sábado, 21 de abril de 2012

Crimes Federais


Qual a dimensão a justiça criminal federal recebeu nos últimos anos e porque?
Na verdade, do ponto de vista legislativo, não houve um redimensionamento mais relevante da Justiça Criminal Federal, ressalvada a questão, problemática, do incidente de deslocamento de competência nas graves violações de direitos humanos, com a EC 45/04 (art. 109, §5º, CF).
O crescimento das causas penais federais se deve, de modo geral, às contingências do cotidiano da criminalidade econômica (sonegação de impostos federais, lavagem de dinheiro e capitais, crimes contra o sistema financeiro e respectivas organizações criminosas), e, também - e, talvez, sobretudo - ao incremento da atuação dos órgãos federais encarregados da persecução penal, notadamente o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, a Receita (Federal), e, de modo muito particular, a Controladoria Geral da União. E todo e qualquer crescimento da Justiça Criminal deve ser lamentado, ainda quando nos caiba reconhecê-lo e enfrentá-lo.
Ainda há muita confusão na hora de definir a competência? Quais os casos mais comuns?
Infelizmente, ainda existem muitos conflitos de competência no âmbito da jurisdição comum (Justiça Estadual e Justiça Federal). A ausência de uma legislação mais esclarecedora e uma permanente hesitação jurisprudencial de nossos Tribunais Superiores são as principais causas de tais pendengas.
E o prejuízo à Justiça é monumental, na medida em que a anulação de processos com fundamento em incompetência absoluta - certas ou erradas - favorecem o reconhecimento da prescrição de um número enorme de infrações penais. E, para piorar, tais anulações partem, de modo geral, dos Tribunais Superiores, a quem caberia, em tese, firmar entendimento mais consolidado sobre a competência jurisdicional. E não se pode atribuir tais mazelas às instâncias ordinárias, na medida em que aqueles Tribunais (Superiores) vem modificando sua jurisprudência sobre o tema continuadamente. Um exemplo claro, no âmbito do STF: a competência para o julgamento de conflito entre membros do Ministério Público Federal e Estadual, segundo entendimento então consolidado na Suprema Corte, caberia ao STJ. Recentemente, contudo, o Supremo reviu seu entendimento, produzindo nulidade em escala industrial, já que as ações ajuizadas com fundamento na anterior orientação foram e ainda serão atingidas.
Como está sendo na prática a aplicação da Delação Premiada na Justiça Criminal Federal?
Não dispomos de dados estatísticos no âmbito da Justiça dos Estados, mas sabemos que a Justiça Federal tem aplicado a delação premiada com bons resultados. Talvez, isso se deva às particularidades desta modalidade de "acordo judicial", sempre atingindo crimes com algum nível de organização. Na verdade, o principal alvo deste procedimento é exatamente a investigação de maior complexidade, em razão da estrutura organizada de algumas espécies de delitos.
Na modernidade, os órgãos da persecução precisam dispor de técnicas investigativas aptas a enfrentar um tipo de crime sofisticado, que amiúde se estrutura para obter lucros a custas de uma burocracia estatal ainda acomodada em uma visão quase glamourosa do crime (o crime apenas como um impulso pessoal do agente, descontextualizado com outras perspectivas, ou, também, como uma manifestação política contrária ao status quo).
O Supremo Tribunal Federal por duas vezes já considerou que o instituto é constitucional - portanto, adequado ao ordenamento brasileiro (HC 90.688), validando, inclusive o sigilo de informações sobre a pessoa responsável pela delação, quando imprescindível para o sucesso das investigações. Aquela Corte, obtemperou, no entanto - e corretamente - que a delação não teria a seriedade do compromisso testemunhal e, sim, a natureza de depoimento de informante (AP 470, STF), onde a credibilidade das informações deve ser cotejada com outras provas, como, rememore-se, também é no direito italiano, que tem notória experiência na aplicação da matéria.
A delação vem prevista em vários dispositivos legais, e, notadamente, na Lei 9.807/99, e, antes dela, na lei de crime contra o sistema financeiro (lei nº 7.492/86, art. 25, §2º), na lei de crime contra o sistema tributário (lei nº 8.137/90, art. 16, par. único), na lei de crimes hediondos (lei nº 8.072/90, art. 8º, par. único) e na lei de crime organizado (lei nº9.034, art. 6º). Ta fato demonstra que a implementação no sistema brasileiro foi gradual, antes que se chegasse à lei geral de proteção a testemunhas (lei nº 9.807/99, arts. 13-15).
