domingo, 25 de agosto de 2013

Duas décadas depois da Chacina de Vigário Geral, apenas um dos 52 acusados está preso

Em 29 de agosto de 1993, 21 inocentes foram assassinados por policiais militares

RIO - Na sala da casa, a pequena Núbia, de apenas 10 anos, tremia. Não havia muito o que fazer. Sob o lençol que usava para dormir, abraçou os quatro primos, um deles de apenas 2 meses, fechou os olhos e passou a ouvir os estampidos dos tiros que tiraram a vida de oito integrantes de sua família. Terminada a sessão de horror, ela acompanhou uma interminável discussão dos algozes: matar ou não as crianças? A cena compõe um dos mais trágicos casos de violência no Rio. A chamada Chacina de Vigário Geral, na qual 21 inocentes foram assassinados por policiais militares, na noite de 29 de agosto de 1993, completa 20 anos na quinta-feira sob a sombra da impunidade.

Dos 52 acusados pelo crime, apenas sete foram condenados. Desses, três conseguiram ser absolvidos em um segundo julgamento; um quarto, que estava foragido, foi morto em 2007. Somente três continuaram detidos. Mas um deles teve a pena extinta no ano passado, outro passou para a condicional e o último, que permanece detido, Sirlei Alves Teixeira, só está atrás das grades por conta de outros crimes que cometeu quando estava foragido da Justiça.
— Assim que os policiais entraram em casa, um deles apontou um fuzil para a minha cabeça e mandou que eu me cobrisse com o lençol e olhasse as outras crianças. Tive muito, muito medo. Depois um dos policiais mandou a gente sair pela porta dos fundos. Vi a minha mãe morta, meus tios e meus avós. Até hoje sofremos muito. Essa é uma lembrança que carrego comigo — conta, emocionada, Núbia Silva dos Santos, hoje com 30 anos.
Vera Lúcia Silva dos Santos, de 50 anos, estava em casa na noite da chacina. Tinha acabado de assistir a um filme na TV e dormia no sofá da sala, quando um vizinho chegou com as cinco crianças, entre elas Núbia. Todas choravam muito. Os policiais, todos encapuzados, entraram na casa dos pais de Vera em busca de traficantes que no dia anterior tinham matado quatro PMs. A casa havia sido comprada de um ex-morador, pai de um traficante de Vigário Geral.
— Quando vi os meus sobrinhos, percebi que algo tinha acontecido. Logo depois de deixar as crianças, esse meu vizinho retornou e me deu a notícia. Meus pais e irmãos estavam todos mortos. Perdi toda a minha família. Essa é uma dor que nunca vai ser curada e que não desejo para ninguém — lembra Vera, que se mudou de Vigário Geral dias depois.
O processo da Chacina de Vigário deixou lacunas. Cinco acusados sequer foram julgados porque morreram antes de ir a júri. Dois permanecem foragidos e nunca foram a julgamento: Jorge Evandro Santos de Souza e Leandro Marques da Costa, conhecido como Bebezão. Os demais foram absolvidos em 1998 e 2003.
A advogada das vítimas Cristina Leonardo disse que a Chacina de Vigário não teve as punições esperadas, mas atribui o problema a erros durante a investigação. Para ela, essas falhas ocorrem até hoje, quando se trata de crimes envolvendo policiais.
— Houve falhas no processo, como ainda acontece hoje, quando se trata de crimes cometidos por agentes do Estado. As investigações são corporativistas, já que é polícia investigando polícia. A perícia foi falha. Os projéteis que serviriam de prova fundamental no processo foram encontrados, por acaso, três anos após a chacina, durante a exumação de umas das vítimas.
Colunista do GLOBO e autor do livro “Cidade partida”, no qual retrata a rotina de violência vivida por moradores de Vigário Geral, o jornalista Zuenir Ventura tem avaliação parecida.
