quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A mente do traficante – entrevista com o psiquiatra forense Renato Posterli




Ao iniciar o comércio de drogas, um indivíduo vai, aos poucos, tornando-se cada vez mais frio e insensível ao sofrimento do usuário, do dependente e de seus familiares. É assim que a psiquiatria forense descreve a conduta do grande traficante. Para conhecer a mente e as motivações de quem ganha a vida trilhando as rotas do tráfico, a equipe da Fato Típico conversou com o psiquiatra Renato Posterli. Professor de Medicina Legal e Psiquiatria Forense na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, Posterli tem várias obras publicadas, entre elas, “Aspectos da psicopatologia forense aplicada”.

Quais os principais fatores sociais e psicológicos/psiquiátricos que impulsionam um indivíduo a se tonar um grande traficante?
De um modo geral, um grande traficante caracteriza-se por transtorno de personalidade antissocial, que não é doença. De uma maneira mais simplista, é personalidade psicopática, o clássico psicopata. Não é por fator social que tal indivíduo é impulsionado para esse tipo de crime. Ser psicopata é de sua constituição, ou seja, nada de ambiental influindo. Essa grave alteração de conduta é incorrigível, não tem tratamento, pois não é doença. O grande traficante sempre faz com que os outros sofram e é egossintônico, isto é, harmonizado, sintonizado tão-somente consigo mesmo. Ele é personalidade psicopática fria de ânimo, amoral, aética, perversa, desalmada, capaz de, se preciso for, matar sem ser atingido emocionalmente e sem ter remorso, desde que matar seja-lhe vantajoso. Pelo seu comportamento, o traficante é personalidade anormal, porém não é doente mental. Ele tem conhecimento do certo e do errado, mas não vivencia emocionalmente esse certo e esse errado. Apresenta mímica de emoção, ou seja, não tem o acompanhamento fisiológico com reação mímica verdadeira, típica de quando vivenciamos emoções que tocam nosso suceder interno. Chama-se isso muro ilegítimo de expressão, pois é frio de ânimo. Pode até ser que um grande traficante mostre-se, na prisão, aparentemente polido, cordato, educado, sem cometer infrações e respeitoso das formalidades, dos funcionários e das autoridades. Isso é o que se chama formação reativa: desenvolvimento de traços psicológicos exatamente o oposto do que se é na realidade.

Que mudanças podem ser verificadas nas atitudes de quem passa a vender drogas?
Quem passa a comercializar drogas vai, aos poucos, tornando-se cada vez mais frio de ânimo e insensível ao sofrimento do usuário, do dependente e de seus familiares. Costuma, de modo espúrio, escuso, “prosperar” e, visando ao lucro, rege-se tão-só pela “intenção lucrativa”, pelos ganhos. Não raro, além de vender e de comprar, pode até roubar e mesmo matar, sequestrar, para satisfazer o desejo de lucro, de ganho perverso. Bem se sabe, tristemente, que as drogas constituem verdadeira pandemia que varre o mundo da juventude. E assim, o traficante faz fortuna à custa da desgraça e do sofrimento alheios. Por isso mesmo, é desprovido de sentimentos superiores como o dó, a compaixão, a honestidade, o remorso, a consciência moral, pois, o traficante é “disposicionalmente” frio de ânimo, aético, perverso, desalmado.

Como o senhor analisa a situação de famílias que mudam totalmente o estilo de vida, adquirindo bens materiais, com os recursos do tráfico? Nesses casos, os traficantes são reforçados a continuar na criminalidade?
Com os recursos do tráfico, esse condutopata, que obviamente visa ao lucro, vende a droga, e com o arrecadado, ou empata em mais droga para vender e aumentar o capital, ou empata em outra área que supõe bom negócio, até mesmo como fachada. Nesse âmbito, pode adquirir casas, carros e outros bens materiais, propiciando um estilo de vida diferenciado para a família e para si mesmo. Família essa que não há por onde escapar, pois é satélite girando em torno de conduta antissocial do genitor. É este o centro das provisões e os familiares o epicentro da espúria conduta. Ora, se seu gesto “pseudoprofissional” vai dando certo, a par de aparente, de novo e de promissor estilo de vida, inclusive à família, os traficantes são, comportamentalmente, reforçados a prosseguir na criminalidade, pois essa mudança plena de estilo de vida é o elemento reforçador positivo à criminogênese. Daí, a necessidade de rigor na execução das penas, bem como a atualização delas e, por conseguinte, ausência de laxismo ou de leniência da lei penal brasileira.

