domingo, 31 de março de 2013

O SIMBOLISMO CONSTITUCIONAL, A LEGISLAÇÃO ÁLIBI E A REDUÇÃO DA MENORIDADE PENAL.


A Constituição Federal Brasileira é classificada, no que toca à sua extensão, como uma constituição dirigente, por meio da qual o legislador constituinte originário traçou finalidades e programas de ação para o futuro, a depender, no mais das vezes, da atividade legiferante ordinária para sua realização fática. Por sua vez, resta evidente, partindo de tal premissa, que o referenciado dirigismo melhor se adapta ao denominado Estado de bem-estar social[1], através do qual a implementação de políticas públicas se delineia como objetivo primordial.
Entretanto, as finalidades e os programas de ação não vêm se concretizando a contento em nosso país. A tentativa de transformar o Brasil num típico Estado de bem-estar social frustra-se a cada dia por meio de políticas assistencialistas, as quais mais parecem querer fazer as vezes de paliativo para aqueles que vivem em situação de pobreza, sem nenhuma intenção de materializar inclusão social. Na contramão do texto constitucional, não se vislumbra a vontade de universalizar os direitos sociais plasmados na Lex Legum, oportunizando uma sonhada igualdade material, mormente quando o assunto tem fincas no Direito Penal.
Daí, então, podemos perceber uma dicotomia existente entre as palavras embutidas no âmago constitucional e sua concretização jurídica no mundo real, dando ensanchas ao surgimento do fenômeno da constitucionalização simbólica, traço característico dos ordenamentos jurídicos dos países periféricos. Com efeito, Harald Kinderman, citado por Marcelo Neves[2], relata que “quando o legislador se restringe a formular uma pretensão de produzir normas, sem tomar nenhuma providência no sentido de criar os pressupostos para a eficácia, apesar de estar em condições de criá-los, há indício de legislação simbólica”.
Canotilho[3] também entende que a teoria da constituição enfrenta problemas de simbolização. O renomado constitucionalista português fundamenta seu pensamento na abordagem feita pela sociologia crítica e pela teoria sistêmica, nos seguintes termos:
A sociologia crítica insiste na simbolização da constituição enfatizando que suas normas não logrão obter uma real eficácia (eficácia declarativa). Em muitos casos, há uma clara dissociação entre a prática de dizer e a prática de fazer o direito. Em relação à constituição, existiria inclusive uma relação inversamente proporcional entre a natureza ideológica das normas e da sua eficácia, entre a prática criativa e prática do aplicador do direito constitucional. De uma perspectiva semelhante, mas com base em pressupostos teóricos sistêmicos, a constitucionalização simbólica em grande parte significa que "o texto constitucional não correspondem às expectativas generalizadas e, portanto, supostas pelo consenso da respectiva sociedade". A partir desta perspectiva, a Constituição não se desenvolveria como instância reflexiva do sistema jurídico. [4]

