio da secularização (separação entre direito e moral) à infringência ao conceito de tipicidade conglobante.
Rubens Roberto Rebello Casara, juiz de direito da 43ª Vara Criminal, explica como a punição da prostituição fere o princípio da tolerância, ínsito no Estado Democrático de Direito e se desvia do próprio conteúdo da tipicidade, uma vez que o ordenamento a acolhe como atividade lícita.
Repele a repressão à prostituição no contexto das medidas higienistas (preparatórias para os grandes eventos), e critica a irracionalidade da persecução que ignora justamente a tutela das vítimas que supostamente pretende proteger: as prostitutas, tratadas como seres invisíveis.
PODER JUDICÁRIO
COMARCA DA CAPITAL
JUÍZO DE DIREITO DA 43ª VARA CRIMINAL
Processo nº 02605412-02.2012.8.19.0001
Autor: Ministério Público
Acusados: EMSR e RRP
SENTENÇA
Cuida-se de ação penal proposta em face de Roberto Rodriguez Pereira e Everton Marcos de Souza Rodrigues dando-os como incursos nas sanções dos artigos 229 do Código Penal, porque, segundo a denúncia, desde abril de 2007, de forma estável e habitual, em comunhão de ações, “mantém, por conta própria ou de terceiros, estabelecimento em que ocorria e ocorre exploração sexual, inclusive, encontros para fins libidinosos, com nítido propósito de obtenção de lucro” (fl. 02).
A denúncia foi ofertada com lastro em inquérito policial (fls. 02f/208).
A ação penal foi recebida em 22 de maio de 2003, conforme se depreende da decisão de fl. 41.
Há decisão, que indeferiu o pedido de “interdição cautelar” da sociedade empresária descrita na denúncia e determinou a citação dos réus, entranhada à fl. 218.
As folhas penais dos réus vieram às fls. 222/235.
O Ministério Público ofereceu a apelação de fls. 241/242.
Há o laudo de exame de documentos de fl. 246.
A resposta à acusação de Roberto está às fls. 247/265 e a de Everton às fls. 266/288.
Vieram as provas técnicas de fls. 285/290.
O relatório da diligência realizada pelo GAP da 1ª Central de Inquéritos está entranhado às fls. 295/335.
Os autos vieram conclusos para o juízo de admissibilidade tanto do recurso interposto quanto da própria acusação.
É o relatório.
Passo, pois, a decidir.
Do juízo de admissibilidade da apelação de fls. 241/242.
Em que pese este julgador estar convicto de que a decisão de fl. 218 merece ser mantida, isso porque: a) inexiste o chamado poder geral de cautela em matéria penal (Nesse sentido: LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. II; BADARÓ, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 709-709; NICOLLIT, André. O novo processo penal cautelar: a prisão e as demais medidas cautelares. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 24-25). Sobre o tema, Magalhães Gomes Filho é claro: “não se pode cogitar em matéria criminal de um ‘poder geral de cautela’, por meio do qual o juiz possa impor ao acusado restrições não expressamente previstas pelo legislador”(1). Como ensina André Nicolitt, em “decorrência do due processo of law, bem como do fato das cautelares representarem restrições a direitos fundamentais, não se pode falar em poder geral de cautela do juiz, havendo verdadeira taxatividade no rol das medidas cautelares”(2); e b) ausente o interesse-utilidade da medida judicial, uma vez que não foram manejadas as medidas administrativas adequadas e suficientes à interdição da sociedade empresária em atenção ao devido procedimento legal, passo ao juízo de admissibilidade do recurso.
No caso em exame, o recurso é tempestivo e cabível (recurso de apelação é residual). Presentes os demais requisitos de admissibilidade recursal. Assim, recebo o recurso. Venham as razões e as contrarrazões recursais.
Do contexto (em que a ação penal foi proposta)
Na atual quadra histórica, não há como desconhecer que a interpretação (e interpretar é uma função criativa, uma vez que há uma diferença ontológica entre o texto legal e a norma produzida pelo intérprete) está condicionada pelo contexto. Assim, cabe indagar o contexto em que o Ministério Público pede a condenação de Roberto e Everton pela incidência comportamental no tipo descrito no artigo 229 do Código Penal.
De início, pode-se perceber que a ação penal foi proposta em meio ao clima político-repressivo gerado a partir da adoção de medidas higienistas voltadas à preparação da cidade do Rio de Janeiro para os megaeventos esportivos de 2014 e 2016. Essa circunstância fica clara com a leitura da medida cautelar incidental de interdição judicial do estabelecimento (fls. 210/217), na qual o Ministério Público, após fazer menção ao “turismo sexual” e à proximidade com grandes eventos internacionais (“valendo citar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016” – fl. 217), afirma que é “imperiosa a intervenção do Poder Judiciário, contribuindo para a mudança de tão pejorativa imagem” (fl. 217).
É relevante, ainda, notar que, segundo consta da própria denúncia, a investigação que deu origem à acusação iniciou-se em abril de 2007 e só em maio de 2012 a ação penal foi proposta. Diante dessa hipótese, ou seja, de que a ação penal foi proposta em meio ao projeto político de afastar da cidade “imagens pejorativas”, que não pode ser descartada em razão da manifestação de fl. 217 e do relatório de fls. 303/333 (que elenca e descreve “casas de massagem”, bares, casas de show e casas de swing situadas na zona sul da cidade do Rio de Janeiro), importa lembrar que a persecução penal não pode ser uma resposta imediata de natureza administrativa, sob pena de violação ao princípio da resposta não contingente (3), que regula a atividade de criminalização primária e secundária.
Mas, não é só. A análise do contexto em que foi oferecida a denúncia revela também que a acusação é formulada logo após a Comissão de Juristas indicada pelo Senado Brasileiro concluir, na mesma linha do que já existe em diversos países nos quais o fenômeno da secularização se fez consistente, pela desnecessidade (na realidade, inadequação constitucional) da tipificação do delito de “casa de prostituição” (atual artigo 229 do Código Penal).(4)
Poder-se-ia afirmar que a ação penal proposta em desfavor de Roberto e Everton, ainda que sem a vontade do ilustre acusador signatário da denúncia (e, aqui, se está a falar do inconsciente, aquele “saber que não se sabe”), acaba por simbolizar uma espécie de “canto do cisne”(5) dos desejos punitivos direcionados à conduta que encontra adequação típica no moribundo artigo 229 do Código Penal.