— Tanto a chacina da Candelária quanto a de Vigário Geral, ocorridas com a diferença de um mês, em 1993, representam um triste marco na violência dos anos 90. Os corpos das oito crianças enrolados em cobertor barato na porta da igreja e os 21 caixões estirados no chão da favela foram imagens que correram o mundo como anticartões-postais do Rio. Os episódios revelaram uma mazela da qual a polícia não se livrou até hoje, a sua banda podre assassina.
Um dos promotores do caso, Marcus André Chutt conta que a principal prova contra os PMs era o depoimento de um informante da polícia. Mas essa testemunha apresentou versões contraditórias, o que dificultou a ação da promotoria. Fitas entregues por advogados de alguns réus, no entanto, ajudaram a elucidar o grau de participação de cada um. Chutt levou as fitas para um perito em Campinas, que comprovou a autenticidade do material:
— A partir das fitas, começamos a derrubar os álibis apresentados pelos envolvidos. Foi uma prova material importante e que ajudou a levar às condenações.
‘A sensação de que não houve justiça’
Outro promotor que atuou no processo até 1997, o hoje desembargador José Muiños Piñeiro Filho, afirma que, formalmente, não houve impunidade, porque a maioria dos acusados foi a julgamento. Mas Piñeiro admite que o processo deixou a sensação de impunidade. As condenações foram muito abaixo do que se esperava, e as penas, posteriormente, acabaram reduzidas por medidas que estão amparadas pela lei:
— Quando vemos o número de condenados, ficamos com a sensação de que não houve justiça. Queria ter condenado mais. Lamento o fato de aqueles que foram punidos já estarem em liberdade, e me frustra também as penas terem sido reduzidas. Tudo isso passa uma sensação de impunidade, que associo ao tipo de legislação penal que temos.
Piñeiro conta que o estado reconheceu a sua responsabilidade moral no caso. Em 2000, ele foi designado a defender o país na Organização dos Estados Americanos (OEA). Segundo Piñeiro, a comissão aceitou o argumento de que os responsáveis estavam indo a júri, mas faltava a reparação na área cível. Foi aí que, por sugestão do MP, o governo do Rio decidiu aprovar o pagamento de pensão às famílias.
Memória
Uma Vingança covarde
Uma grande comoção tomou conta do país em agosto de 1993. Vinte e uma pessoas foram assassinadas no episódio que ficou conhecido como a Chacina de Vigário Geral. No dia seguinte ao crime, a foto dos corpos enfileirados nas ruas da favela da Zona Norte, uma das mais violentas da cidade, estampou as páginas dos principais jornais.
Os moradores foram executados a tiros por homens encapuzados que invadiram a comunidade. A ação foi uma represália ao assassinato, na véspera, de quatro policiais militares por traficantes locais. Oito evangélicos de uma mesma família foram vítimas dessa vingança dos policiais. Vera Lúcia da Silva, que perdeu os pais e irmãos, se tornou, mais tarde, militante social.
As investigações se voltaram para um grupo de extermínio, formado por PMs, que se autodenominava Cavalos Corredores. Ao todo, 52 PMs foram acusados na Justiça de ter executado os moradores de Vigário Geral e de ser integrantes dos Cavalos Corredores. A suspeita era que muitos outros policiais teriam participado, mas, na época, não se conseguiu reunir provas suficientes.
Sobreviventes da noite de terror passaram a ser procurados para testemunhar sobre o que tinham visto. O caso destacou personagens como a advogada Cristina Leonardo, que defendeu as famílias das vítimas, e o sociólogo Caio Ferraz, morador da favela, que depois da tragédia organizou um movimento de luta por justiça e fundou a ONG Casa da Paz, no imóvel onde moravam os evangélicos assassinados. Mais tarde, ameaçado, Caio obteve asilo nos EUA, onde vive até hoje. O Grupo AfroReggae também ganhou projeção ao participar de um show para lembrar as vítimas da chacina. Foi em Vigário Geral que a ONG montou suas primeiras oficinas.
