Um grande cartunista do início do século XX, Gustave Verbeek, ficou famoso por uma série de sessenta e quatro histórias, denominadas "The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo", publicadas no New York Herald de 11 de outubro de 1903 a 15 de janeiro de 1905. No estupendo trabalho artístico, além de cada imagem ser reversível individualmente, toda a história mudava quando o jornal era colocado de cabeça para baixo.
O que isso tem a ver com o Brasil ou com a possibilidade de internação compulsória de dependentes químicos?
Ao emergir do escuro lago do regime de exceção o futuro do Brasil se descortinava brilhante. A Constituição Cidadã, elaborada com a participação de toda a sociedade, vinha para garantir direitos há muito sufocados.
Movimento historicamente justificável por anos de repressão, mas nem por isso menos deletério, a chamada abertura democrática deu ensejo a uma euforia de desregramento e contestação que passou a entender toda e qualquer forma de controle social como ditatorial ou abusiva, como se democracia significasse anomia, liberdade total e irrestrita para absolutamente tudo.
Depois, golpe de misericórdia, veio o politicamente correto, que, paradoxalmente, embora com foco diverso, mais amplo e abrangente, nada mais fez do que repetir, de modo bastante eficaz, o controle ideológico exercido pelo regime militar. Quando não se pode ou não se deseja mudar a realidade, muda-se o léxico.
O resultado de vinte e quatro anos dessa forma de upside down, de inversão de valores, de regime democrático libertino, mas não libertário? Um país ineficiente, injusto, violento, corrupto e hipócrita.
De todas as mazelas que nasceram dessa visão distorcida de democracia e de direitos humanos, talvez a proliferação do tráfico de entorpecentes seja a pior. Cancro que se espalha incontrolável pela sociedade, consumindo a força de nossa juventude e com ela o futuro do país, está longe de receber dos poderes constituídos a atenção devida.
A "Cracolândia", onde centenas de seres humanos, homens e mulheres, adultos e crianças, se autodestroem às escâncaras, sem que as autoridades públicas apresentem outra solução que não a de desalojar dependentes e espalhar o problema para toda a cidade, é apenas a chaga simbólica da doença que já consome inexoravelmente o Brasil.
No auge da discussão surge a questão da possibilidade (ou não) da internação do dependente químico.
Parece evidente que a internação involuntária (ou mesmo a compulsória) não só é possível como absolutamente necessária. Talvez a única medida verdadeiramente séria que se poderia inicialmente adotar para tentar corrigir o triste quadro que hoje vivemos em relação aos dependentes químicos no país.
Dois pontos merecem análise: Em um primeiro momento saber se a dependência química é doença e, sendo enfermidade, se, e até que ponto, pode comprometer as faculdades cognitivas da pessoa. Em segundo lugar, indagar se o ordenamento jurídico, na hipótese, permite a internação involuntária ou compulsória do dependente.
Quanto ao primeiro ponto, ser a dependência química uma doença incapacitante, creio não haver dúvidas.
O DSM-IV, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) da Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA), define a dependência química como um "um distúrbio recorrente e crônico", cuja característica essencial é a "presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando que o indivíduo continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos relacionados a ela".
De fato, dependendo do grau de comprometimento, e da droga considerada, o quadro de abstinência pode incluir desde simples sensação de fadiga extrema até delírios psicóticos, coma e morte. O comprometimento mental, decorrente do uso prolongado, é claro, ficando o dependente literalmente incapaz de reagir ao vício, mesmo ciente de que sua vida esta sendo destruída.
Mais ainda, quando o dependente não mais se importa com a própria existência, também não se importa com a vida alheia, e tudo fará para conseguir o precioso fármaco, até vender o próprio corpo, roubar ou matar, se necessário. É a droga estimulando toda a sorte de criminalidade.
Nestas condições, é impossível falar em livre arbítrio, vontade própria ou autodeterminação e se nos parece extremamente desumano entender que o Estado deva garantir ao dependente o direito a autoaniquilação, que, em última análise, é a única coisa que a hipócrita e cômoda bandeira dos direitos humanos defende para a hipótese, ao advogar a tese que o dependente tem direito de escolha.
A possibilidade jurídica de internação também é clara.
A lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, em seu art. 6º, parágrafo único, considera três tipos de internação psiquiátrica: a voluntária, que se dá com o consentimento do usuário; a involuntária, que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e a compulsória, determinada pela Justiça.
Igualmente, o Regulamento do Sistema Único de Saúde (SUS), Portaria nº 2.048, de 3 de setembro de 2009, prevê quatro modalidades de internação psiquiátrica: involuntária (IPI),voluntária (IPV), voluntária que se torna involuntária (IPVI) e compulsória (IPC).
Como sistema de garantia e controle da forma involuntária de internação a legislação prevê a comunicação, em 72 (setenta e duas) horas, ao Ministério Público, a quem cabe a atribuição de zelar pelo paciente psiquiátrico, e a uma Comissão Revisora de Internações Psiquiátricas Involuntárias, de caráter multiprofissional, integrada por, no mínimo, um psiquiatra ou clínico geral com habilitação em Psiquiatria; um profissional de nível superior da área de saúde mental, não pertencentes ao corpo clínico do estabelecimento onde ocorrer à internação, representante do Ministério Público Estadual, representantes de associações de direitos humanos ou de usuários de serviços de saúde mental e familiares.
Parece indiscutível que o ordenamento jurídico não apenas reconhece situações onde a vontade do paciente não pode ser considerada, como autoriza expressamente a sua internação.
Além do perigo que representa para a própria sociedade, porque inimputável, não há nada mais triste e degradante que assistir a degeneração física e moral de um dependente químico.
Defender direitos humanos não é defender a inércia estatal, mas, acima de tudo, pugnar por um Poder Público atuante em prol da dignidade humana. Ao prosseguir nesse hipócrita, cômodo e tíbio caminho, importa perquirir o que acontecerá com a sociedade brasileira, destruída pela droga e pela corrupção?
Que fique outra pergunta: A quem interessa a inércia estatal?
De se lembrar a lição dos evangelhos: "Se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco?" (Lucas 23:31).
Fonte: Jornal Carta Forense
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