Ademais, como explicou o Professor e Desembargador Aramis Nassif, ao tratar de imputação similar a que consta da denúncia em exame, “a eficácia da norma penal nestes casos mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como ‘acompanhantes’, ‘massagistas’, motéis, etc, com tal conduta, já há muito, tolerada e publicizada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação”.(6)
Como lembrou André Nicolitt, em recentes declarações veiculadas na mídia, lamenta-se que no ano em que se comemora o centenário de Jorge Amado, a crítica às tentativas moralistas de controle da sexualidade (e da população etiquetada de “excluída”), presentes no romance Gabriela, cravo e canela (1958) (7), que se passa na pacata Ilhéus em plena década de 20, ainda se mostre atual (e necessária).
Das questões processuais
a) Da inépcia da denúncia:
Constata-se que a denúncia não atendeu de maneira integral a exigência contida no artigo 41 do Código de Processo Penal, a saber: descrever a conduta dos acusados, individualizando-as, com todas as suas circunstâncias penalmente relevantes. Em que pese descrever diversas características da sociedade empresária e reproduzir elementos inquisitoriais obtidos durante a investigação preliminar, ao individualizar/descrever a conduta dos acusados, o Ministério Público limitou-se a afirmar que “o primeiro denunciado é sócio administrador da sociedade e diretamente responsável pela sua manutenção, ao passo que o segundo, é o gerente, viabiliza o seu funcionamento, cabendo-lhe a chefia e o pagamento dos ‘funcionários’ da casa” (fl. 02-B).
Salta aos olhos, pois, que não se atribui aos acusados nenhuma conduta dirigida à violação do bem jurídico que se quer proteger com a norma penal mencionada na denúncia. De igual sorte, as condutas de Roberto e Everton, tais quais descritas, não geram ou aumentam o risco vedado pelo ordenamento jurídico. Dito de outra forma: tanto um olhar marcado pelo referencial finalista quanto uma visão baseada na teoria da imputação objetiva apontam para a ausência de uma ação humana penalmente relevante. E, de fato, figurar como sócio administrador e velar pela manutenção da sociedade empresária (fato que sequer encontra respaldo no material inquisitorial que serve de fundamento à persecução penal. Vale ressaltar que, na fase inquisitorial, chegou a se atribuir a um indivíduo chamado “Ricardo” a “propriedade da casa” – fl. 02 -C), bem como viabilizar o funcionamento da sociedade empresária, com a chefia e o pagamento dos funcionários da casa, são condutas que não encontram adequação típica no artigo 229 do Código Penal.
Ainda cumpre esclarecer que a afirmação genérica de que os réus “de forma estável e habitual, (...), livre e conscientemente, em comunhão de ações e desígnios criminosos entre si mantinham e mantém, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorria e ocorre exploração sexual” (fl. 02-A) também não atende à exigência do artigo 41 do Código de Processo Penal. O objeto da imputação é sempre um acontecimento naturalístico, ou seja, uma conduta concreta e única, que se dá em um determinado tempo e local.(8) O recurso a standards, que no mais das vezes ganham corpo com a repetição de termos legais, fórmulas pré-fabricadas, úteis à maximização da persecução penal, acaba por comprometer o sistema de garantias (em especial, o contraditório e a ampla defesa) que integra o devido processo legal. Por evidente, ao formular a denúncia, o Ministério Público, parte que é, poderes que têm, não pode se limitar a repetir as expressões e fórmulas utilizadas pelo legislador ao estabelecer o preceito primário da regra proibitiva.
No caso em exame, a investigação preliminar (persecução penal “pré-processual”) sequer permitiu ao Ministério Público esclarecer se os réus mantinham a sociedade empresária “por conta própria ou de terceiros”. Nesse particular, percebe-se, com clareza, que se optou por uma fórmula abstrata em detrimento da facticidade. Todavia, no Estado Democrático de Direito não há mais espaço constitucionalmente adequado para abstrações generalizantes que ocultam ou independem dos fatos concretos. Neste caso, a falta de justa causa (elementos mínimos no inquérito) conduziu o Ministério Público à inépcia.
b) Da imputação de ocorrência de exploração sexual: ausência de justa causa
A cognição judicial está delimitada pela imputação, isto é, pelo conjunto de fatos descritos na denúncia e atribuídos aos réus. No caso em exame, o Ministério Público, para adequar a conduta descrita na denúncia ao tipo proibitivo previsto no artigo 229 do Código Penal, afirmou que ocorria “exploração sexual” (fl. 02-A) no estabelecimento que, segundo a hipótese acusatória, era mantido pelos réus.
Todavia, a leitura das peças inquisitoriais, que têm por função demonstrar a seriedade da acusação formulada, não indica a existência de qualquer ato de exploração sexual. Note-se que todas as (supostas) prostitutas (que, em tese, seriam os sujeitos passivos da ação criminosa descrita na denúncia(9)), ouvidas na fase de investigação preliminar, não mencionaram qualquer ato de exploração sexual. Nada há, nas peças trazidas com a denúncia, que forneça justa causa à ação penal, isso em razão da inexistência de indícios da “exploração sexual” exigida à configuração típica.
O desvalor (ou melhor, o valor penalmente relevante) do significante “explorar” encontra-se nos significados “tirar partido ou proveito” ou “abusar da boa fé”(10). No caso em exame, pode-se afirmar que inexiste, nos elementos produzidos durante a investigação policial, suporte mínimo de “exploração” capaz de merecer a proteção do Estado. Todas as mulheres, apontadas como profissionais do sexo, que foram ouvidas no curso da investigação, são maiores de idade e capazes de exercer a sexualidade no local, da forma e nas condições que bem desejarem: não há indícios de que foram exploradas pelos réus. Registre-se, por oportuno, que a mudança legislativa de 07 de agosto de 2009 teve por objetivo afastar toda forma de moralismo como objeto de proteção do direito penal.
Salta aos olhos, ao cotejar os elementos inquisitoriais com o teor da acusação, que há um limite semântico intransponível para o juízo de admissibilidade positivo da denúncia: não há indícios de “exploração sexual”, ou seja, nada está a indicar que “pessoas que praticam a prostituição”(11) foram exploradas ou violadas em sua dignidade sexual; não há qualquer elemento capaz de sustentar, ainda que em uma cognição meramente sumária, que os acusados tiraram partido/proveito das mulheres que trabalhavam na casa.
Sem o suporte de elementos colhidos na fase de investigação policial, pode-se afirmar que está ausente uma das condições para o regular exercício da ação penal (a saber, a justa causa – artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal).
Do crime previsto no artigo 229 do Código Penal
a) Da Adequação social da conduta. O fenômeno da “casa de prostituição”: a história de uma inconstitucionalidade progressiva. Dos preconceitos sexuais à aceitação social.
Desde a entrada em vigor do Código Penal, a sociedade passou por imensas transformações. Os costumes mudaram. Assim, os atores jurídicos devem redobrar a atenção no processo de interpretação do texto legal, caso contrário irão confundir os valores da sociedade de hoje com aqueles de 1940/41. Basta, por exemplo, lembrar que Nelson Hungria, um dos juristas responsáveis pela elaboração do projeto que resultou no Código Penal, sustentava que “a conservação da virgindade física da mulher solteira é um intransigente mandamento dos nossos costumes sociais”(12) e que o marido violentador (em outras palavras: estuprador) “ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesmo (...), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito”.(13) Aliás, sobre o crime descrito na denúncia, Hungria defendia que apenas não seria reconhecido o crime de Casa de prostituição no fato “de prestar habitualmente local para relações sexuais de um casal de amantes ou desquitados arrependidos”.(14)
Da ditadura de Vargas e da inspiração fascista do Código Penal chegou-se, hoje, a um Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Márcia Dometila de Carvalho, o Estado Democrático de Direito, como conceito de ordem constitucional, pode ser traduzido em uma forma de racionalização de uma estrutura estatal-constitucional, dotada de um conteúdo normativo mínimo, capaz de fundamentar direitos e pretensões.(15) Assim, se a Constituição e esse Estado de Direito abrem-se para transformações tecnológicas, políticas, econômicas e sociais, a lei, inclusive a penal, como expressão do direito positivo, deve apresentar-se como corolário desse conteúdo constitucional.
Na lição de Lenio Streck, “o redimensionamento do Direito faz-se premente a fim de que o delito venha a corresponder à concepção própria do Estado Social e Democrático que a nova Constituição sanciona, o que significa, ao mesmo tempo, um processo de penalização de delitos que põem em risco a cidadania, como a sonegação de impostos e contribuições sociais, contrabando, crime organizado, meio-ambiente, etc., mas também um processo inverso de despenalização e de atenuação de penas bem evidente”. (16) Daí, com Carvalho(17), ser legítimo afirmar que, por esse processo de despenalização, devem ser expungidos de nosso ordenamento jurídico, por exemplo, tipos penais como o da casa de prostituição, não condizentes com o princípio da tolerância existente no Estado Democrático de Direito. O Direito Penal, a serviço de um marco mínimo de convivência, não se compraz em sancionar penalmente fatos mais afetos ao campo da moral.
Dito de outra forma, como explica o já citado Lenio Streck, “o novo modo de produção de Direito estabelecido pelo Estado Democrático de Direito produz o fenômeno da secularização do Direito, afastando-se os delitos ligados à moral (ou ao moralismo). Observa-se que o próprio anteprojeto da reforma do Código Penal expungiu os crimes de casa de prostituição, (...)”(18).
A conclusão, constitucionalmente adequada, é uma só: o tipo penal do artigo 229 não está recepcionado pela nova ordem constitucional produzida pelo Estado Democrático de Direito. Ademais, seguindo mais uma vez as palavras de Lenio Streck, “não se poderia deixar de lembrar que, em face do que ocorre cotidianamente em nossa sociedade, não é possível ainda hoje condenar alguém pelo delito de casa de prostituição” (in Parecer do Ministério Público nos autos da Apelação Crime n.º 698.383.932 do TJ/RS). Acompanhando o raciocínio do festejado jurista, basta que se abra qualquer jornal de grande circulação no Estado para que se perceba a existência de um espaço próprio para anúncios de casas de prostituição (sofisticadamente chamadas de “termas” ou “casas de massagem”). Ou então, basta que se ligue a televisão para perceber os inúmeros anúncios de 0900, tele-sexo, etc, em que as “chamadas” mostram mulheres e homens despidos oferecendo prazeres carnais.