Outra importante figura do caso foi o coronel Valmir Brum, então corregedor da Polícia Militar, que assumiu a tarefa de investigar a chacina e identificar, na tropa da PM, os assassinos. O coronel Emir Larangeira era o comandante do 9º BPM (Rocha Miranda), onde eram lotados os policiais do Cavalos Corredores. O hoje desembargador José Muiños Piñeiro Filho era então promotor de Justiça e sustentou a acusação no tribunal. O procurador-geral de Justiça era Antônio Carlos Biscaia.
Famílias de vítimas convivem com vazio de sonhos desfeitos
Marido de Iracilda tinha ido ao bar comprar cigarro quando foi morto
Iracilda Toledo Siqueira, de 56 anos, tinha desenvolvido um sistema simples para informar ao seu cunhado quando algo de muito ruim tivesse acontecido. Toda vez que algo não andasse bem, quem vivia no primeiro andar da casa deveria dar três toques no piso; quem vivia embaixo, deveria bater no teto. Na noite do dia 29 de agosto, quando o grupo de policiais militares começou a matar inocentes em Vigário Geral, o sistema caseiro de informação funcionou.
Assustada com as três batidas, Iracilda desceu as escadas correndo para saber o que havia acontecido. Pensava se tratar de algum problema de saúde do seu sogro. Foi muito pior. Ali ela ficou sabendo que muitos moradores tinham sido mortos, e que a comunidade estava banhada em sangue. Iracilda aguardava o marido Alberto de Souza, de 40 anos, retornar. Ele tinha saído para comprar cigarro num bar e comemorar a vitória da seleção brasileira. Foi nesse mesmo bar que sete pessoas foram assassinadas pelos policiais.
Os policiais chegaram encapuzados ao local, pediram a identidade das pessoas. Como não encontraram traficantes, ouviram do dono do bar Joacir Medeiros, de 69 anos, que deveriam prender bandidos, e não trabalhadores. Foi a senha para um dos policiais atirar na cabeça do comerciante. Outro jogou uma bomba dentro do bar.
— Aquele foi o dia em que eu tive todos os meus sonhos desfeitos. O meu marido tinha ido comprar um cigarro no bar. Aqueles que eram para dar segurança (policiais), acabaram tirando a vida dele. O rosto do meu marido estava muito desfigurado, porque a bomba que jogaram explodiu muito perto dele — conta Iracilda.
Com 80 anos, Odenir Alves tem até hoje uma cópia do diploma de formatura do primeiro grau do filho Cléber Alves, de 23 anos. Ele foi morto pelos policiais quando chegava à sua casa, em Vigário Geral.
— Deram um tiro no peito e outro na cabeça do meu filho. Era um garoto bom, trabalhador, mas veja o que os policiais fizeram.
Após o crime, Odenir e a família de mais cinco filhos deixaram Vigário Geral, mas até hoje esperam uma indenização por parte do Estado.
Um mês antes, outra chacina
Na madrugada de 23 de julho de 1993, dois carros pararam em frente à Igreja da Candelária, no Centro do Rio, e seus ocupantes atiraram em direção a pessoas que dormiam sob uma marquise. Seis menores e dois adultos morreram. Atingido por quatro tiros, o lavador de carros Wagner dos Santos sobreviveu e se tornou testemunha-chave do processo. O motivo do crime teria sido o apedrejamento de um carro da polícia por menores, no dia anterior. Ameaçado, Wagner mora hoje no exterior.
A chacina da Candelária, como o caso ficou conhecido, ganhou repercussão internacional. A chacina levou à condenação de três policiais militares, mas, como O GLOBO revelou em julho deste ano, o mentor do episódio, o soldado Marcus Vinícius Emmanuel Borges, de 46 anos, continua foragido. Os outros dois PMs tiveram as penas extintas e já estão em liberdade.

O globo

Um comentário:

  1. A advogada Cristina Leonardo só esqueceu de falar que foi ela acusada em plenário de ter jogado os balins (munição) no ato da exumação; foi acusada em plenário e versão aceita pelo júri.

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