Em resumo, a delação precisa ser entendida como uma excepcionalidade a ser justificada em cada caso concreto, segundo seja a complexidade da investigação, ou, (segundo) seja a necessidade para se chegar à pessoa da vítima e/ou aos proveitos do crime.
Mais.
Nada há que se questionar ao nível da ética do comportamento na delação. O universo ético não se compadece com regramentos normativos voltados para a satisfação de interesse pessoais, em detrimento de outros - no mesmo nível de necessidades -, e, sobretudo, quando expressivamente majoritários forem os interesses e direitos atingidos. É indefensável uma ética da criminalidade, ao menos enquanto tal (ética).
Qual seu posicionamento acerca da aplicabilidade prática do registro audiovisual da prova penal?
Sob quaisquer pontos de vista, os registros audiovisuais das audiências e de alguns atos processuais constituem modificação benéfica aos interesses da Justiça. Do mesmo modo, os processos eletrônicos.
O problema, em relação a estes últimos, é o meio de execução. Muitas vezes, o acesso ao documento eletrônico é demorado e termina por enfraquecer uma análise mais completa dos autos. Nada que o avanço tecnológico de nossos tempos não possa contornar.
Já em relação aos registros audovisuais, os entraves parecem ser meramente culturais.
Com efeito, muitos membros do Ministério Público que atuam junto aos Tribunais e os próprios órgãos julgadores a partir do segundo grau de jurisdição ainda não se acostumaram em ter que ouvir e assistir a gravação das audiências, bem como de assinalar o local exato em que se encontra uma prova colhida no processo. No modelo tradicional, de registro escrito, basta a referência ao número da página; agora, é preciso maior esforço para identificação do "ponto" de transcrição.
No entanto, são mudanças que vieram para ficar, e, com certeza, consolidarão sua utilidade e vantagens.
Como o Ministério Público Federal está atuando frente aos Cybercrimes?
Há várias questões envolvidas nos cybercrimes. Em primeiro lugar, a ausência de uma tipificação penal das mais recentes modalidades de crime cibernéticos contribui enormemente para o não enfrentamento mais eficaz  de tais comportamentos. Em matéria penal, as condutas proibidas devem constar expressamente na lei, não se abrindo ao intérprete campo para as aproximações linguísticas e vernaculares. Ou bem está descrita em tio penal a conduta ou ela não será objeto do Direito Penal.
O que vem sendo feito, nos limites do possível, é o enquadramento de várias lesões, patrimoniais e de outra natureza, aos velhos tipos de nossa legislação penal, como se dá, por exemplo, em relação ao estelionato (art. 171, CP), que pode perfeitamente ser cometido por meio da internet ou outra comunicação eletrônica.
Em relação à pedofilia, porém, há já algumas alternativas legislativas, tal como se encontra nas normas de proteção à criança e ao adolescente (Estatuto da Criança e do Adolescente), que permitem a punição de delitos dessa natureza, quando praticados por essa via.
Mas, há muito a ser necessariamente construído. Vivemos em um mundo de comunicação instantânea, de emoções on line e, enfim, de variados reality shows. Talvez tenhamos até que redefinir o exercício de alguns direitos fundamentais, como o da privacidade, exposta hoje, nem sempre voluntariamente, em níveis incontroláveis.
Quais divergências entre o MP e o juiz em relação às transações penais?
A transação penal é um instituto jurídico que se insere no âmbito de uma política criminal não condenatória, ou seja, que busca afastar-se da privação da liberdade. De outro modo: a transação penal seria uma alternativa à pena privativa da liberdade, abrindo espaço para processos de conciliação entre o suposto autor de um fato danoso e sua vítima, representada, em regra, pelo Ministério Público.
Tratando-se de uma iniciativa penal, isto é, de uma providência que depende da atuação daquele legitimado na lei, o juiz criminal, em princípio, não deveria opor entrave ao seu processamento, a não ser quando o objeto da transação for considerado ilegal ou não forem atendidos os requisitos previstos em lei.