Chega a soar irônico que se busque a condenação dos réus por manter casa destinada ao comércio de sexo em plena Era do Sexo Mercadoria. A normalidade do que antes era tido como transgressivo revela “um estado que existe quando um processo segue mais dominantemente um padrão reconhecível e aceito como o que, para a consciência da maioria, conforma melhor a realidade”. (19) De fato, ampliou-se a plena humanidade dos atos (ser humano é ser desejante) sexuais, pagos ou não, bem como desapareceu a necessidade da domesticação das pulsões sexuais como mecanismo de controle social e reprodução do trabalho. Ao contrário, hoje o sexo é apresentado e vendido como mercadoria, em todos os meios de comunicação de massa (das periguetes – termo que esconde o preconceito existente contra as mulheres que exercem a sexualidade de forma livre – globais aos programas que prometem devolver a pessoa amada em uma semana, o desejo é manipulado, enquanto o sexo é prometido/vendido como uma mercadoria qualquer). Diante desse quadro, não há, por evidente, mais espaço para a tutela penal de uma sociedade que “iguala as experimentações do sexo na movência da cama com a sociedade. Todo nicho é um mercado potencial”.(20)
A questão já foi abordada pelo professor e magistrado André Nicolitt, no julgamento de caso similar. Para evitar inúteis repetições, e em homenagem à cultura jurídica invulgar do jurista fluminense, vale reproduzir a decisão proferida nos autos do processo nº 0056213-63.2010.8.19.0004:
0056213-63.2010.8.19.0004 – Juízo de Direito da Segunda Vara Criminal de São Gonçalo – Sentença prolatada pelo Juiz de Direito André Luiz Nicolitt, em 06/04/2011 – Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de ADELINO MELLO LIMA, DOUGLAS LEONARDO SAMPAIO DE LEMOS, LUIZ HENRIQUE DUARTE, CLAUDIO MÁRCIO SOARES TORRES, RUBENS PEREIRA DA SILVA, CARLOS EDUARDO DA COSTA GUIMARÃES – Quadrilha ou Bando (Art. 288, 299, 230 e 342 - CP)
De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato (...) Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir Joga pedra na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni (Chico Buarque de Holanda) RELATÓRIO Trata-se de Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de ADELINO MELLO LIMA, DOUGLAS LEONARDO SAMPAIO DE LEMOS, LUIZ HENRIQUE DUARTE, CLAUDIO MÁRCIO SOARES TORRES, RUBENS PEREIRA DA SILVA, CARLOS EDUARDO DA COSTA GUIMARÃES, imputando aos quatro primeiros acusados os crimes dos artigos 288, 229 e 230 do CP, ao quinto denunciado o crime do art. 229 do CP e ao sexto denunciado o crime do art. 342 do CP. Recebimento da denúncia às fls. 313 (segundo volume) com decreto de prisão preventiva do acusado Adelino Mello Lima e Douglas Leonardo Sampaio Lemos. Citação do acusado Adelino Mello às fls. 364. Defesa prévia de Adelino Mello às fls. 411 (segundo volume). Requerimento de revogação de prisão às fls. 415. É o relatório. FUNDAMENTAÇÃO Da Imputação Trata-se de denúncia por formação de quadrilha (art. 288 do CP) para fins de práticas de crimes contra os costumes, notadamente a manutenção de casa de prostituição e rufianismo. Consta, ainda, na denúncia a prática dos crimes do art. 229, 230 do CP e, por um dos acusados, o crime do art. 342 do CP. A inicial acusatória não relata, concretamente, qualquer outro crime visado pela suposta quadrilha, tampouco o inquérito policial traz qualquer prova mínima do cometimento ou desígnio de cometimento de crimes diversos da casa de prostituição e rufianismo. Com efeito, impende analisar a tipicidade dos seguintes fatos: casa de prostituição, rufianismo e formação de quadrilha. Por outro lado, o lastro probatório relativamente à casa de prostituição e ao rufianismo é farto. Cumpre destacar de início que não há imputação, tampouco registro, de exploração de criança ou adolescente, tampouco de aliciamento de trabalhadoras. A imputação cuida da suposta exploração sexual de pessoas adultas e capazes que exercem como atividade profissional a venda de sexo. Do Juízo de Tipicidade A doutrina abalizada vem reconhecendo a fragmentariedade do direito penal. Para Figueiredo Dias, a função do direito penal radica na proteção das condições indispensáveis da vida comunitária. Desta forma, só deve incidir sobre os comportamentos ilícitos que sejam dignos de uma sanção de natureza criminal. Nilo Batista nos dá conta de que Binding foi o primeiro a registrar, em seu Tratado de Direito Penal, em 1896, o caráter fragmentário do Direito Penal. O direito penal deve pautar-se, então, por uma intervenção mínima, como ultima ratio. Além do mais, Hanz Welszel reconheceu no Direito Penal o princípio da adequação social. O professor Francisco de Assis Toledo bem delimita referido princípio afirmando que se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo, em certas situações aparentes, como se estivesse também alcançando condutas lícitas, isto é, socialmente aceitas e adequadas. Conforme lição de Cesar Roberto Bitencourt, o tipo penal envolve uma seleção de comportamentos e, também, uma valoração, sendo o típico já penalmente relevante. Todavia, determinados comportamentos típicos não têm relevância por serem condutas habitualmente sociais. Não poderia ser de outra forma: se o fato é adequado e admitido socialmente, não pode ser definido como crime, ainda que na aparência se ajuste ao tipo. Com a modernidade, busca-se intensificar o princípio da secularização, segundo o qual se produz uma ruptura entre direito e moral (ou moralidade), destacadamente a moral eclesiástica. Especificamente no que tange o direito penal, distinguindo crime e pecado. Com efeito, o moderno direito penal não pode considerar crime condutas que mais se aproximam do pecado, tampouco pode considerar crime condutas socialmente adequadas, como o caso da casa de prostituição e do rufianismo. Segundo Owen Fiss: the function of a judge is to give concrete meaning and application to our constitutional values (a jurisdição tem por função atribuir significado e aplicação aos valores constitucionais). Sendo assim, cabe ao juiz, concretizar valores constitucionais e não consagrar moralidades eventuais ou mesmo a hipocrisia. La ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos Como é sabido, as casas desta natureza estão espalhadas pelas principais capitais do Brasil. No Rio de Janeiro, a famosa 4 por 4 tornou-se até música. As termas Aeroporto distam poucos metros da Ordem dos Advogados, da Defensoria Pública e do Ministério Público, e lógico, do aeroporto Santos Dumont, isto é, próxima de lugares por onde todos do mundo jurídico trafegam cotidianamente . A Centauros, em lugar privilegiado de Ipanema, é o palco das despedidas de solteiros do high society. O que distingue estes conhecidos e referidos estabelecimentos do ´Club 488´ de Alcântara, Bairro de São