O trabalho com o tráfico de drogas pode fazer que o criminoso acredite que é um empresário como qualquer outro?
Pode sim comportar-se como se fosse empresário. É um “como se”. Trata-se, pois, de um comércio ilícito, de mercancia escusa. Assim sendo, é como se fosse “firma”, de mentira, inautêntica, já que não tem o respaldo dos requisitos que a classifiquem como aberta, de capital fechado ou então pública. Existe, perniciosamente, de fato e não de direito, como se “empresa” fosse. Daí o modo de se conduzir sempre à marginalidade, pois a motivação é a satisfação plena do desejo lucrativo seja como for, mesmo que isso envolva, nos casos mais radicais, tortura, sequestro, assassinato. Há no caso, na subcultura do crime, uma identificação como “empresário”, com um arremedo de empresário, sem limite, sem barreira, sem fronteira, como tudo no mundo psicopático. E isso, do ponto de vista fenomenológico, não é explicável e, sim, compreensível psicologicamente, claro que inaceitável. Haja vista, Fernandinho Beira-Mar que mesmo preso em cadeias de “segurança máxima”, desembolsa, no total, coisa de um milhão de reais, em compra de maconha e cocaína do Paraguai, e embolsa, tranquilamente, sem ônus previstos em lei, outros dois milhões e meio de reais, mensalmente. Que ou quantos empresários, em nossos dias, embolsam todos os meses, seguramente, dois milhões e meio de reais? Como tal não conta com respaldo jurídico, trabalhista e de receita empresarial que a lei prevê e disciplina. Por isso mesmo, os negócios soem ser, no caso de Beira-Mar, a “pulso-de-ferro”: ninguém ousa trapacear. É uma personalidade, no seu modo de agir, no seu caráter, que é a expressão social e volitiva da pessoa, proativa à sua maneira, incisiva, inflexível, implacável. Em síntese, vê-se que um grande traficante cerca-se de cuidados tais por saber que não é um “empresário” como outro qualquer, justamente por perpetrar e para perpetuar seus negócios de natureza malsã. Entende e se determina de acordo com esse entendimento, qual seja, o do fato ilícito, quando na verdade, do ponto de vista comportamental e moral, há exigibilidade de conduta diversa. Tem sua libertas intellectuslibertas judicii de acordo com sua libertas propositilibertas consilii. Sente-se “empresário” no âmbito lucrativo, apesar de convicto da ilicitude. Já um verdadeiro empresário não age, obviamente, como um grande traficante em relação aos cuidados referidos, pois disso não necessita, uma vez que tem a estrutura e o respaldo que a lei prevê e disciplina. Assemelha, sim, quanto à obtenção de lucro, que é fato-objeto de toda empresa, mas distancia no modo de consegui-lo. Um grande traficante comporta-se então “como se” e, por isso mesmo, cerca-se de cuidados.

O senhor acredita que atuação das escolas, das famílias e até mesmo de movimentos religiosos é importante para coibir a entrada de jovens para a criminalidade?
Sim, isso faz pleno sentido. Por isso mesmo, a sociedade há de ter participação no enfrentamento ao tráfico, por meio, por exemplo, das escolas, das próprias famílias e do importante e indispensável substrato religioso. O que temos ganhado em comodidade externa, havemos, em contrapartida, perdido no aprimoramento anímico, espiritual. A meta da escola é o preparo do aluno para viver e conviver neste mundo em que é gritante a falta de humanidade e do binômio ético-moral. É a educação que deve mostrar ao jovem que a Moral não é um código de proibições e, sim, uma doutrina para tornar os homens melhores. No âmbito culturalista, deve colocar o jovem em contato com os grandes espíritos da humanidade, com as pessoas veneráveis de sua comunidade, que personificam os valores substanciais da existência, para com eles identificar-se e introjetar valores autênticos, ou seja, incorporá-los no seu âmago. Os instrumentos de educação de massa como cinema, rádio, jornal, teatro e televisão só oferecem ao jovem ou modelos inautênticos de existência ou padrões caricaturescos que transformam os mais puros valores exigidos pela juventude em simples objeto de consumo. Diante do trinômio “escola-família-religião”, dentro de uma visão culturalista para a interpretação desse gravíssimo fenômeno social das drogas, é preciso considerar a psicologia do jovem; a circunstância do mundo atual; a educação para que não descuide da formação da personalidade do jovem; os modos inadequados de o jovem procurar resolver seus problemas e conflitos; a estrutura familiar como “célula-máter” da sociedade, essa casa grande da família enorme; atenção à política de saúde pública com participação efetiva do Estado, que tem deixado muito a desejar; o substrato religioso, pois a verdadeira religião orienta, edifica, transcende.


Fonte:PRGO

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