No século 19, um ex-policial assassinou pelo menos oito pessoas, na maioria migrantes alemães, e transformou suas vítimas em lingüiça
Numa pequena cidade de 20 mil habitantes a descoberta de dois assassinatos põe todo mundo apavorado. Tratava-se de um comerciante português e um caixeiro seu, jovem de 16 anos. Os restos dos dois foram encontrados num velho poço, no fundo do pátio de uma casa simples, localizada numa rua central, a uma quadra do palácio do governo estadual. Ambos tinham a cabeça aberta por golpe de machado e ambos tinham sido degolados. Para completar o quadro, junto a eles foi encontrado o cadáver de um cachorro, que os habitantes da cidade sabiam ser do caixeiro assassinado.
Foram presos um homem de 26 anos, José Ramos, nascido em Santa Catarina, e uma mulher que com ele morava, Catarina Palsen, húngara de nascimento, alemã de língua e cultura. Ele é acusado de ser autor dos assassinatos, ela de ser sua cúmplice. São levados a júri e condenados.
Mas isso não é tudo – aliás, isso é só o começo de uma história aterrorizante, que foi a matéria-prima do livro O Maior Crime da Terra, de Décio Freitas, historiador, jornalista e ensaísta morto em março de 2004.
A cidade em questão é Porto Alegre e o período em que se passa a trama marca na história brasileira e gaúcha a véspera da Guerra do Paraguai (1865-1870), para a qual o Rio Grande do Sul representou, além de base estratégica de operações, a fonte principal de mão-de-obra militar e mesmo de animais para corte e transporte.
Interessa mais ainda saber que este é um período em que as cidades brasileiras ainda vivem sem iluminação pública a gás – o que se usa são lampiões a óleo de baleia, fedorentos e extremamente poluidores – e ainda sem transporte público regular com bondes puxados a tração animal, que só em algumas partes são usados regularmente. Sem falar de água encanada regular ou esgoto, itens, quando não inexistentes, inacessíveis.
Sendo uma história acontecida na capital gaúcha, é preciso acrescentar elementos contextuais decisivos. Província mais ao sul do Império brasileiro, única fronteira viva do mundo luso com o castelhano, com uma larga faixa de território sendo palco de lutas sangrentas, o Rio Grande do Sul dos anos de 1860 vem de pelo menos duas guerras muito fortes: a Guerra dos Farrapos (1835-1845), guerra civil que opôs dois grupos locais, um favorável a um processo de independência da província em relação ao Brasil, outro favorável à manutenção da unidade do Império, tendo como centro econômico a produção e distribuição do charque, a carne salgada, principal produto do estado naquela altura; e a Guerra Contra Rosas (1851-1852), em que parte do exército brasileiro da região se envolveu em uma campanha para derrubar do poder um dos mais poderosos caudilhos platinos.
Porto Alegre não foi o palco principal de nenhuma dessas lutas, mas, sendo a capital, nela ecoavam todas as movimentações. A vida política, decisiva para as guerras, acontecia na capital. Da mesma forma, era nela que se refletia, e com enorme força, outra novidade social, econômica, cultural – a imigração alemã para o vale do rio dos Sinos, região localizada a uns 40 quilômetros da capital gaúcha, onde se fixou um fantástico contingente de colonos, a partir de 1824, que nos anos 1860 já produzia regularmente alimentos in natura ou em conserva, que eram exportados através do porto da capital.
Na capital gaúcha se desenvolvia um notável setor industrial e de serviços, grande parte do qual também era protagonizado por imigrantes de língua alemã – hotéis, padarias, açougues, alfaiatarias, charutarias, chapelarias etc. Estima-se que, dos 20 mil habitantes, 3 mil seriam de língua alemã, prussianos, saxões, boêmios, austríacos, suíços, mesmo belgas – e cada uma dessas origens contava com um serviço consular na cidade (no total, subiriam a duas dezenas os consulados).
No futuro imediato do período dos crimes, haverá a importante imigração italiana, a campanha abolicionista (que no Sul ganhou cores específicas), a propaganda republicana (idem, com um Partido Republicano de extrema disciplina e doutrina rígida) e, mais que tudo, uma outra guerra civil, entre 1893 e 1895, a Revolução Federalista, levante contra o governo republicano protagonizado por fazendeiros liberais, setores saudosos da monarquia e caudilhos insubmissos, que ficou conhecida como a “guerra da degola” – diz-se que uns 10% dos mortos daquele biênio tenham sido sacrificados com uma lâmina afiada cortando a garganta do infeliz.
José Ramos também degolou suas vítimas (e o cachorrinho). Quando foi preso, sua casa foi vasculhada. Descobriu-se uma outra ossada enterrada no porão, além de vários objetos que não pertenciam nem a ele, nem a sua companheira Catarina. Os exames cadavéricos conduziram a uma única conclusão: aqueles eram os restos mortais de um alemão, Carl Gottlieb Claussner, açougueiro sumido havia alguns meses. As coisas se complicavam para o assassino.
José Ramos era amigo de Claussner. Freqüentavam-se as casas, e o brasileiro havia dito a várias testemunhas que tinha comprado o açougue do alemão e que ele, em seguida, havia voltado para sua terra, a Saxônia.
Mais pessoas são inquiridas, entre as quais dois outros alemães: um certo Henrique Rittman, tratado nos autos pela alcunha de “o Corcunda”, e Carlos Rathmann, já bem mais velho, na casa dos 60 anos, bêbado notório. Com o aprofundamento das investigações, chegou-se ao horror maior: essa pequena gangue, liderada por José Ramos, havia matado outras seis pessoas, no ano de 1863, todas elas de ascendência germânica, algumas vindas das colônias para comerciar em Porto Alegre, outras de passagem pela cidade. E não apenas morreram essas pobres criaturas: da carne de seus corpos, José Ramos, com apoio maior ou menor dos outros, havia feito lingüiça. Lingüiça que o açougue de Claussner havia vendido, inclusive para as melhores famílias da pequena cidade.
Mas quem era José Ramos? Os processos desta terrível página da vida porto-alegrense, as memórias de alguns escritores da época e a parca bibliografia permite reconstruir o perfil do assassino. Matador compulsivo, um serial killer daqueles tempos bem mais inocentes, Ramos era filho de um português que lutara na Guerra dos Farrapos e de uma índia. Um dia precisou defender a mãe de ataque do próprio pai e do enfrentamento resultou a morte do velho. E foi apenas o primeiro horror de sua história.
Já morando em Porto Alegre, José Ramos foi empregar-se na polícia. Aparentemente em função de sua enorme truculência – há registro de surras medonhas que impunha a presos ou a simples suspeitos –, foi desligado do serviço formal, mantendo, no entanto, um vínculo empregatício sólido, como informante do chefe de polícia da capital, Dario Callado, outro sujeito conhecido por sua violência – a crônica conta coisas de arrepiar, como uma surra que ele aplicou em um tenente com quem disputou uma cantora de opereta de passagem pela cidade, ou um castigo desproposital em escravos que estavam apenas e simplesmente caminhando por uma calçada do centro quando o chefe de polícia passava.
No processo, depois do assassinato do comerciante e seu caixeiro (e o cãozinho), a posição de José Ramos foi estranha. O próprio Dario Callado conduziu o inquérito (e um dos julgamentos também). Isso significa que o acusado era, de certa forma, um funcionário privilegiado da autoridade processante. Isenção nenhuma – e Décio demonstra, ao analisar a técnica de interrogatório, que Dario amoleceu as coisas para José Ramos.
O resultado foi que da pena de prisão perpétua retrocedeu-se para uma prisão por tempo limitado, e mesmo assim, dada a intimidade de Ramos com os esquemas policiais da cidade, ele teve muitas regalias. Tanto assim que ele só morreu em 1893, internado na Santa Casa, leproso – dois anos depois da morte de sua parceira Catarina, que durante o processo foi quem mais contou coisas dos bastidores da atuação de Ramos. Este, por sinal, jamais admitiu ter cometido qualquer dos crimes por que foi condenado.
A história do homem que fabricou lingüiça com carne humana permaneceu na memória da cidade. Contemporâneos do fato deixaram relatos imprecisos, alguns francamente fantasiosos, sobre o estranho casal – ele, formalmente um desocupado, que sabia ler e escrever e atipicamente falava alemão, ela uma prostituta que nem falava a língua local e que, de repente, aparece como seguidora dos Muckers, aqueles cristãos singulares, luteranos mas místicos, de comportamento sexual aparentemente muito liberal, cuja expressão mais conhecida foi Jacobina Maurer, que vivia entre os colonos do vale do Sinos.
O caldo de cultura desse horripilante episódio contribuiu para sua permanência. Socialmente, a história aconteceu naquela faixa de gente pobre das cidades, num ponto em que imigrantes, nativos, portugueses e escravos de ganho conviviam, de alguma maneira. Na Porto Alegre daquele tempo, acrescia-se o detalhe de que os imigrantes de língua alemã pareciam estar tomando os melhores postos de trabalho aos portugueses e brasileiros. Mais ainda, os alemães eram vistos com reservas pela população em geral: além de trabalharem tanto quanto os negros escravos, eram luteranos num país que na prática não permitia nenhuma ascensão a quem não fosse católico. Isso sem falar no fato de que as mulheres dessa etnia em geral sabiam ler e tinham um desembaraço que as tornava, aos olhos luso-brasileiros, extraordinariamente livres, a ponto de terem relações sexuais antes de casar!
Essa história aconteceu numa cidadezinha pacata, cujas ruas ainda se chamavam por nomes docemente familiares – rua do Poço, da Praia, do Cotovelo, do Arvoredo. A poucas quadras da casa dos horrores, vivia um certo José Joaquim de Campos Leão, o Qorpo-Santo do teatro, que provavelmente freqüentava o mesmo Theatro São Pedro inaugurado com orgulho provincial em 1858 e certamente via as mesmas figuras passando daqui para lá. Quem sabe, indo ao açougue que uma vez pertenceu a Carl Gottlieb Claussner.
Referências
- Freitas, Décio. O Maior Crime da Terra – O Açougue Humano da Rua do Arvoredo. Editora Sulina, 1998
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