sábado, 1 de setembro de 2012

Debate quase cifrado no julgamento da AP 470


[Artigo publicado na coluna de Tereza Cruvinel no jornal Correio Braziliense na quarta-feira (29/8)]
Três ministros dos “mais antigos”, Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes, explicitaram ontem, com elegante sutileza, uma forte divergência doutrinária em relação aos três dos “mais novos” que votaram na sessão de segunda-feira: Rosa Weber, Luiz Fux e Cármem Lúcia. A divergência foi conceitual, ultrapassando o voto que os seis proferiram em relação ao chamado item 3, bastante semelhantes, salvo um peculato ou lavagem de dinheiro a menos aqui e ali.
O que foi explicitado pelos que votaram ontem, e com mais ênfase pelo ministro Celso de Mello, foi a diferença entre responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva. A primeira teoria, fundada na mais antiga tradição do direito democrático, sustenta a necessidade de prova para a condenação, cabendo ao acusador provar a acusação. Já a teoria da responsabilidade objetiva, que Celso de Mello associou aos Estados autoritários, afirmando que foi praticada no Brasil durante o Estado Novo, dispensa a prova, desde que as evidências e os danos decorrentes da ação e da omissão dos réus sejam suficientes para formar a convicção dos juízes. Para citar um teórico, vejamos o que escreve o professor Carlos Roberto Gonçalves: “Quando a culpa é presumida, (na responsabilidade subjetiva), inverte-se o ônus da prova. O autor da ação só precisa provar a ação ou a omissão, e o dano resultante da conduta do réu, porque sua culpa é presumida”.
O voto de Celso de Mello é uma aula sobre a questão, embora apenas uma vez, salvo engano, ele pronunciou, e com sentido crítico, a expressão “responsabilidade objetiva”. Tanto ele como Gilmar e Marco Aurélio, do alto de suas experiências, destacaram um procedimento relacionado com a diferença entre as duas correntes: o juiz deve basear sua decisão fundamentalmente nas provas colhidas em juízo, e nunca apenas em provas produzidas por inquérito parlamentar (CPI) ou policial. Marco Aurélio já havia enfatizado que “não compete ao réu demonstrar sua inocência, cabendo ao titular da ação, o Ministério Público, provar a acusação”. Vale ainda reproduzir outra fala de Celso de Mello: “A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação penal recai por inteiro sobre o Ministério Público. Essa imposição do ônus penal reflete uma expressiva garantia jurídica, que tutela e protege o próprio Estado, assegurando a liberdade que ele reconhece às pessoas. Por isso, os subsídios, ministrados pelas investigações policiais e pelos inquéritos parlamentares — sempre unilaterais e inquisitivos — não bastam, isoladamente, para justificar o ato de condenação penal”.
Mas por que teriam dito tudo isso se votaram basicamente como Cármem Lúcia, Rosa Weber e Fux? Segundo advogados — não os de defesa, mas os observadores do julgamento, que se manifestam com a compreensível reserva —, os três veteranos buscaram explicitar essas diferenças conceituais porque os outros três, nos votos de segunda-feira, revelaram-se claramente adeptos da teoria da responsabilidade objetiva, que o Supremo adota em relação às falhas do Estado, mas não, ainda, em relação aos indivíduos, protegidos por garantias constitucionais. Se todo o tribunal fosse adepto dela, o resultado do julgamento já estaria determinado. Não teriam os ministros que buscar prova alguma nos autos.
Ainda que essa diferença teórica não tenha surtido efeito digno de nota em relação ao veredito de ontem, para pelo menos dois observadores do meio jurídico, os ministros garantistas miravam ontem, com suas doutrinações, as próximas etapas do processo. Especialmente os itens para os quais a acusação não apresentou provas consistentes, como a acusação de formação de quadrilha, que teria José Dirceu como mentor e chefe.
A teoria da responsabilidade objetiva foi condenada por muitos dos advogados de defesa. Márcio Thomaz Bastos afirmou que ela contraria o espírito da Constituição, para a qual todos são inocentes até prova em contrário, chamando-a de “direito do inimigo”. Ela vem ganhando espaço no mundo: foi aplicada, por exemplo, aos prisioneiros de Guantánamo. Mas seria antigo esse “direito do inimigo”, tendo vigido na Roma antiga quando, sem verificação de culpa, o suposto lesado podia castigar com igual dano o suspeito. Mais tarde veio a Lei de Aquilia, impondo a necessidade de apuração de culpa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário