A Constituição Federal Brasileira é classificada, no que toca à sua
extensão, como uma constituição dirigente,
por meio da qual o legislador constituinte originário traçou finalidades e
programas de ação para o futuro, a depender, no mais das vezes, da atividade
legiferante ordinária para sua realização fática. Por sua vez, resta evidente,
partindo de tal premissa, que o referenciado dirigismo melhor se adapta ao denominado Estado de bem-estar social[1], através
do qual a implementação de políticas públicas se delineia como objetivo
primordial.
Entretanto, as finalidades e os programas de ação não vêm se concretizando
a contento em nosso país. A tentativa de transformar o Brasil num típico Estado
de bem-estar social frustra-se a cada dia por meio de políticas assistencialistas, as quais mais parecem querer fazer as
vezes de paliativo para aqueles que vivem em situação de pobreza, sem nenhuma
intenção de materializar inclusão social. Na contramão do texto constitucional,
não se vislumbra a vontade de universalizar os direitos sociais plasmados na Lex Legum, oportunizando uma sonhada
igualdade material, mormente quando o assunto tem fincas no Direito Penal.
Daí, então, podemos perceber uma dicotomia existente entre as palavras
embutidas no âmago constitucional e sua concretização jurídica no mundo real,
dando ensanchas ao surgimento do fenômeno da constitucionalização simbólica, traço característico dos
ordenamentos jurídicos dos países periféricos. Com efeito, Harald Kinderman,
citado por Marcelo Neves[2], relata
que “quando o legislador se restringe a formular uma pretensão de produzir
normas, sem tomar nenhuma providência no sentido de criar os pressupostos para
a eficácia, apesar de estar em condições de criá-los, há indício de legislação
simbólica”.
Canotilho[3]
também entende que a teoria da constituição enfrenta problemas de simbolização.
O renomado constitucionalista português fundamenta seu pensamento na abordagem
feita pela sociologia crítica e pela teoria sistêmica, nos seguintes termos:
A sociologia crítica insiste na simbolização da constituição enfatizando que suas normas não logrão obter uma real eficácia (eficácia declarativa). Em muitos casos, há uma clara dissociação entre a prática de dizer e a prática de fazer o direito. Em relação à constituição, existiria inclusive uma relação
inversamente proporcional entre a
natureza ideológica das normas e
da sua eficácia, entre a prática criativa e prática do aplicador do
direito constitucional. De uma perspectiva semelhante, mas com base em pressupostos teóricos sistêmicos, a constitucionalização
simbólica em grande parte significa que "o texto constitucional não
correspondem às expectativas generalizadas
e, portanto, supostas pelo consenso da respectiva
sociedade". A partir desta perspectiva, a
Constituição não se desenvolveria como instância
reflexiva do sistema jurídico. [4]
A constituição simbólica não
teria, portanto, normatividade jurídica plena, sendo caracterizada por uma
redução significativa de sua aplicabilidade em benefício alargado de uma
atuação político-simbólica. Nesse contexto, Marcelo Neves[5]
assevera, conforme escólio de Harald Kinderman, a existência de três
modalidades de conteúdo da legislação simbólica, quais sejam: a) confirmar
valores sociais; b) adiar a solução de conflitos sociais através de
compromissos dilatórios e c) demonstrar a capacidade de ação do Estado – legislação álibi. Esta última modalidade
interessa agora ao nosso estudo crítico, pois resulta em prejuízo às garantias
penais.
Com efeito, a legislação álibi vem sendo utilizada amiúde pelo Estado
como panacéia para os males sociais, com a nítida e falsa intenção de demonstrar
a preocupação do legislador, proporcionando resultados político-eleitorais a
curto prazo, geralmente atendendo aos anseios dos meios de comunicação de
massa. Tal conduta, entretanto, mostra-se mais preocupante quando aludida
espécie de legislação versa sobre matéria penal. Isto porque estará em jogo a
liberdade do cidadão, a qual poderá ser restringida de forma ilegítima, por
meio de um indesejado direito penal simbólico[6].