A constituição simbólica não teria, portanto, normatividade jurídica plena, sendo caracterizada por uma redução significativa de sua aplicabilidade em benefício alargado de uma atuação político-simbólica. Nesse contexto, Marcelo Neves[5] assevera, conforme escólio de Harald Kinderman, a existência de três modalidades de conteúdo da legislação simbólica, quais sejam: a) confirmar valores sociais; b) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios e c) demonstrar a capacidade de ação do Estado – legislação álibi. Esta última modalidade interessa agora ao nosso estudo crítico, pois resulta em prejuízo às garantias penais.
Com efeito, a legislação álibi vem sendo utilizada amiúde pelo Estado como panacéia para os males sociais, com a nítida e falsa intenção de demonstrar a preocupação do legislador, proporcionando resultados político-eleitorais a curto prazo, geralmente atendendo aos anseios dos meios de comunicação de massa. Tal conduta, entretanto, mostra-se mais preocupante quando aludida espécie de legislação versa sobre matéria penal. Isto porque estará em jogo a liberdade do cidadão, a qual poderá ser restringida de forma ilegítima, por meio de um indesejado direito penal simbólico[6].
Retratando a perda de legitimidade do sistema penal também pelo uso da legislação álibi, o Professor Eugenio Raúl Zaffaroni denuncia o papel perverso desempenhado pelos meios de comunicação, os quais seriam responsáveis por erigir uma miragem de eficácia daquele sistema e ainda teriam aptidão para fomentar as malditas campanhas de “lei e ordem”, apoiando-se em pilares de areia, tais como: a) invenção da realidade (criação de fatos inexistentes e estatística criminal “maquiada”); b) profecias que se auto-realizam (mensagens subliminares direcionadas ao público, por exemplo: os menores podem fazer tudo, a ausência de punição é geral etc.); c) produção de indignação moral (aceitação dos grupos de extermínio e “justiceiros”)[7]
Nessa trilha intelectiva, percorre a doutrina da Professora Alice Bianchini[8], a qual transcrevemos agora, in verbis:
O que importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranqüilidade na opinião pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem perspectivas de mudanças do quadro que determinou a alteração (ou criação) legislativa. Produz-se a ilusão de que algo foi feito.
Na mesma esteira, novamente Marcelo Neves[9] evidencia que:
Também em relação a escalada da criminalidade no Brasil a partir das duas últimas décadas do século XX, a discussão em torno de uma legislação penal mais rigorosa apresenta-se como um álibi, uma vez que o problema não decorre da falta de legislação tipificadora, mas sim, fundamentalmente, da inexistência dos pressupostos socioeconômicos e políticos para a efetivação da legislação penal em vigor.

Cria-se, como visto, a falsa percepção por meio da qual o Direito Penal, quando utilizado no atacado, passa a ser um potente instrumento contra o crescimento das práticas delitivas. Prova disso é que em nosso país tramitam propostas de emenda constitucional com o intuito de promover a redução da menoridade penal. Sem adentrar no mérito de ser ou não inconstitucional dita proposta, ante a natureza de cláusula pétrea, não temos dúvidas de que a intenção em testilha mostra-se como mais um típico exemplo de legislação álibi, tanto mais porque terminará cedendo ao temerário populismo penal. De nada adiantará dita redução, sem que o Estado de bem-estar social implemente suas promessas constitucionais justamente no campo social.
Infelizmente, a falta de vontade política nesse ponto é visível!
Via de consequência, a Constituição Federal – sem concretizar o prometido – passa a ser uma mera peça decorativa, materializando o simbolismo, e a ausência da prática do seu texto pelo próprio Estado terminar por vilipendiar a dignidade da pessoa humana, fundamento republicado, haja vista que o toque do Direito Penal no cidadão traz-lhe seqüelas indeléveis. Por certo, na medida em que há “outros meios com inferior carga de onerosidade capazes de resolver a questão que se apresenta, o recurso ao direito penal resultará em ato atentatório à dignidade da pessoa, pois o Estado não está autorizado a causar mal desnecessário aos jurisdicionados”[10].   
A rejeição às legislações álibis, nessa vertente, deve ser levada a efeito sempre que possível[11], sob pena de se maquiar uma realidade inexistente, trazendo prejuízos aos cidadãos, uma vez carentes de solução legislativa para os males sociais que os afligem, e ao próprio Direito Penal, o qual terminar por cair em descrédito, por sempre falhar na sua meta de proteger os bens jurídicos. D’outro lanço, mister se faz expurgar os simbolismos constitucionais e buscar a verdadeira força normativa da Lei Maior, fazendo valer na prática toda sua carga axiológica em prol dos jurisdicionados.
Então, sob tal prisma constitucional, deve ser reduzida a menoridade penal?
Entendemos que as promessas constitucionais do bem-estar social devem ser primeiramente concretizadas, conforme desejou o legislador constituinte originário e, após isso, poderá ser discutida de forma legítima eventual e odiosa redução, tanto mais porque, sem olvidar as palavras de um camponês salvadorenho: la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos.

Está aberto o debate!    

