1. Consequências práticas – Da Justiça da Toga Preta para a Justiça da Bata Branca
A partir do voto do Min. Marco Aurélio e dos que o acompanharam podemos extrair o seguinte: tornou sem sentido qualquer pedido de aborto anencefálico perante os juízes. Não há que se falar em autorização judicial. Aborto anencefálico não é crime, de acordo com a decisão do STF. Ninguém pode ser processado por isso. Fato formalmente atípico. Inquérito policial instaurado para apurar esse “aborto” deve ser arquivado (desde presentes todos os requisitos legais). Ação penal em andamento: deve ser trancada imediatamente (se presentes os requisitos da anencefalia). Se alguém está cumprindo execução penal: cessa imediatamente a execução. Não cabe nenhuma medida coercitiva com base nesse fato. A interpretação conforme a Constituição, do STF, equivale a uma “abolitio criminis”, porém, com efeito mais amplo, porque aqui não cabe sequer indenização civil.
Da Justiça da Toga Preta passou-se para a Justiça da Bata Branca: não há mais autorização judicial. Os médicos agora é que decidem fazer ou não fazer o aborto. Presentes seus requisitos (prova da anencefalia e da inviabilidade da vida), podem fazer esse aborto legitimamente. Devem ser extremamente formalistas. Devem se documentar, precisamente porque não necessitam de autorização judicial.
Os órgãos do feto anencefálico não devem ser objeto de doação, em razão das malformações orgânicas. Tanto que seu crescimento é sempre menor.
Para aprofundar no tema:
2. Que se entende por anencefalia?
Anencefalia significa má-formação (total ou parcial) do cérebro ou da calota craniana. De cada 10.000 nascimentos no Brasil, pelo menos 2 contam com anencefalia. A ciência médica afirma que, em se tratando de um verdadeiro caso de anencefalia, a vida do feto resulta totalmente inviabilizada. Trata-se de um morto cerebral. O coração bate, mas o cérebro está morto. Não desfruta de nenhuma função do sistema nervoso central. A morte é inexorável (de acordo com a ciência médica). Não há que se falar em delito, portanto, no caso de aborto anencefálico. Por quê? Porque não se trata de uma morte arbitrária (ou seja: não se trata de um resultado jurídico desarrazoado ou intolerável). Daí a conclusão de que esse fato é materialmente atípico.
O pressuposto cardeal desse aborto centra-se, evidentemente, na constatação da anencefalia, que deve (deveria) ser confirmada por uma junta médica ou, no mínimo, por dois médicos (de modo indiscutível). Se o legislador viesse a cuidar desse tema, naturalmente faria previsão dessa exigência. Não se pode conceber um aborto sem a verificação certa e indiscutível da inviabilidade vital do feto. Sublinhe-se que, na atualidade, a diagnóstico é 100% seguro, consoante opinião de H. Petterson (da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal – Folha de S. Paulo de 29.08.08, p. C5).
Sem certeza científica, claro que não se deve admitir o aborto citado. Aliás, essa foi a causa da não disciplina do assunto no Código Penal de 194. Mas havendo certeza científica, não há dúvida que convicções ou crenças religiosas não constituem razões suficientes para se negar a possibilidade desse excepcional aborto. O feto anencéfalo não tem cérebro devidamente formado. O diagnóstico correto permite concluir pela letalidade.
Deve ser exigida a constatação médica fidedigna de duas coisas: feto anencefálico e inviabilidade da vida. A morte cerebral leva o feto a ser considerado natimorto cerebral. O batimento cardíaco não exclui a morte cerebral. Nessas circunstâncias justifica-se o abortamento, isto é, nessas circunstâncias a morte não é desarrazoada (arbitrária). Não se pode, destarte, falar em violação ao art. 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
No caso Marcela (que sobreviveu por um ano e oito meses) chegou-se à conclusão de que não se tratava de uma verdadeira anencefalia (nesse sentido: Heverton Petterson, Thomaz Gollop, Jorge Andalaft Neto etc. – Folha de S. Paulo de 29.08.08, p. C5; O Estado de S. Paulo de 26.08.08, p. A18). Logo, o caso Marcela não pode ser invocado como um “milagre divino” que falaria “por si só” contra o aborto anencefálico. A merocrania ou meroencefalia (caso Marcela) não se confunde com a anencefalia. Houve equívoco no diagnóstico. Não se tratava tecnicamente de feto anencéfalo. A radiografia demonstrou isso de forma inequívoca (consoante depoimento médico nas audiências públicas realizadas no STF).
3. Direito e religião
Não se pode confundir Direito com religião. Direito é Direito. Religião é religião (bem sublinhou o Iluminismo). Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). No Estado democrático pluralista, temos que respeitar todas as religiões e crenças. A tolerância é virtude extraordinária. Pedra angular da boa convivência. Mas a religião não pode contaminar o Direito, no momento das sentenças. As crenças não podem ditar regras derrogadoras da ciência. Do Renascimento até o Iluminismo, de Erasmo a Rousseau, consolidou-se (entre os séculos XVII e XIX) a absoluta separação das instituições do Estado frente às tradições religiosas. O Estado tornou-se laico (ou secular). A Justiça e o Direito, desse modo, também são seculares (laicos). O processo de secularização do direito deve se consumar definitivamente.