Retratando a perda de legitimidade do sistema penal também pelo uso da
legislação álibi, o Professor Eugenio Raúl Zaffaroni denuncia o papel perverso
desempenhado pelos meios de comunicação, os quais seriam responsáveis por
erigir uma miragem de eficácia daquele sistema e ainda teriam aptidão para
fomentar as malditas campanhas de “lei e ordem”, apoiando-se em pilares de
areia, tais como: a) invenção da
realidade (criação de fatos inexistentes e estatística criminal
“maquiada”); b) profecias que se
auto-realizam (mensagens subliminares direcionadas ao público, por exemplo:
os menores podem fazer tudo, a ausência de punição é geral etc.); c) produção de indignação moral (aceitação
dos grupos de extermínio e “justiceiros”)[7].
Nessa trilha intelectiva, percorre a doutrina da Professora Alice
Bianchini[8], a qual
transcrevemos agora, in verbis:
O que importa, para a função
simbólica, é manter um nível de tranqüilidade na opinião pública, fundado na
impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que
emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se penas,
restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem
perspectivas de mudanças do quadro que determinou a alteração (ou criação)
legislativa. Produz-se a ilusão de que algo foi feito.
Na mesma esteira, novamente Marcelo Neves[9]
evidencia que:
Também em relação a escalada
da criminalidade no Brasil a partir das duas últimas décadas do século XX, a
discussão em torno de uma legislação penal mais rigorosa apresenta-se como um
álibi, uma vez que o problema não decorre da falta de legislação tipificadora,
mas sim, fundamentalmente, da inexistência dos pressupostos socioeconômicos e
políticos para a efetivação da legislação penal em vigor.
Cria-se, como visto, a falsa percepção por meio da qual o Direito Penal,
quando utilizado no atacado, passa a ser um potente instrumento contra o
crescimento das práticas delitivas. Prova disso é que em nosso país tramitam
propostas de emenda constitucional com o intuito de promover a redução da menoridade penal. Sem
adentrar no mérito de ser ou não inconstitucional dita proposta, ante a
natureza de cláusula pétrea, não temos dúvidas de que a intenção em testilha
mostra-se como mais um típico exemplo de legislação álibi, tanto mais porque
terminará cedendo ao temerário populismo penal. De nada adiantará dita redução,
sem que o Estado de bem-estar social implemente suas promessas constitucionais justamente
no campo social.
Infelizmente, a falta de vontade política nesse ponto é visível!
Via de consequência, a Constituição Federal – sem concretizar o prometido
– passa a ser uma mera peça decorativa, materializando o simbolismo, e a
ausência da prática do seu texto pelo próprio Estado terminar por vilipendiar a
dignidade da pessoa humana,
fundamento republicado, haja vista que o toque do Direito Penal no cidadão
traz-lhe seqüelas indeléveis. Por certo, na medida em que há “outros meios com
inferior carga de onerosidade capazes de resolver a questão que se apresenta, o
recurso ao direito penal resultará em ato atentatório à dignidade da pessoa,
pois o Estado não está autorizado a causar mal desnecessário aos
jurisdicionados”[10].
A rejeição às legislações álibis, nessa vertente, deve ser levada a
efeito sempre que possível[11], sob
pena de se maquiar uma realidade inexistente, trazendo prejuízos aos cidadãos,
uma vez carentes de solução legislativa para os males sociais que os afligem, e
ao próprio Direito Penal, o qual terminar por cair em descrédito, por sempre
falhar na sua meta de proteger os bens jurídicos. D’outro lanço, mister se faz
expurgar os simbolismos constitucionais e buscar a verdadeira força normativa
da Lei Maior, fazendo valer na prática toda sua carga axiológica em prol dos
jurisdicionados.
Então, sob tal prisma constitucional, deve ser reduzida a menoridade
penal?
Entendemos que as promessas constitucionais do bem-estar social devem ser
primeiramente concretizadas, conforme desejou o legislador constituinte
originário e, após isso, poderá ser discutida de forma legítima eventual e
odiosa redução, tanto mais porque, sem olvidar as palavras de um camponês
salvadorenho: la ley es como la
serpiente, solo pica a los descalzos.
Está aberto o debate!
Contatos:
Twitter @paulobarbosa80
[1] Também conhecido como Estado
social ou Estado-providência.
