O grupo visa investigar os sistemas jurídico-penais contemporâneos a partir da análise crítica do direito penal e processual penal, verificando em seus fundamentos as diferentes formas de violação/proteção dos direitos da pessoa humana.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
....a prisão das mulheres....
Livro de Bruna Angotti analisa surgimento dos presídios femininos
A campanha “Estou presa, continuo mulher” (doação de roupas íntimas e absorventes a mulheres em situação de prisão) revelou o descaso do Estado com a saúde das detentas e descortinou os graves problemas causados pela enorme expansão do encarceramento feminino, em que se perpetua da criminalização da pobreza.
Com o enrijecimento das leis sobre entorpecentes, enfim, a questão deixou de ser periférica no sistema penitenciário, já que mulheres são parte expressiva do exército de funcionários da microtraficância.
Trata-se de uma ótima oportunidade para conhecer a monografia de Bruna Angotti: “Entre as Leis da Ciência, do Estado e de Deus (o surgimento dos presídios femininos no Brasil) Ed. IBCCrim”.
Não faltam boas referências acadêmicas à obra, que foi fruto de dissertação de mestrado aprovada na área de Antropologia Social da USP e ainda venceu o concurso de monografias do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Mas o texto é fluente e não cai no academicismo que impeça a leitura pelo leigo.
Acompanhado de uma profunda pesquisa histórica no interior do sistema penitenciário, Bruna demonstra como a pretendida reeducação, de fundo moralista, se antagonizava com as necessidades sociais –preparar a mulher para a vida doméstica no exato momento de uma expansão fabril e aumento da participação feminina no mercado de trabalho. E como a ausência de enfrentamento da vulnerabilidade vem contribuindo até hoje para frustrar a reinserção social.
O livro enfoca preferencialmente as décadas de 1930 e 40, quando do surgimento dos primeiros presídios femininos no país (Reformatório de Mulheres em Porto Alegre, 1937; Presídio Feminino em São Paulo, 1941; e Penitenciária do Distrito Federal, no Rio, em 1942), relatando o esforço dos penitenciaristas em produzir uma certa humanização nos cárceres, que acompanhasse amodernidade científica da época.
Esse é também o momento de criação do novo Código Penal, no qual se produz o encontro de duas tendências aparentemente contrapostas, como o positivismo naturalista de Ferri e Lombroso e o liberalismo da escola clássica.
Os penitenciaristas queriam cumprir as diretrizes da Constituição de 1824, que extirpou penas cruéis, e exigia “cadeias seguras, limpas e bem arejadas” e ao mesmo tempo ingressar na vanguarda do novo pensamento que vinha da Itália.
A humanização acabou por seguir no esteio desse pensamento positivista que entendia a necessidade absoluta de cárceres distintos, inclusive pelo perigo do contato com os homens, dada a perversa capacidade que a mulher tinha de influenciá-los ou torná-los revoltosos.
Ainda assim, a improvisação guiou a administração nos primeiros estabelecimentos –como o do presídio paulista, construído no espaço dedicado aos diretores da Penitenciária masculina.
A monografia nos delicia com passagens de Lombroso, paradigma da época para a compreensão da mulher delinquente, que se revelaram puras demonstrações de preconceito: “a criminosa é fraca em sentimentos maternais”, “seu amor por exercícios violentos e mesmo as roupas se assemelham aos homens”; “toda mulher é organicamente monogâmica e frígida”.
Inescondível o vínculo que para os positivistas ligava a “delinquência feminina” a atos de expressão sexual. Não à toa, entre as categorias que distinguiam a suposta “mulher honesta” da “criminosa habitual”, Lombroso situava a prostituta –um espécime de mulher “primitiva”.
O livro narra muitas contradições que se revelaram neste processo de dita humanização.