No entanto, na prática, vem ocorrendo algumas divergências entre o autor da proposta da transação (o MP) e o juiz, sendo que alguns deles são de difícil solução.
Exemplo: o juiz pode divergir do membro do MP acerca da classificação (tipo penal aplicável) da infração apontada na proposta de transação, levando, em consequência, à paralisação da conciliação, dado que, não tendo o juiz iniciativa postulatória, ele não pode, nem oferecer a transação e muito menos obrigar o MP a atuar na conformidade de seu entendimento.
Nesses casos, será preciso alguma criatividade - mas, sobretudo, conhecimento do Direito! - para resolver o conflito, a começar pelo reconhecimento, entre os envolvidos, do papel de cada um no sistema jurídico penal. O que não s epode aceitar é a paralisação da instância, por dissenso entre dois de seus atores (Juiz e MP).
Há equívocos interpretativos dos Tribunais Superiores em relação ao princípio da insignificância na esfera federal?
Esse é um ponto sensível na jurisprudência de nossos tribunais, incluindo o Supremo Tribunal Federal.
O princípio da insignificância não pode ser manejado como uma varinha mágica, a depender da visão pessoal do intérprete acerca do significado da insignificância (redundância proposital, evidentemente!).
Por outro lado, não tem qualquer razão aqueles que defendem a impossibilidade de sua aplicação por suposta ausência de previsão legal.
Ora, a insignificância existe e deve existir em razão das limitações linguísticas de toda comunicação humana. Jamais será possível ao legislador descer a detalhes quanto ao objeto específico de sua regulação. Não se pode exigir, com efeito, que a Lei aponte quais seriam as coisas passíveis de furto, na medida em que não haveria espaço físico para o cumprimento de tal tarefa (lápis, borracha, grampo, agulha etc.). Por isso, ela se vale de elementos que devem ser apreciados em cada caso concreto. Daí, o recurso à palavra "coisa".
Mas, se assim é, é preciso também atentar para o fato de que algumas violações que frequentemente ocorrem em nosso cotidiano tem uma dimensão que transcende o objeto então atingido. Tal ocorre, por exemplo, em relação às condutas nos serviços públicos, que exigem um grau de moralidade - pela coisa pública - acima da média, em nível de respeito à Lei. Há jurisprudência do STF exatamente nesse sentido, afastando a insignificância.
Há, ainda, outra questão igualmente importante que diz respeito à reiteração de comportamentos com baixa lesividade, em si. A repetição dos fatos tendem a aumentar o seu proveito, de tal maneira que a insignificância de uma conduta pode não ser a mesma, se e quando considerado o total das ações. Nesse sentido, o STF também tem agido de modo correto, buscando apreciar, não só o fato, mas a sua dimensão, coletivamente considerada.
Mas, há equívocos, segundo nos parece, sobretudo em relação à matéria tributária, quando aquela Corte, valendo-se de uma política fiscal aparentemente equivocada - ainda que, do estrito ponto de visto econômico não o seja - por parte da Receita Federal, considera insignificante sonegações abaixo de R$10.000,00 (dez mil reais). A explicação seria no sentido de que, se o Fisco não ingressa em juízo para cobrar importância abaixo de tal valor, ele deveria ser considerado insignificante. Não é, evidentemente! O Fisco não cobra - em Juízo, esclareça-se! - por entender que as despesas judicias para a cobrança serão mais altas que a arrecadação e não por entender insignificante!
 Quando R$10.000,00 forem insignificantes, em qualquer nível que se esteja a discutir, já estaremos no mais alto patamar civilizatório que já se teve notícias!
Na prática como está sendo o incidente de deslocamento de competência nos casos que envolvem direitos humanos?
Há um caso emblemático na jurisprudência sobre o tema, envolvendo o homicídio do pernambucano Manuel Bezerra de Matos Neto, apreciado no Incidente de Deslocamento de Competência n. 2 - DF - 2009/0121262-6, 3ª. Seção, Relatora Ministra Laurita Vaz, jul. 19.11.2010, no qual se reconheceu a possibilidade de se deslocar a competência da Justiça Estadual para a Federal, fundado no requisito da incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.