Um pouco mais de um terço dos pedidos de aborto anencefálico (de 2001 a 2006) foram negados e a fundamentação foi, em regra, religiosa (O Estado de S. Paulo de 01.09.08, p. A16). Em pleno terceiro milênio, porém, não nos parece correto conceber que um juiz (que é “juiz de direito”) possa ditar sentenças “segundo a dogmática cristã”, “de acordo com suas convicções religiosas” etc. No Estado republicano laico o juiz não pode confundir direito com religião. Mas tem obrigação de respeitar todas elas.
Nenhum juiz ou jurista está autorizado a repristinar o decreto do Imperador Constantino, do século IV, que impôs o cristianismo como religião do Estado. Alma é alma, corpo é corpo. Para a religião cristã a alma deve comandar o corpo; a Igreja deve dominar a alma e o corpo. Impõe-se desfazer essa confusão (e tradição). A separação do Estado frente à Igreja não prega o ateísmo (embora as pessoas tenham o direito de serem ateus ou agnósticos). Cada um é livre para professar sua religião e ter suas crenças (ou não acreditar em absolutamente nada). Só não se pode conceber, em pleno século XXI, qualquer tipo de confusão entre religião e Direito.
Daí a imperiosa conclusão de que o aborto anencefálico, quando se trata de uma verdadeira anencefalia, não conflita com as normas jurídicas dos arts. 124 e ss. do CP. Não se trata de um fato antinormativo (do ponto de vista material).
De 2001 a 2006 foram protocolados 46 pedidos de aborto anencefálico no Brasil: 54% deferidos, contra 35% indeferidos (alguns casos ficaram prejudicados) (O Estado de S. Paulo de 01.09.08, p. A16). Essa divergência jurisprudencial, por si só, já impõe uma tomada de posição pelo STF, o único capaz de nos trazer, no tema, uma certa segurança jurídica.
O Brasil, de qualquer modo, está sendo um dos últimos países (dos economicamente relevantes) que irá reconhecer a possibilidade de aborto anencefálico, que é autorizado nos países da América do Norte, Europa e parte da Ásia. Também na Argentina não há impedimento. A proibição perdura nos países muçulmanos, parte da África e da América Latina (diz relatório da OMS: Organização Mundial da Saúde).
O não reconhecimento do aborto anencefálico é um atraso civilizatório incomensurável, que se deve à sobreposição das tradições sobre a ciência, das crenças sobre a dignidade humana. Temos que recuperar as Luzes do século XVIII. A OMS reconhece a anencefalia (verdadeira) como doença incompatível com a vida. Conclusão: o aborto anencefálico não é uma eutanásia pré-natal arbitrária, não ofenda o princípio da dignidade humana (do feto). Ofensa à dignidade (da gestante) existe quando ele não é permitido.
4. Dignidade da mulher
O ser humano não pode ser utilizado como meio. Ele é um fim em si mesmo (Kant). A mulher não pode ser concebida como meio para a realização de fins outros, sobretudo sobrenaturais. Mas se, por sua crença, ela opta por não fazer o aborto, temos que respeitar. A solidariedade não pode fundamentar o não abortamento. Acima dela está a dignidade da mulher. Na época das audiências públicas uma delas disse: enquanto minhas amigas grávidas comprovam enchoval, eu tive que comprar um caixão para sepultar o feto!
O direito à vida dos anencéfalos não pode ser admitido. O anencéfalo é inviável. Não tem direito à vida, em razão da sua morte cerebral. O feto anencéfalo é organicamente vivo, mas juridicamente morto (por causa da morte cerebral).
5. Não há crime
Nosso Código Penal, no art. 128, prevê duas hipóteses de aborto permitido: o necessário, quando há risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I) e o humanitário ou sentimental (quando a gravidez resulta de estupro – CP, art. 128, II).
Para o Min. Marco Aurélio o aborto do feto anencefálico não é crime. Mas não é o caso de aplicar tais dispositivos. Simplesmente esse feto não está amparado pelo tipo penal. Está fora do Direito penal. Não se trata de feto com vida. Não existe vida. Logo, não existe o objeto material do delito (ser humano vivo). É caso de atipicidade formal. Os direitos humanos tutelam o indivíduo pessoa, o que existe, o que tem vida. Embrião é embrião, feto é feto e pessoa humana é pessoa humana. O direito penal protege a vida humana. Quando se fala em direitos da pessoa humana, isso significa direitos do indivíduo. No caso do anencéfalo não há indivíduo pessoa. Não há tutela penal nesse caso. A mãe já é pessoa. O feto anencéfalo é uma expectativa de pessoa. Feto natimorto não se equipara ao feto saudável.
Se o feto saudável está sujeito à ponderação frente aos direitos da mulher (caso do aborto humanitário), com mais razão pode-se afirmar isso em relação ao feto anencefálico (que é um natimorto cerebral). É inconstitucional a interpretação no sentido de que haveria crime no caso do aborto anencefálico.
Fonte:LFG
Nenhum comentário:
Postar um comentário