De um lado, ideias que vinham para excluir o sentido de vingança da pena, como o fim dos uniformes zebrados, dos números estampados nas roupas, e na identificação pela matrícula de sentenciados; de outro, a administração dos primeiros presídios inteiramente a cargo da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor D’Angers, ampliando as características de instituição total, como a uniformização rígida de roupas, penteados e condutas, de forma a anular por completo a identidade das presas.
De quebra, um rompimento profundo na nascente noção de estado laico, com a incorporação, na rotina de disciplina, de momentos de saudação a Deus e orações coletivas.
O livro tem, ainda, passagens ilustrativas que ensinam muito sobre o presente.
Como, por exemplo, quando situa a repressão ao alcoolismo: “Fonte de risco para a ordem pública, o alcoolismo preocupava as autoridades policiais, que buscavam contê-lo por meio do aprisionamento dos ébrios” –cerca de 1/3 das mulheres detidas, no começo da década de 40, ingressaram nas delegacias por alcoolismo, que não raro estava associado a outras fontes de detenção feminina, como a desordem, o escândalo e a vadiagem.
Fruto do pensamento higienista, a ideia recorrente de que, estando o alcoolismo associado à degenerescência, a necessidade de combate ao vício tornara-se uma premente questão de saúde pública, a ser “urgentemente controlada e resolvida”.
A forma de “controlar e resolver urgentemente” não é nada estranha a quem habita uma metrópole nos dias de hoje: a internação.
De acordo com a explicação de Olívia Maria Gomes da Cunha: “estes indivíduos nocivos são, no entanto, na maioria das vezes, intocáveis pelas malhas da polícia ou da justiça, em seus comportamentos nem sempre criminalizáveis. Necessário, assim, para a defesa da sociedade, definir para os mesmos uma instância legal e legitimada de exclusão e controle: a medicina mental se encarrega de ocupar esse espaço”.
Difícil não comparar com a forma como se tratam usuários de crack nas grandes cidades, com a força policial e o empenho pela internação compulsória. Para nosso desagrado, todavia, a experiência nos mostra que a repressão no binômio cadeia-internação, que já ocorreu com alcóolatras, em nada diminuiu os níveis de consumo no país.
Trabalhando com categorias de antropologia, a autora procura mostrar a ideia que está por trás do padrão de “dever ser” exigido da mulher e consequentemente seu caráter desviante. Em questão, quase sempre a ideia de inferioridade, docilidade e submissão, na qual se insere a negação da sexualidade da mulher.
Tipo ideal de ser doméstico, a repressão sobre a mulher se dá quanto mais aumenta sua participação no espaço público –o que aprofunda o critério seletivo de criminalização. A urbanização e a progressiva destruição de cortiços acabou fazendo com que a população mais pobre se utilizasse com frequência da rua como seu espaço de lazer, ficando, portanto, muito mais exposta à fiscalização.
Essa distinção se fazia ainda mais visível no caso da prostituição, diante da separação entre as profissionais de cabaré (aceitas pela sociedade como um mal necessário) e a forte repressão ao baixo meretrício de rua.
O caráter “doméstico” da mulher chegou, inclusive, a ser importante referência legislativa: enquanto os reclusos tinham direito a trabalho externo, este era proibido para as mulheres presas até 1977.
Pensando criminalização e ressocialização desta forma, o resultado não poderia mesmo ser alvissareiro.
Como aponta a autora, em suas conclusões, “a proposta de reeducação e recuperação moral das detentas para a sua reinserção na sociedade não possibilitou uma real transformação social, capaz de retirar essas mulheres das condições de subordinação e precariedade que as tornavam vulneráveis e expostas aos olhos da justiça criminal”.
O estudo é rico em arquivos extraídos das penitenciárias, estatísticas de prisões, relatos do cotidiano prisional e serve como um excelente ponto de partida para outras pesquisas na área.
Afinal, a ideia expressada em 1924 por Cândido Mendes de Almeida Filho, de que “o sistema penitenciário brasileiro era vergonhoso”, não está muito distante da realidade de hoje, quase um século depois.
Postado por Marcelo Semer Blog sem juízo
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário