terça-feira, 7 de maio de 2013

A NECESSIDADE DE DESMILITARIZAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DA UNIFICAÇÃO DAS POLÍCIAS ESTADUAIS


Terceira Parte: 
A “Guerra” e o “Inimigo”

Na última coluna tratou-se da incompatibilidade da aplicação da Doutrina Militar à função policial, principalmente porque a referida doutrina encampa conceitos como “guerra” e “inimigo”, inaplicáveis às políticas de Segurança Pública.

Infelizmente, conforme abordado até aqui, nossas Forças Auxiliares são doutrinadas militarmente. Por mera conveniência do Exército, que prefere usar nossas cidades (as partes mais pobres, é claro) como “campo de treinamento” para manter suas forças auxiliares e de reserva “adestradas” para atenderem à eventual convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção, quando o correto seria que as Forças Armadas mantivessem um efetivo na ativa e na reserva compatível em quantidade e em qualidade com as dimensões continentais de nosso país, para que desempenhassem suas funções constitucionais e legais de segurança externa e interna.    

A consequência mais nefasta da Doutrina Militar aplicada à função policial de segurança pública para a nossa sociedade, e porque não para os policiais e bombeiros militares (estes últimos, nesse aspecto, nem tanto) é a criação de um cenário fictício de guerra e de enfrentamento de um inimigo que mudam de acordo com o momento histórico.

Há pelo menos três décadas a principal “guerra” da polícia militar é contra o crime “organizado” ligado ao tráfico de drogas (influência direta da fracassada política antidrogas Norte-Americana). E o inimigo, não é só o delinquente, mas o suspeito também.

Terminou-se a última coluna com dois questionamentos: Será que há uma “guerra”? E o “inimigo”, existe? Tentarei respondê-los.

A palavra “guerra” por muito tempo possuiu um único sentido inequívoco e concreto, a de um enfrentamento armado entre dois ou mais grupos. Modernamente encampa os mais diversos significados metafóricos (guerra contra a fome, guerra ao terror, guerra às drogas, guerra religiosa, guerra fiscal, etc.).

A Definição de “guerra” depende da abordagem que é feita por determinado ramo do conhecimento que se propôs a estudá-la. Tem-se a noção que defini-la não é uma tarefa fácil.

Todavia, Quincy Wright em A Study of war tenta definir “guerra” combinando os aspectos legal, sociológico, militar e psicológico, para, assim, sustentar que:

A guerra é uma fase da lei, é uma forma de conflito envolvendo um alto grau de regularidade legal, de hostilidades e de violência nas relações de grupos humanos organizados; em palavreado mais simples, guerra é a condição legal que permite igualmente dois ou mais grupos hostis continuar um conflito por força armada.

Desse precioso conceito extrai-se que a guerra é um fenômeno social em que determinado grupo através de um ato formal se autoriza a conflitar-se de forma armada com outro(s) grupo(s), seja para agredir, seja para se defender. Esse ato formal é denominado de “Declaração de Guerra”.

A Declaração de Guerra no âmbito do Direito Internacional adquire a natureza de instrumento jurídico internacional. No plano interno, como a Declaração de Guerra é ato privativo do Presidente da República, será instrumentalizado por meio de decreto autônomo, e, diante da formalidade imposta pela Constituição Federal de 1988, qual seja a autorização ou referendo do Congresso Nacional, tem natureza ato administrativo complexo.

Com o término da Segunda Guerra Mundial, se tornou raro os Estados declararem guerra de maneira formal, em razão das consequências jurídicas do ato, como o pagamento dos custos de guerra pelo vencido ao vencedor.

Assim sendo, o termo “conflito armado” passou a ser empregado com maior ênfase, por englobar toda espécie de atos de beligerância, pois este não exige para sua configuração um ato formal, apenas que os atos de hostilidades se iniciem.