Gonçalo? O preço dos serviços e o status dos freqüentadores. Como destaca o ilustre membro do Ministério Público e Professor Lenio Streck citando um camponês salvadorenho: la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos. Ademais, a prostituição é uma das profissões mais antigas do mundo e os movimentos sociais (destacamos as ONGs Daspu e Davida) lutam para o reconhecimento e melhoramento das condições de trabalhos destas profissionais, o que, a nosso ver, encontra eco em princípios fundamentais da República, como a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho (art. 1º da CRF/88). O fato é que os supostos crimes para os quais a suposta quadrilha se formou, são condutas socialmente adequadas e toleradas pela sociedade. Desaparecendo os crimes fins (casa de prostituição e rufianismo) desaparece o crime meio (formação de quadrilha). A matéria não é inédita em nossos tribunais. Da pena do eminente membro do Ministério Público Lenio Streck se extrai primoroso parecer cuja transcrição parcial não se pode abrir mão (parecer emitido na Apelação nº 70.016.475.980 - TJRS): ...o Direito Penal deve ser visto, hoje, sob um novo perfil. Vivemos sob um Estado Democrático de Direito, que estabeleceu um novo modo de produção de Direito. Como bem assinala Márcia Dometila de Carvalho, posição com a qual comungo e que desenvolvi na obra Tribunal do Júri - Símbolos e Rituais, editado pela Livraria do Advogado, o Estado Democrático de Direito, como conceito constitucionalmente caracterizado, traduz-se em uma forma de racionalização de uma estrutura estadual-constitucional, dotada de um 'mínimo normativo', capaz de fundamentar direitos e pretensões. E, se a Constituição e esse Estado Democrático de Direito abrem-se para transformações políticas, econômicas e sociais, a lei, inclusive a penal, como expressão do direito positivo, deve apresentar-se como corolário necessário deste conteúdo constitucional. Portanto, o redimensionamento do Direito faz-se premente a fim de que o delito venha a corresponder à concepção própria do Estado Social e Democrático que a nova Constituição sanciona, o que significa, ao mesmo tempo, um processo de penalização de crimes que põem em risco a cidadania, como a sonegação de impostos e de contribuições sociais, o contrabando, o crime organizado, as agressões ao meio-ambiente, etc., mas também um processo inverso de despenalização e de atenuação de penas bem evidente. Daí que, diz Márcia Dometila de Carvalho, por esse processo de despenalização, devem ser expungidos do Código Penal, por exemplo, tipos penais como o da casa de prostituição, rufianismo, adultério, etc., não condizentes com o princípio da tolerância existente no Estado Democrático de Direito, o qual, pondo o Direito Penal a serviço de um marco mínimo de convivência, não se compraz em sancionar penalmente fatos mais afetos à moral. Dito de outro modo, o novo modo de produção de Direito estabelecido pelo Estado Democrático de Direito produz o fenômeno da secularização do Direito, afastando-se os delitos ligados à moral (ou ao moralismo). O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais - TJMG também já decidiu o tema deixando assentado: CASA DE PROSTITUIÇÃO - ADEQUAÇÃO SOCIAL - ABSOLVIÇÃO - MEDIDA QUE SE IMPÕE - TRÁFICO INTERNO DE PESSOAS - PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO - APLICAÇÃO - ABSOLVIÇÃO - NECESSIDADE - REFORMATIO IN MELLIUS - POSSIBILIDADE. I - O Direito penal moderno não atua sobre todas as condutas moralmente reprováveis, mas seleciona aquelas que efetivamente ameaçam a convivência harmônica da sociedade para puni-las com a sanção mais grave do ordenamento jurídico que é - por enquanto - a sanção penal. II - O princípio da adequação social assevera que as condutas proibidas sob a ameaça de uma sanção penal não podem abraçar aquelas socialmente aceitas e consideradas adeqüadas pela sociedade. III - A prática do crime de tráfico interno de pessoas destinava-se a ''abastecer'' a casa de prostituição, em tese, mantida pela apelante. Ou seja, o primeiro encontra-se umbilicalmente ligado ao segundo, sendo que reconhecida a impossibilidade de se punir o mais abrangente, deve ser o mesmo procedido quanto ao outro, já consumido. IV - É plenamente possível a reforma da sentença em benefício do réu, ainda que se trate de recurso exclusivo da acusação, em virtude do princípio da reformatio in mellius. APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0051.05.014713-4/001 Com efeito, impende absolver os acusados, sumariamente, dos crimes de formação de quadrilha, casa de prostituição e rufianismo. Mantém-se o feito tão somente em relação ao crime do art. 342 do CP, imputado ao acusado Carlos Eduardo. DISPOSITIVO Isto posto, ABSOLVO OS ACUSADOS ADELINO MELLO LIMA, DOUGLAS LEONARDO SAMPAIO DE LEMOS, LUIZ HENRIQUE DUARTE, CLAUDIO MÁRCIO SOARES TORRES, RUBENS PEREIRA DA SILVA dos crimes dos artigos 288, 229 e 230 do CP, com fulcro no artigo 397, inciso III do CPP. Renove-se o ato citatório do acusado CARLOS EDUARDO DA COSTA GUIMÃES para responder pelo crime do art. 342 do CP. Por conseguinte, revogo as prisões preventivas. Expeçam-se alvarás de soltura. Anote-se e comunique-se, sem custas. PRI. Após o trânsito, deixe baixa em relação aos acusados absolvidos. São Gonçalo, 06 de abril 2011. ANDRÉ LUIZ NICOLITT Juiz de Direito. “Acontece que a donzela - e isso era segredo dela - Também tinha seus caprichos E a deitar com homem tão nobre Tão cheirando a brilho e a cobre Preferia amar com os bichos Ao ouvir tal heresia A cidade em romaria Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos O bispo de olhos vermelhos E o banqueiro com um milhão Vai com ele, vai Geni Você pode nos salvar Você vai nos redimir Você dá pra qualquer um Bendita Geni” (Chico Buarque de Holanda).
Nesse sentido, ainda:
CASA DE PROSTITUIÇÃO. Absolvição. A manutenção de Casa de Prostituição é descriminalizada pela jurisprudência, em virtude da liberação de costumes. APELO MINISTERIAL IMPROVIDO. (Apelação crime nº 70017660143, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Genacéia da Silva Alberton, j. em 17/10/2007).
APELAÇÃO-CRIME. MANUTENÇÃO DE CASA DE PROSTITUIÇÃO. ATIPICIDADE. A mudança dos costumes, do comportamento e até mesmo dos valores morais com o passar dos anos despiu de reprovabilidade social a conduta de manter casa de prostituição. Desta forma, tendo em conta que a norma penal incriminadora tem o escopo de repreender e prevenir condutas repudiadas pela sociedade é que tal fato não pode mais ser considerado crime. À unanimidade, negaram provimento ao apelo. (Apelação crime nº 70019472026, Oitava Câmara Criminal, TJ/RS, Relator: Roque Miguel Franj, j. em 19/09/2007).
c) Da incompatibilidade entre o artigo 229 do Código Penal e o princípio da secularização.