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Twitter @paulobarbosa80




[1] Também conhecido como Estado social ou Estado-providência.
[2] NEVES (2011, p. 31)
[3] CANOTILHO (2004, p. 32/33)
[4] Tradução nossa: La sociología crítica insiste en la simbolización de la constitución destacando que sus normas no logran obtener una eficacia real (eficacia enunciativa). En muchos casos existe una clara disociación entre la práctica de decir y la práctica de hacer el derecho. Por lo que respecta la constitución, existiria incluso una relación inversamente proporcional entre el carácter ideológico de las normas y su eficacia, entre práctica creadora y práctica aplicadora del derecho constitucional. Desde una perspectiva cercana, pero basada en presupuestos teóricos sistêmicos, la constitucionalización simbólica significa que en gran medida ‘el texto constitucional no corresponde con expectativas congruentemente generalizadas y por consiguiente, con el consenso supuesto en la respectiva sociedad’. Desde esta perspectiva, la constitución no se desarrollaría como instancia reflexiva del sistema jurídico. CANOTILHO (2004, p. 32-33).
[5] NEVES (2011, p. 33)
[6] José Luis Díez Ripollés conceitua a legislação simbólica como um “instrumento que se vale da lei penal para tentativas de transformação ou manipulação social, ainda que a custa de ignorar princípios básicos do direito penal. RIPOLLÉS (2005, p. 79).
[7] ZAFFARONI (2010, p. 129)
[8] BIANCHINI (2002, p. 124)
[9] NEVES (2011, p. 38)
[10] BIACHINNI (2002, p. 19)
[11] Nunca é demasiada a lembrança da Constituição alemã de Waimar, de 11 de agosto de 1919, oriunda do Tratado de Versailles e considerada um marco do constitucionalismo social, haja vista o seu vasto rol de direitos fundamentais. Dita Carta nunca teve implementação fática, ante sua vigência num período de pós-guerra, onde as condições eram economicamente precárias. Tornou-se, assim, histórico exemplo do simbolismo constitucional, desencadeando o ódio no povo alemão e sendo um dos fatores para o surgimento do regime nazista.



Paulo Roberto Fonseca BarbosaJuiz de Direito do Tribunal de Justiça de Sergipe, Titular da Comarca de Ribeirópolis/SE, Juiz Eleitoral Titular da 26˚ Zona Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, Mestrando em Direito Penal pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Social da Bahia (FSBA), Escritor de Artigos Jurídicos e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA).

5 comentários:

  1. Nova fundamentação contra a reducão da menoridade no direito penal. Parabéns

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  2. Eu vim aqui para ver mais a fundo sobre o significado da palavra legislação-álibi e me deparei com este tremendo texto. Parabéns Doutor, isso significa que temos pessoas que estudaram muito para chegar na função a qual a vossa excelência está.
    A respeito da legislação simbólica, levo em consideração o momento sócio-histórico a qual estamos vivendo, e limito o entendimento de que o Poder Legislativo evoca um estilo apenas aparente, e reforço o senso de que o constitucionalismo do futuro está estagnado frente a linha da hipocrisia legislativa democrática. O padrão da legislação-álibi não é integral, somente é usado para mascarar a realidade da atual situação a qual o povo se encontra. Suprir o desejo das massas através de medidas rápidas e paliativas não trará o real desejo que o constitucionalismo do futuro pretende. Harald Kindermann adotou o modelo tricotômico que realmente combina com a sociedade brasileira.

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    1. Rafael, muito obrigado pelas palavras. Espero ter realmente ajudado. Um abraço!

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  3. Leonardo Marques de Jesus Pinto5 de dezembro de 2013 às 07:17

    Na mesma posição do colega acima, encontrei-me quando aqui busquei mais informações acerca de tal expressão ("legislação álibi") e acabei por me deparar com uma perfeita fundamentação de ponto de vista semelhante ao que já havia proposto em aula de Direito Constitucional II assistida na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. É um grande estímulo para mim, há 1 ano do início do curso, saber que existem pessoas com o gabarito tal como o pertencente ao senhor, às quais continuam a refletir criticamente acerca do ordenamento jurídico brasileiro. E ainda mais, uma grande honra ter surgido à minha mente um lapso de pensamento coincidente com o de eminente figura.

    Parabéns Doutor Paulo Roberto Fonseca Barbosa !

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  4. Que bom que tenha gostado do texto, Leonardo. Sucesso na sua carreira. Um abraço!

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