Como se percebe, o citado requisito, da incapacidade das instâncias e autoridades locais, levanta uma questão da maior gravidade, que vem a ser a independência do Poder Judiciário estadual. Porque o Poder Judiciário Federal seria mais independente?
É possível que as autoridades policiais locais, a depender de cada caso concreto, estejam submetidas a maiores pressões, sobretudo quando houver, eventualmente, o envolvimento de pessoas de maior calibre no âmbito do poder político.
Nada obstante, mesmo nesse caso, pensamos injustificada a razão de deslocamento de instância. Outras providências seriam cabíveis e possíveis para a correção da investigação.
Mas, como quer que seja, o incidente vem se consolidando, ao menos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, responsável pelo seu julgamento, nos termos da Constituição da República, após a Emenda Constitucional n. 45/04.
Espera-se, porém, que não se corra o risco, no futuro, de novas anulações de processo fundadas exatamente na ausência dos requisitos para o deslocamento, questão a ser decidida, em última instância, pelo Supremo Tribunal Federal.
Melhor aceitar a competencia do Superior Tribunal de Justiça para decidir quando será legítimo o deslocamento que nos submeter a um controle tardio quanto ao acerto ou equívoco do incidente. Já há nulidades e desperdício de atividade jurisdicional suficientes - e excessivas! - para somarmos mais uma.
Muito se discute  na justiça criminal federal a questão das provas obtidas através de escutas, qual seu posicionamento sobre o assunto? O senhor concorda nas anulações de provas pelo  judiciário da forma que estão sendo proferidas?
Sim, há excesso e equívocos na anulação de processo penais no Brasil. Nem sempre se observa a regra fundamental em tema de nulidades - a do prejuízo às partes - e nem sempre se lida bem com o conceito de ilicitude no campo da prova.
Ato ilícito é o ato contrário ao Direito, segundo seja o juízo de valoração social do comportamento pelo Poder Legislativo.
É o mesmo Poder Legislativo quem estabele exceções à regra da ilicitude, aceitando determinadas justificativas para uma conduta inicialmente ilícita. Assim, aquele que age em legítima defesa ou em estado de necessidade não será penalmente (ou civilmente, no último caso, ressalvadas exceções) punido, ainda quando realize um comportamento proibido (matar alguém, por exemplo).
No campo da prova, a jurisprudência brasileira ainda não consolidou sua compreensão sobre a configuração do ilícito.
Uma gravação ambiental pode ser feita sem o conhecimento dos interlocutores sem que, necessariamente, se trate de prova ilícita. Bastaria que estivesse em curso, por exemplo, a prática de uma infração penal por parte de um contra o outro (interlocutor). Nesse caso, a ilicitude da conduta de quem pratica o crime afastaria a ilicitude daquele que produz a gravação, se esta se der, única e exclusivamente, em razão da visibilidade do fato criminoso. E afastaria por uma razão simples: aquele que pratica o crime não está no exercício de direitos; a prova contra ele produzida, por isso mesmo, não seria ilícita (ou contrária ao direito dele).
No que toca às escutas telefônicas, especificamente, o problema não é de igual monta, já que há lei específica regulando a matéria. No entanto, mesmo aí, já se discute a quantidade de vezes que seria possível prorrogar a escuta telefônica (a Lei fala apenas que poderá ser prorrogado o prazo de quinze dias).
Ora, ou bem se reconhece que seria possível apenas uma prorrogação ou bem se aceita a ausência de limitação legal. O que não nos parece possível é afirmar-se que determinado número de reiterações seria abusivo - e há mesmo abusos - sem qualquer delimitação precisa, afinal, o prazo de escuta não interessa apenas a quem é investigado. É preciso que os órgãos da persecução, incluindo os juízes que autorizam a interceptação, saibam quantas vezes ela poderá ser prorrogada! Essa não é uma questão a ser resolvida por escolha pessoal quanto ao significado do abuso!
Relembre-se que foi o STF quem aceitou a prorrogação das escutas, sem impor qualquer limite! Aquela Corte entendeu que a Lei não fixa prazo ou quantidade de renovações da medida. Assim, qualquer decisão que venha a impor limites às prorrogações deveria se pautar pela modulação de seus efeitos (ex nunc), a fim de evitar o imenso prejuízo a um sem número de processos criminais.

Fonte:Jornal Carta Forense

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