[2]
NEVES (2011, p. 31)
[3] CANOTILHO (2004, p. 32/33)
[4] Tradução nossa: La sociología crítica insiste en la
simbolización de la constitución destacando que sus normas no logran obtener
una eficacia real (eficacia enunciativa). En muchos casos existe una clara
disociación entre la práctica de decir y la práctica de hacer el derecho. Por
lo que respecta la constitución, existiria incluso una relación inversamente
proporcional entre el carácter ideológico de las normas y su eficacia, entre
práctica creadora y práctica aplicadora del derecho constitucional. Desde una
perspectiva cercana, pero basada en presupuestos teóricos sistêmicos, la
constitucionalización simbólica significa que en gran medida ‘el texto
constitucional no corresponde con expectativas congruentemente generalizadas y
por consiguiente, con el consenso supuesto en la respectiva sociedad’. Desde
esta perspectiva, la constitución no se desarrollaría como instancia reflexiva
del sistema jurídico. CANOTILHO (2004, p. 32-33).
[5]
NEVES (2011, p. 33)
[6] José Luis Díez Ripollés
conceitua a legislação simbólica como um “instrumento que se vale da lei penal
para tentativas de transformação ou manipulação social, ainda que a custa de
ignorar princípios básicos do direito penal. RIPOLLÉS
(2005, p. 79).
[7]
ZAFFARONI (2010, p. 129)
[8]
BIANCHINI (2002, p. 124)
[9]
NEVES (2011, p. 38)
[10]
BIACHINNI (2002, p. 19)
[11] Nunca é demasiada a lembrança da
Constituição alemã de Waimar, de 11 de agosto de 1919, oriunda do Tratado de
Versailles e considerada um marco do constitucionalismo social, haja vista o
seu vasto rol de direitos fundamentais. Dita Carta nunca teve implementação
fática, ante sua vigência num período de pós-guerra, onde as condições eram
economicamente precárias. Tornou-se, assim, histórico exemplo do simbolismo
constitucional, desencadeando o ódio no povo alemão e sendo um dos fatores para
o surgimento do regime nazista.
Paulo Roberto Fonseca Barbosa, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Sergipe, Titular da Comarca de Ribeirópolis/SE, Juiz Eleitoral Titular da 26˚ Zona Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, Mestrando em Direito Penal pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Social da Bahia (FSBA), Escritor de Artigos Jurídicos e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA).
Nova fundamentação contra a reducão da menoridade no direito penal. Parabéns
ResponderExcluirEu vim aqui para ver mais a fundo sobre o significado da palavra legislação-álibi e me deparei com este tremendo texto. Parabéns Doutor, isso significa que temos pessoas que estudaram muito para chegar na função a qual a vossa excelência está.
ResponderExcluirA respeito da legislação simbólica, levo em consideração o momento sócio-histórico a qual estamos vivendo, e limito o entendimento de que o Poder Legislativo evoca um estilo apenas aparente, e reforço o senso de que o constitucionalismo do futuro está estagnado frente a linha da hipocrisia legislativa democrática. O padrão da legislação-álibi não é integral, somente é usado para mascarar a realidade da atual situação a qual o povo se encontra. Suprir o desejo das massas através de medidas rápidas e paliativas não trará o real desejo que o constitucionalismo do futuro pretende. Harald Kindermann adotou o modelo tricotômico que realmente combina com a sociedade brasileira.
Rafael, muito obrigado pelas palavras. Espero ter realmente ajudado. Um abraço!
ExcluirNa mesma posição do colega acima, encontrei-me quando aqui busquei mais informações acerca de tal expressão ("legislação álibi") e acabei por me deparar com uma perfeita fundamentação de ponto de vista semelhante ao que já havia proposto em aula de Direito Constitucional II assistida na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. É um grande estímulo para mim, há 1 ano do início do curso, saber que existem pessoas com o gabarito tal como o pertencente ao senhor, às quais continuam a refletir criticamente acerca do ordenamento jurídico brasileiro. E ainda mais, uma grande honra ter surgido à minha mente um lapso de pensamento coincidente com o de eminente figura.
ResponderExcluirParabéns Doutor Paulo Roberto Fonseca Barbosa !
Que bom que tenha gostado do texto, Leonardo. Sucesso na sua carreira. Um abraço!
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