domingo, 25 de maio de 2014

Processos midiáticos levam casos individuais ao esquecimento

Os últimos dias foram ricos em debates, motivados por duas decisões judiciais: a soltura e prisão dos envolvidos na operação lava jato e a decisão do juiz federal da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, a respeito de tema religioso. Discussões apaixonadas, entrevistas na televisão, análises de temas constitucionais e  mensagens indignadas ocuparam a mídia.
Registra-se cada vez mais a preocupação com teses, principalmente quando alcançam repercussão na mídia. Por outro lado, aumenta o descaso pela solução dos casos concretos. Não se trata de uma conspiração por pessoas mal intencionadas. Trata-se, simplesmente, do prazer crescente pela discussão teórica, pela tese, pela exibição de cultura. Afinal, quanto mais rebuscado e complexo o raciocínio, mais culto aparentará ser o autor e, segundo seu desejo, mais admirado. Os que leem ou assistem, mesmo sem nada entender, concordarão, movimentando a cabeça.
Não se trata de algo exclusivo dos doutrinadores. Faz parte também da vida forense. Um recurso padronizado do Ibama, envolvendo a guarda de um passarinho por uma solitária viúva, pode ter dezenas de folhas, menção a tratados, doutrina, dados estatísticos, fotos e simplesmente nada sobre o caso concreto. O Ministério Público, para afirmar não ter interesse em um Mandado de Segurança, pode juntar parecer com dezenas de folhas, possivelmente maior do que se falasse sobre o mérito. Juízes proferem decisões genéricas, com muita jurisprudência, sem enfrentar o que realmente se discute no caso concreto.
Audiências públicas são vistas como um grande avanço social. Abre-se espaço para muitos falarem, supondo-se que assim a decisão será mais democrática. Alguém já avaliou o resultado concreto desta prática? No Supremo Tribunal Federal cada audiência pública pode significar atraso de mais alguns anos a antigos processos. Não apenas nas ações individuais, mas também nos importantes processos em que se suscita repercussão geral e que impedem o julgamento nos tribunais de segunda instância.
Pouco a pouco, os dramas exteriorizados nas milhares de ações existentes no sistema judiciário vêm se  transferindo para discussão de teses. Quanto mais complexas, melhor. E do mais jovem defensor público ao magistrado da mais alta Corte, todos embrenham-se em discussões acadêmicas, crendo, candidamente, que estão salvando a pátria.
Será assim porque a realidade é menos glamurosa e muito mais difícil? Ou será por esse traço de caráter que trazemos todos no nosso íntimo, em menor ou maior grau, chamado vaidade? O que é mais charmoso, estudar o conflito de princípios constitucionais à luz do Direito alemão ou o papel do Direito diante da situação caótica de nossos presídios?
O sofrimento, a decepção, a frustração e descrédito com a ação do Estado, estão presentes silenciosamente em milhares de ações judiciais individuais que tramitam na Justiça brasileira. Anônimos silenciosos revoltam-se em círculos privados. Impotentes, veem seus processos arrastar-se por quatro instâncias durante 10 ou 15 anos.
Vejamos um exemplo. Um só exemplo a simbolizar infinitos casos que não chamam a atenção da mídia, não são polêmicos, não suscitam teses apaixonadas, nem atingem as minorias. Atingem apenas uma pessoa, física ou jurídica.
Na comarca de Joinville, a mais rica do progressista estado de Santa Catarina, onze réus respondem na 1ª Vara Criminal a Ação Penal por crime de homicídio qualificado. A vítima está identificada por A.C.Q. e o crime é de 2006. O  juiz substituto, aos 23 de abril 2014, despachou (veja o link para o processo):
“Vistos para despacho. Tendo em vista que a Magistrada Titular desta Unidade Jurisdicional está em licença saúde, bem como em razão deste Magistrado ter sido convocado pela Academia Judicial para participar de aulas de pós-gradução referente ao processo de vitaliciamento, CANCELO a Sessão do Tribunal do Júri designada para o dia 24/04/2014.” 
O despacho de adiamento merece análise sob focos diversos. Vejamos.
O primeiro deles é a passagem do tempo. Se o homicídio qualificado  é de 2006 e estamos em 2014, oito anos já se passaram. Suponha-se que os acusados sejam julgados em julho. Apelarão da sentença ao TJ, depois recorrerão ao STJ e ao STF, sempre com embargos de declaração,  e com isto garantirão, pelo menos, mais oito anos. Então, se condenados forem, depois da manifestação da última instância, só daí a sentença será executada, porque este é o entendimento do STF. A família de A.C.Q. verá, em 2022,  condenados por homicídios praticados em 2006 não serem localizados ou, se vierem a ser presos, idosos e talvez doentes, conseguirem benefícios que os livrem do cárcere. Portanto, se tudo der certo, nada deu certo.
O segundo ponto da análise diz respeito ao adiamento para frequentar um curso de pós-graduação, requisito para o vitaliciamento. Estudar é bom, juízes devem estudar sempre. Perfeito. Se não estudarem, não são vitaliciados. Ótimo. Mas, entre um júri por fato de oito anos atrás, que deve ter exigido dezenas de atos como intimações de partes, testemunhas, convocação de jurados, preparação do salão do Tribunal do Júri, tudo isto, e uma aula, qual o mais relevante?
Dificilmente alguém diria que seria aquela aula, mesmo que nela se discutisse o que pensa um renomado alemão ou um Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas suponha-se que a preocupação com a formação teórica seja tamanha que todos, à unanimidade, concluíssem:  não se pode faltar à aula e quem faltar não será vitaliciado, perderá o cargo. Se isto acontecesse, seria difícil encontrar outro juiz que presidisse o júri? O adiamento só foi considerado um dia antes da aula em Florianópolis. Não deveria ter sido decidido antes? A presidência do TJ não tem o controle das designações? A aula não pode ser por vídeo-conferência? Por Skype? Gravada, para ser assistida depois?
Terceiro foco, a família de A.C.Q. Não se sabe, do exame do site, se A.C.Q. era homem ou mulher, jovem ou idoso, se tinha ou não família. Mas, fosse o que fosse, não veio ao mundo do nada e presume-se que tinha familiares. O que eles acham do sistema de Justiça brasileiro? Alguém espera que eles tenham confiança nas instituições?
Quarto aspecto, a existência do Tribunal do Júri. Esta instituição, prestigiada nos Estados Unidos por ser considerada representativa da democracia, não é adotada na maioria dos países latino-americanos (como no Uruguai e Panamá). No Brasil, cada vez mais se revela problemática. Processos demorados, adiamentos, advogados que abandonam o tribunal em pleno julgamento, medo dos jurados ao terem que julgar pessoas perigosas, ofensas em Plenário com direito a representações e queixas-crime. Tudo isto sem falar na falta de promotores em comarcas do interior de alguns estados. Em Pernambuco este problema é grave. Na comarca de Jaboatão dos Guararapes, onde simplesmente não se realizavam júris, o CNJ, em 2011, atuou com firmeza e a situação melhorou. Porém, mesmo assim, em 4 de setembro de 2012 um julgamento pelo Tribunal do Júri foiadiado pela ausência do promotor.
De tudo o que foi dito, a conclusão a que se chega é estamos caminhando para um sistema que opta pelas discussões de teses, privilegiando-se aquelas que alcançam boa divulgação na mídia, e despreza os casos concretos. Os processos  do dia a dia, estes ficam perdidos em uma avalanche de ações de um sistema que leva tudo ao Poder Judiciário, tornando-o inviável. Queremos mesmo colocar-nos entre os países mais desenvolvidos do mundo?

 é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2014, 08:01h

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