Alguns de nossos supostos “criminólogos” e “especialistas em segurança pública” como José Luiz Datena, Wagner Montes, Marcelo Rezende, dentre outros,  afirmam categoricamente que no Brasil há uma “guerra civil não declarada” em razão dos “altos índices de criminalidade”, e que por esse motivo fomentam através da grande mídia o emprego da polícia militar (doutrinada militarmente), no “combate ao crime” através do confronto direto visando o extermínio, não mais do delinquente, mas do “inimigo” e dos suspeitos de sê-lo, pois, segundo eles, se estamos em “guerra” tudo é permitido contra o “inimigo”.

O triste é que este discurso é endossado por boa parte da população (através da manipulação midiática), pelos membros do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, juristas e pelos próprios policiais militares. Contudo, a premissa desse discurso é falsa.

A idéia de que tudo é permitido contra o inimigo na hipótese de guerra ou conflito armado é defasada.

Há inclusive um:

Conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das Partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito.

Esse conjunto de normas denominou-se “Direito Internacional Humanitário” ou “Direito Internacional dos Conflitos Armados”, um ramo Direito Internacional Público.
Segundo Michel Deyra:

Existem actualmente cerca de trinta textos internacionais em matéria de DIH. Entre eles podemos citar: as 15 Convenções da Haia de 1899 e de 1907, o Protocolo de Genebra de 17 de Junho de 1925, as 4 Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, a Convenção e o Protocolo da Haia de 14 de Maio de 1954, os 2 Protocolos Adicionais de 8 de Junho de 1977, a Convenção das Nações Unidas de 10 de Abril de 1981, o Tratado de Paris de 15 de Janeiro de 1993 e a Convenção de Ottawa de 3 de Dezembro de 1997.

As quatro Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949 estabelecem normas de proteção das vítimas de conflitos armados. A Primeira Convenção de Genebra trata da melhoria das condições dos feridos e dos enfermos das forças armadas em campanha; a Segunda Convenção de Genebra trata da melhoria das condições dos feridos, enfermos e náufragos das forças armadas no mar; a Terceira

Convenção de Genebra é relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra; e a Quarta Convenção de Genebra é relativa à proteção dos civis em tempo de guerra.

Além das quatro convenções acima mencionadas, complementam o direito de Genebra os protocolos adicionais, sendo os mais importantes: a) Protocolo adicional às convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vitimas dos conflitos armados internacionais (Protocolo I); e b)

Protocolo adicional às convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vitimas dos conflitos armados não internacionais (Protocolo II).

As Convenções de Haia de 1899, revistas em 1907, e em vários acordos internacionais, proíbem ou regulam a utilização de armas.

Em 1968, por ocasião do Ano Internacional dos Direitos do Homem, a ONU convocou a Conferência Internacional dos Direitos do Homem, que marcaria o vigésimo aniversário da Declaração dos Direitos do Homem de 1948. No final da reunião, realizada no Irã, adotou-se a resolução XXIII que, entre outras solicitações, pedia que todos os signatários auxiliassem para que, em todos os conflitos armados, tanto a população civil como os soldados fossem protegidos pelos princípios do Direito Internacional dos Conflitos Armados.

O Brasil ratificou ou aderiu a aproximadamente cinquenta tratados multilaterais relacionados à proteção de pessoas e bens e à proibição de armas de destruição em massa, e, por isso, se comprometeu a respeitar e fazer respeitar as regras de qualquer conflito armado, portanto torna-se especial a ampla difusão do conteúdo das disposições legais ratificadas, para conhecimento da população em geral e, em especial, dos integrantes das Forças Armadas e Auxiliares.

 Nosso Estado ratificou ainda o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal internacional (TPI). Este tribunal independente, de caráter permanente, de abrangência universal, vinculado ao sistema das

Nações Unidas possui como principal característica o princípio da complementaridade. Assim, o TPI atua de maneira complementar às decisões dos tribunais dos Estados-Partes, ou seja, caso o julgamento destes tenha sido realizado de maneira parcial ou inidônea.