Basta a leitura do tipo penal (e da denúncia formulada) para se perceber que eventual condenação dos réus violaria o princípio da secularização. Dito de outra forma, a solução constitucionalmente adequada para o presente caso penal implica na superação da confusão que acompanha a história do direito penal, fruto da tradição forjada a partir do positivismo jurídico, entre moral e direito. Hoje, não mais é razoável confundir legitimação moral com legitimidade jurídica, moral com direito, Estado com Igreja, pecado com crime.
Como ensina Luigi Ferrajoli, o direito e o Estado “não possuem nem representam valores enquanto tais, e tampouco devem ter fins morais desvinculados dos interesses das pessoas ou constituir fins em si próprios, justificando-se, somente, por meio da tarefa de perseguir objetivos de utilidade concreta em favor dos cidadãos”.(21) Por evidente, um fato para ser penalmente relevante deve ser reprovável, mas nem toda conduta reprovável pode ser objeto de proibição penal.
Novamente, com Ferrajoli, pode-se afirmar que o princípio da secularização (o princípio liberal da separação direito-moral) exclui do conceito de delito qualquer conotação do tipo moral ou natural (embora não impeça que as proibições legais sejam objeto de valoração ético-política). (22)
Em resumo: em atenção à secularização, normativa que barra os diversos fundamentalismos de se instalarem na seara penal, normas penais não podem ter conteúdo exclusivamente moral ou religioso, bem como impede que se pretenda proteger os bons costumes ou os valores da família burguesa por meio de tipos penais.
Não por acaso, o promotor de justiça e professor André Estefam esclarece que
Com o advento da Constituição Federal e a alteração do valor protegido nos arts. 213 a 234, que agora passam a ser crimes contra a ‘dignidade sexual’, não mais se justifica a própria subsistência do tipo penal. Num Estado Democrático de Direito, calcado na dignidade da pessoa humana, que pressupõe a liberdade de autodeterminação, não se pode considerar criminosa uma atividade que, em seu bojo, não envolve práticas ilícitas (somente imorais). Lembre-se, uma vez mais, que a prostituição não constitui delito (ou mesmo ilícito algum). (23)
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu que:
O crime contra os costumes consistente em manter casa de prostituição, previsto no art. 229 do CP, tutela a moralidade pública e, como tal, não pode mais subsistir, (...), afigurando-se hipocrisia apegar-se ao rigorismo da postura legalista e, ao mesmo tempo, ignorar a licenciosidade que predomina em telenovelas e em outros programas televisivos.(24)
d) Da atipicidade penal: para além da tipicidade legal, uma visão conglobante.
Hoje a prostituição (fato lícito), ou mais precisamente, a relação entre os profissionais do sexo e as pessoas que mantém locais em que o sexo é o principal serviço prestado é tutelada pela Justiça do Trabalho. Frise-se que os profissionais do sexo estão inseridos no Catálogo Brasileiro de Ocupações (COB), no grupo XX, subgrupo Z02. Poder-se-ia dizer, então, que uma perspectiva conglobante (e a tipicidade conglobante é um elemento corretivo da tipicidade legal), de que uma relação não pode ser ao mesmo tempo normativa e antinormativa, impede o reconhecimento da tipicidade penal da conduta descrita no artigo 229 do Código Penal.
Sabe-se que “a tipicidade penal pressupõe a legal, mas não a esgota; a tipicidade penal requer, além da tipicidade legal, a antinormatividade”. (25) No caso em exame, percebe-se que as normas protetivas do direito do trabalho regulam a relação entre os profissionais do sexo e as sociedades em que o serviço sexual é prestado. Tem-se, portanto, uma relação juridicamente tutelada pelo direito pátrio. Impossível, pois, que uma ordem normativa, na qual uma norma possa regulamentar (uma relação de trabalho) o que outra possa proibir, caso contrário ter-se-ia verdadeira “desordem arbitrária”.(26) A lógica mais elementar impede que um tipo penal proíba uma conduta que outras normas jurídicas aceitam e regulamentam. Como ensinam Zaffaroni e Pierangeli, “as normas jurídicas não ‘vivem’ isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se mutuamente”. (27)
e) Das consequências da tutela penal pretendida pelo Ministério Público: da irracionalidade da atuação estatal.
Ultrapassada a quadra histórica em que vigoravam teorias que pretendiam uma mitológica separação absoluta entre o direito e seu conteúdo ético, entre o sistema de justiça criminal e a política, não há como deixar de reconhecer a função atribuída ao Poder Judiciário de controlar não só a legalidade, como também a legitimidade e a racionalidade dos atos estatais, em especial nos casos em que direitos fundamentais são postos em questão.
Não pode a Agência Judicial ignorar que a prostituição sempre acompanhou os passos da humanidade. Estudos sérios apontam que as causas da prostituição são as mais diversas e complexas (é notório que o desemprego, a miséria e a fome também têm conduzido a desestrutura de milhares de famílias brasileiras, propiciando a prostituição desde muito cedo). Não pode o Poder Judiciário (e mesmo o Ministério Público) acreditar que a procedência do pedido formulado nestes autos levará ao resgate da dignidade sexual das pessoas que, segundo a denúncia, exerciam a prostituição na sociedade empresária “Terma Monte Carlo”.
As prostitutas que o Ministério Público pretende defender com a condenação dos réus neste processo, não deixarão de exercer a prostituição (atividade, vale insistir, lícita) em razão de eventual sentença condenatória. Os motivos que as levaram à prostituição continuarão a existir e as profissionais do sexo se deslocarão para outros estabelecimentos (que não foram atingidos no processo de seleção que levou à persecução penal da “Terma Monte Carlo”) ou passarão a oferecer os seus serviços nas ruas da cidade ou através dos “disque-sexo” que se fazem presentes em todas as metrópoles. O pior: tanto na hipótese de irem para as ruas, quanto na de atenderem clientes que marcam encontros por telefone, aumenta consideravelmente o risco à integridade física dos profissionais do sexo (que deixam de contar com a segurança propiciada nas “casas de prostituição”).
Para além do problema social consistente no oferecimento de sexo em via pública (e a reportagem veiculada pelo jornal Odia, na edição dominical de 19 de agosto de 2012(28) é bem ilustrativa do drama vivido pelas prostitutas e moradores do local em que se dá a prática), a segurança das profissionais do sexo deveria ser objeto de preocupação não só da Administração Pública como também de todos os atores jurídicos.
Em outras palavras, não se pode desconsiderar a vontade das mulheres que exerceram a liberdade de escolher o local e as condições em que desejam praticar sexo mediante pagamento. De igual sorte, por evidente, a resposta estatal, em concreto, não pode agravar (aumentar o risco, por exemplo, no exercício da atividade de prostituição) a situação das pessoas que a norma penal, em abstrato, pretende proteger.
As prostitutas, todas maiores de idade e responsáveis, não podem ser tratadas como seres invisíveis, despidos de vontade e capacidade de escolhas racionais. Deve-se superar a racionalidade machista que coloca a mulher como vítima dele, da motivação dele e da vontade dele (29). No caso em exame, todas as apontadas prostitutas, algumas matriculadas em cursos de ensino superior, tinham capacidade para optar por trabalhar ou não no estabelecimento descrito na denúncia. Cabe, ainda que neste momento inicial, para demonstrar o equívoco da persecução penal, resgatar/considerar a experiência de vida das mulheres que o Ministério Público pretende “salvar” com a ação penal em desfavor dos réus e reconhecer – diante dos relatos em sede policial – que elas podem não querer ser salvas.
Assim, salta aos olhos que a ação penal proposta viola o princípio da proporcionalidade concreta (princípio da adequação do custo social), uma vez que não se mostra o meio hábil/adequado/menos custoso ao fim a que se destina (proteger a dignidade sexual das prostitutas que trabalham no estabelecimento comercial) e agrava (e reproduz) os conflitos na área em que intervém (posto que apta a aumentar tanto o risco à integridade física das prostitutas quanto o fenômeno da prostituição de rua).
Note-se que não se está defendendo a prostituição. Todavia, a resposta penal mostra-se, neste caso, irrazoável. Preciso é divisar o que efetivamente interessa à sociedade reprimir, e até onde as condutas selecionadas se afiguram ofensivas aos padrões morais que ela mesma exija sejam preservados. Sem dúvida, a conduta descrita na denúncia se tornou tolerada pela sociedade, em razão de uma consciência social que busca, e procura manter, o Estado Democrático de Direito. Atípica, portanto, essa conduta descrita na denúncia, diante da força normativa (eficácia revogadora) da própria Constituição da República.
f) Da sociedade empresária: a impossibilidade da adequação típica pretendida pelo Ministério Público.
A leitura das peças inquisitoriais também permite afirmar, desde já, que a pretensão punitiva externada pelo Ministério Público não merece prosperar. Isso porque a leitura dos elementos produzidos em sede inquisitorial revela que a sociedade empresária “Sociedade Terma Monte Carlo Ltda” é um local em que ocorrem diversas outras atividades além daquela etiquetada de imoral (prostituição). No inquérito policial que serve de base à denúncia, constatou-se que no estabelecimento comercial existem espetáculos de dança, veiculação de músicas e venda de bebidas. Diante desse quadro, em que não se pode afirmar que a casa é destinada à exploração sexual (embora possam ocorrer atos libidinosos mediante paga), tem-se entendido que não há adequação típica.
Nesse sentido:
PENAL. CASA DE PROSTITUICAO. CRIME HABITUAL. EXIGIBILIDADE DA PROVA SEGURA DE HABITUALIDADE. SINDICANCIA PREVIA. CASA DE MASSAGEM. ANUNCIO EM CLASSIFICADOS. DISQUE-DENUNCIA. A QUESTAO DA REITERACAO. EXEGESE DO ART. 229 DO CODIGO PENAL. 1. DA LEITURA DO TEXTO INSCULPIDO NO ART. 229 DO CODIGO PENAL, OBSERVA-SE QUE A CONDUTA INCRIMINADA CONSISTE EM MANTER (SUSTENTAR, CONSERVAR, PROVER, POSSUIR, EM PERMANENTE LOCAL) CASA DE PROSTITUICAO O LOCAL PARA FIM LIBIDINOSO. ASSIM, A CASA DE PROSTITUICAO (LUPANAR, BORDEL OU "RENDVOUS"), TRADUZ-SE PELO LOCAL ONDE SE FAZ PERMANECER PROSTITUTAS OU PROSTITUTOS, PARA COMERCIALIZAR SUAS RELACOES SEXUAIS COM A CLIENTELA, PERMANENTE OU EVENTUAL. 2. CUIDA-SE DE CRIME HABITUAL, POIS A CONDUTA TIPICA SOMENTE SE INTEGRA COM A PRATICA DE PLURIMAS ACOES QUE ISOLADAMENTE SAO INDIFERENTES AO DIREITO. A REPROVABILIDDE ESTA EM MANTER O LOCAL PARA A REPETICAO DOS COLOQUIOS SEXUAIS COM OU SEM FIM LUCRATIVO. CUMPRE ASSINALAR A EXIGENCIA DE PROVA SEGURA DA HABITUALIDADE, QUE SE REFERE EXPRESSAMENTE A MANUTENCAO DA CASA DE PROSTITUICAO, O QUE SE FAZ PRINCIPALMENTE ATRAVES DE SINDICANCIA PREVIA OU QUALQUER MEIO PROBATORIO DA EXISTENCIA DA REITERACAO DE CONDUTAS JURIDICAMENTE DESVALORADAS. 3. TRATANDO-SE DE CASA DE MASSAGEM, PARA FINS DE CONFIGURACAO DO INJUSTO DESCRITO NO ART. 229 DO CODIGO PENAL, TORNA-SE NECESSARIO QUE O ESTABELECIMENTO TENHA SIDO TRANSFORMADO EM USO EXCLUSIVO PARA A PROSTITUICAO, POIS A MERA MANUTENCAO DO COMÉRCIO, AINDA QUE OCORRA ENCONTROS LIBIDINOSOS E' ATIPICA. ASSIM, NAO HA' CRIME SE UMA DAS MASSAGISTAS RECEBER UM CLIENTE E COM O MESMO REALIZAR CONGRESSO SEXUAL, SEM QUE.TENHA.HAVIDO.MEDIACAO. 4. E' NECESSARIO TER PRESENTE QUE A EXIGIBILIDADE DO REQUISITO DA HABITUALIDADE, NAO SE APERFEICOA PELO MERO ANUNCIO EM CLASSIFICADOS, OU SIMPLES ANOTACAO NO SISTEMA DO ANONIMATO CONSAGRADO NO DENOMINADO "DISQUE-DENUNCIA" PARA PROVAR, HA' "REITERATIO", SENDO INDISPENSAVEL A PROVA PREVIA ATRAVES DE INVESTIGACAO FEITA PELA AUTORIDADE POLICIAL. 5.RECURSO.IMPROVIDO (TJ/RJ, 3ª Câmara Criminal, Apelação Criminal nº4650/2002, Relator: Álvaro Mayrinck da Costa, j. 01/07/2003). |
g) Conclusão
Diante do exposto, constata-se que além das atipicidades processuais que caracterizam a inépcia da denúncia (violação ao artigo 41 do Código de Processo Penal) e a ausência de justa causa (artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal), os elementos produzidos na investigação preliminar permitem, na fase do artigo 397 do Código de Processo Penal, desde já, declarar a improcedência do pedido formulado pelo Ministério Público. Isso porque: (a) a não-recepção do artigo 229 do Código Penal, (b) a adequação social da conduta, (c) a atipicidade penal, (d) a violação ao princípio da secularização, (e) a violação ao princípio da proporcionalidade concreta (ou da adequação do custo social), (f) a instrumentalização das prostitutas-vítimas (que deveriam ser protegidas e acabam prejudicadas), (g) o fato do estabelecimento não ser exclusivamente voltado para o comércio sexual (nesse sentido, também: TJ/SP, ACrim 291.889, 3ª Câmara Criminal, Rel. Segurado Braz, RT, 805:568; RT, 589:322, 536:290 e 619:290), e (h) a impossibilidade da conduta descrita na denúncia aumentar o risco de violação do bem jurídico “dignidade sexual” revelam que o fato narrado evidentemente não constitui crime (artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal).
Assim, por economia processual e para dar concretude aos princípios do interesse (artigo 565, do Código de Processo Penal), do prejuízo (pas de nullité sans grief) e da duração razoável do processo, uma vez que à defesa, parte prejudicada pelas atipicidades processuais verificadas na denúncia (nemo auditur propriam turpitudinem allegans), diante das circunstâncias do caso concreto, interessa o julgamento antecipado do pedido condenatório, parte-se à apreciação do mérito.
Isto posto, julgo IMPROCEDENTE a pretensão punitiva estatal para ABSOLVER SUMARIAMANTE RRP e EMSR com fulcro no artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal..
Sem custas.
Anote-se e comunique-se.
P.R.I.
Após o trânsito em julgado, dê-se baixa na distribuição e arquivem-se os autos.
RUBENS R R CASARA
Juiz de Direito
Notas
1-GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 57.
2-NICOLITT, André. O novo processo penal cautelar: a prisão e as demais medidas cautelares. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 24.
3-BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo (para uma teoria de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal. In Doutrina penal, n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987, pp. 623-650.
4- A notícia pode ser encontrada em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/36236-comissao-do-senado-propoe-legalizar-casa-de-prostituicao.shtml
5- A expressão “canto do cisne” é uma referência a uma antiga crença de que o cisne-branco (Cygnus olor) é mudo durante quase toda a sua vida, mas pode cantar uma bela e triste canção imediatamente antes de morrer.
6-Apelação Crime nº 70021379946, 5ª Câmara Criminal, Rel. Aramis Nassif, unânime, j. em 14 de novembro de 2007.
7- No romance, traduzido para vários idiomas, as beatas da sociedade de Ilhéus procuram controlar a sexualidade das mulheres e chegam a se organizar para vigiar as suspeitas de adultério e proibir as prostitutas de participar das procissões religiosas.
8- Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
9- Por todos: JESUS, Damásio de. Código penal anotado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 790.
10- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004, p. 857.
11- JESUS, Damásio de. Código penal anotado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 790
12-HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal , volume VIII: arts. 197 a 249. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 152..
13-HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal , volume VIII: arts. 197 a 249. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 115.
14- HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal , volume VIII: arts. 197 a 249. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 281.
15-CARVALHO, Marcia Dometila de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Fabris, p. 46 e segs.
16- Parecer do Ministério Público nos autos da Apelação Crime n.º 698.383.932 do TJ/RS
17-CARVALHO, Marcia Dometila de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Fabris.
18- Parecer do Ministério Público nos autos da Apelação Crime n.º 698.383.932 do TJ/RS
19-MENEZES, Aluisio Pereira de. A normalidade do transgressivo na era do sexo como mercadoria. In Transgressões (Org. Carlos Alberto Plastino). Rio de Janeiro: Contracapa, 2002, p. 143.
20- MENEZES, Aluisio Pereira de. A normalidade do transgressivo na era do sexo como mercadoria. In Transgressões (Org. Carlos Alberto Plastino). Rio de Janeiro: Contracapa, 2002, p. 147
21-FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 207.
22- FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 422.
23- ESTEFAM, André. Direito Penal: parte especial (arts. 184 a 285). São Paulo: Saraiva, 2011, p. 204
24-JM 173/419.
25- ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal, vol. 1: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 395.
26- ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal, vol. 1: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 395.
27- ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal, vol. 1: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 395
28-A matéria encontra-se também na edição digital em http://odia.ig.com.br/portal/rio/a-rua-do-sexo-na-ilha-do-governador-1.478047.
29- Nesse sentido: SMART, Carol. Women, crime anda criminology: a feminist critique. Londres: Routledge, 1980, p. 177
Fonte:Marcelo Semmer
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