A ratificação se deu através da promulgação do Decreto nº. 4.388, de 25 de setembro de 2002, sujeitando o Brasil aos ditames legais nele estabelecidos.

O Brasil reconheceu a competência do TPI para o julgamento de pessoas envolvidas em crimes de genocídio; contra a humanidade; de guerra (que se confunde com os Crimes em Tempo de guerra previsto no nosso Código Penal Militar) e de agressão, em consequência da Emenda Constitucional nº 45, em 8 de dezembro de 2004.

Há, contudo, hoje um déficit legislativo quanto à tipificação daquelas condutas no nosso ordenamento jurídico para que o Brasil possa processá-las e julgá-las, e, caso não o faça, o TPI poderá exercer sua jurisdição por força do Princípio da Complementaridade, o que significa um atestado de falência da administração da justiça brasileira.

No Projeto de Lei do Senado nº. 236 de 2012 que institui o Novo Código Penal há previsão da tipificação daquelas condutas na parte especial.

Em suma, mesmo que o absurdo e sensacionalista discurso de que “estamos numa guerra civil não declarada” fosse verdade, há todo um conjunto de normas visando à proteção das partes envolvidas no conflito armado, prevendo inclusive diversas sanções àqueles que as descumprirem, seja o Estado, seja seus agentes. Logo, no Brasil até o “inimigo” é sujeito de direitos.

Ademais, se “estamos em guerra” não há que se falar em “polícia” e “bandido”, mas em combatentes, aplicando-se, por conseguinte, o Estatuto do Prisioneiro de Guerra àqueles que forem capturados, não se falando mais em “presos” provisórios ou condenados, mas em prisioneiros de guerra.

É previsto no aludido estatuto que é proibido ferir ou matar alguém que depuser as armas e se render, ou que já não tenha nenhum meio para se defender. Aqueles que se renderem serão tratados com humanidade.

Mas para aqueles que ainda assim acham que estamos em uma espécie de “conflito armado”, convém verificar se de acordo com o Direito Internacional dos Conflitos Armados estamos em uma espécie de

Conflito Armado Não Internacional.

Três principais fontes jurídicas nos auxiliam para se determinar a existência um Conflito Armado Não Internacional (CANI). O artigo 8º, 2, “f” do Estatuto de Roma do Tribunal penal Internacional, o artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 1949 e o artigo 1º do Protocolo Adicional II.

O citado artigo 8º, 2, “f” do Estatuto de Roma do Tribunal penal Internacional   dispõe que;

A alínea “e” do parágrafo 2o do presente artigo aplicar-se-á aos conflitos armados que não tenham caráter internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante; aplicar-se-á, ainda, a conflitos armados que tenham lugar no território de um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos.

O artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 1949 prevê: “no caso de conflito armado sem caráter internacional e que surja no território de uma das Altas Partes Contratantes (...).” Já o art. 1ª do PAII prevê o campo de aplicação material do CANI (Conflito Armado Não Internacional) dispondo:

O presente Protocolo, que desenvolve e completa o artigo 3.·, comum às Convenções de 12 de Agosto de 1949, sem modificar as suas condições de aplicação atuais, aplica-se a todos os conflitos armados que não estão cobertos pelo artigo 1.· do Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (Protocolo 1), e que se desenrolem em território de uma Alta Parte Contratante, entre as suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, sob a chefia de um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu território um controlo tal que lhes permita levar a cabo operações militares continuas e organizadas e aplicar o presente Protocolo.  2 - O presente Protocolo não se aplica às situações de tensão e de perturbação internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análogos, que não são considerados como conflitos armados.

Esclarece-se desde já que a definição de CANI trazida pelo art. 1ª do PAII é mais restritiva que dos outros dois dispositivos citados, pois introduz o requisito de controle territorial, ao dispor que as partes não governamentais devem exercer este controle “tal que lhes permite realizar operações militares contínuas e concertadas e aplicar o presente Protocolo” e aplica-se somente, de maneira expressa, a conflitos armados entre as forças armados do Estado e forças armadas dissidentes ou outros grupos armados organizados. Essa definição só parece corresponder à guerra civil clássica

De modo contrário, o artigo 3º comum e o artigo 8º, 2, “f” do Estatuto do TPI prevêem conflitos armados não internacionais que não cumprem com os requisitos do Protocolo II.

A doutrina tem assim se manifestado sobre o conceito de CANI. De acordo com H.P. Gasser:
Os conflitos armados não internacionais são confrontos armados que ocorrem no território de um

Estado entre o governo, de um lado, e grupos insurgentes, de outro. [...] Outra instância é o desmoronamento de toda autoridade governamental no país, que tem por consequência a luta entre vários grupos pelo poder.

D. Schindler conceitua como:

As hostilidades devem ser conduzidas pela força das armas e exibir tal intensidade que, como regra, os governos sejam obrigados a empregar suas forças armadas contra os insurgentes ao invés de apenas forças policiais. Em segundo lugar, com relação aos insurgentes, as hostilidades devem ter um caráter coletivo, não devem ser efetivadas somente por grupos individuais. Ademais, os insurgentes devem demonstrar um mínimo de organização. As suas forças armadas devem estar colocadas sob um comando responsável e serem capazes de atender os mínimos requisitos humanitários.

Podemos concluir que conflitos armados não internacionais são confrontos armados prolongados que ocorrem entre forças armadas governamentais e forças de um ou mais grupos armados, ou entre esses grupos, que surjam no território de um Estado [parte das Convenções de Genebra], visando o poder e o controle sobre aquele Estado. Os confrontos armados devem atingir um patamar mínimo de intensidade. Pode ser o caso, por exemplo, quando as hostilidades são de natureza coletiva ou quando o governo é obrigado a empregar força militar contra os insurgentes, ao invés de apenas as forças policiais. As partes envolvidas no conflito devem apresentar um mínimo de organização. Isso quer dizer que estas forças devem estar sob uma estrutura de comando e ter a capacidade de manter operações militares. Não se aplica às situações de tensão e de perturbação internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análogos, que não são considerados como conflitos armados.

Logo, se verifica através do conceito supra que qualquer discurso no sentido de caracterizar-se um conflito armado não internacional em nosso país em razão das estatísticas da marcha da criminalidade não se coaduna com as normas do Direito Internacional dos Conflitos Armados, internalizadas pelo Brasil.

Verificou-se ainda que o intuito desse discurso é legitimar o confronto direto visando o extermínio do “inimigo”, e dos suspeitos de sê-lo, pela polícia militar, pois, se estamos em “guerra” tudo é permitido contra o “inimigo”. Porém, mesmo que esse absurdo e sensacionalista discurso de “guerra” e de “inimigo” fosse verdade, há todo um conjunto de normas do DICA visando à proteção das partes envolvidas no conflito armado, prevendo inclusive diversas sanções àqueles que as descumprirem, seja o Estado, seja seus agentes, fazendo com que no Brasil, felizmente, até o “inimigo” é sujeito de direitos.
Conclui-se, que ao delinquente é inaplicável qualquer conceito de combatente, e, por conseguinte, ele jamais adquirirá a condição de inimigo, pois seus atos ilícitos não traduzem qualquer ideologia que vise à tomada do poder e o controle sobre Estado.

Na próxima coluna abordar-se-á se o crime como fenômeno social justifica uma instituição militarizada para “combatê-lo”.


Advogado

Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes - RJ, Pós-graduado (especialização) em Direito Público, Pós-graduado (especialização) em Direito Militar (Direito Constitucional Militar, Direito Penal Militar, Direito Processual Penal Mlitar, Direito Administrativo Militar, Direito Previdenciário Militar e Direito Internacional dos Conflitos Armados), Pós-graduado (especialização) em Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia, todas pela Universidade Gama Filho - RJ. Compõe o quadro de advogados do escritório A. C. Burlamaqui Consultores S/C desde 2008.


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