Há alguns dias estava vendo um programa da TV fechada, o qual me chamou bastante atenção. Um caso alarmante, descoberto por uma família. O caso em questão ocorreu nos EUA.
Um professor de karatê sequestrou um menino de 12 anos (de acordo com as informações dadas pelo programa, o sequestro foi para pedir um suposto resgate, para posteriormente pagar dívidas). Após a captura do sequestrador e a volta da criança para casa, os investigadores do caso informaram à família que a criança havia sido estuprada. Na ocasião, os pais souberam, pela criança, que os abusos aconteciam há mais de um ano, quando começou na escolinha de lutas.
Questionado, o menino informou que não disse antes, pois tinha vergonha e o abusador dizia para não contar nada, caso contrário faria mal à sua família (ameaça). Além disso, a criança achava que era sua culpa. Após alguns dias, o pai do menino (Gary Plauche) matou a sangue frio o abusador (Jeff Doucet).
O pai se sentia culpado por ter incentivado a aproximação de Jeff de seus filhos, ele queria que o professor fosse uma referência por causa do esporte. Jeff era quase um membro da família, passava confiança, ele e a vítima eram grandes amigos. O pai não poderia imaginar que havia colocado o filho diante de um abusador.
O caso teve repercussão devido às pessoas questionarem se Plauche deveria ser condenado pelo assassinato, ou se deveria ser libertado. Ele recebeu sentença de 7 anos, com 5 anos de liberdade condicional e 300 horas de serviço comunitário, não recebeu tempo de prisão.
Se o assassinato ocorresse no Brasil, poderíamos considerar o disposto no art. 121, § 1º, homicídio privilegiado, que é um caso de diminuição de pena. A justificativa se dá pelo fato de que o pai cometeu o crime, pois estava impelido por motivo de relevante valor moral, ou sob o domínio de violenta emoção.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Não precisamos ir tão longe para nos depararmos com casos semelhantes. Jogadores de futebol, atletas da ginástica, dentre outros esportes em que treinadores, técnicos e pessoas próximas abusam, são várias as situações de violação.
O abusador se vale da inocência para chegar ao seu objetivo, vende sonhos, faz promessas, apresenta um mundo, é um amigo da família, uma pessoa de indubitável confiança, uma figura limpa, considerada um “herói” para a criança.
O caso de maior repercussão brasileiro é o da nadadora Joanna Maranhão, a qual sofreu abusos intensos por parte de seu ex-treinador. Joanna começou a nadar aos 3 anos de idade, aos 12 estava no Pan-Americano, aos 17 em uma final olímpica.
Após um ano da entrada do novo técnico e, com isso, a melhora no desempenho de Joanna, os abusos começaram. Ele chegava a levá-la para sua própria casa e, enquanto a mulher trabalhava, ele abusava de Joanna. Ele era a inspiração de Joanna.
"Eu sabia que aquilo não era correto, mas não sabia do que se tratava e não sabia como agir, a quem pedir socorro. Eu ia dizer o que, se eu não sabia o que estava acontecendo? Ele pedia que eu sorrisse, falava que já estava acabando e pedia pra que não contasse a ninguém. Ele nunca me ameaçou, acredito que ele tinha um poder sobre mim e sabia que eu não iria contar". (Fonte: https://www.vix.com/pt/bdm/abusos-sexuais/joanna-maranhao-fala-abertamente-ao-bolsa-sobre-abusos-era-um-heroi-para-mim)
Os abusadores nos esportes, geralmente, têm a total confiança e aval da família para com a criança. Por isso, o diálogo com a criança sempre é importante. Não, apenas, avisá-la dos perigos, mas se interessar pela sua rotina, fazer perguntas do seu dia e suas tarefas. É um trabalho constante e delicado. E não duvidar da criança, quando ela externa o acontecido. No caso da nadadora, por exemplo, sua mãe não entendia o motivo de sua vontade de mudar de clube, não só seu desempenho piorou, mas teve sequelas que até hoje ela tenta superar. A atleta se sentia culpada, por achar que atraía um homem.
A nadadora só teve coragem de falar sobre o acontecido 12 anos depois, ou seja, quando o crime já estaria prescrito. Sem provas de que os atos ocorreram, como saber se realmente aconteceu? Como acreditar nas palavras de alguém que, à época, era criança? Não existiriam provas que incriminassem o ex-treinador. Como apurar um abuso que ocorreu há mais de 10 anos?
E foi por causa dos relatos da atleta, que foi criada a Lei 12.650/12, a qual altera o art. 111 do Código Penal com relação à prescrição dos crimes praticados contra crianças e adolescentes.
Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal. (Redação dada pela Lei nº 12.650, de 2012)
Desta forma, ainda que à época do crime sexual (somente com relação aos crimes sexuais) a criança não tenha dito nada, ou tenha sido coagida a não contar, ou orientada a não procurar ajuda, a prescrição só começa a contar a partir dos 18 anos.
Gostaria de lembrar que, de acordo com o site BBC, segundo dados do Ipea, 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. Quando os abusos são contra meninos, o silencio é ainda maior.
Um estudo feito nos Estados Unidos revelou recentemente que um em cada seis homens sofreu algum tipo de abuso antes dos 16 anos no país. No Brasil, há poucos dados sobre o assunto, mas o Disque Denúncia (o Disque 100, serviço nacional de denúncia de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes) registrou em 2014 uma média diária de 13 denúncias de abusos de meninos. O número ainda representa menos de 30% dos casos com meninas, mas de acordo com especialistas, também é alarmante. (Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36401054)
Dados chocantes como estes nos fazem compreender a importância não só da denúncia, mas do diálogo. Geralmente, a impunidade acontece porque a criança não verbaliza o ocorrido, por medo, ou por confiar no abusador.
NOTA:
O dia 18 de maio é conhecido como Dia Nacional contra o Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes, por causa do crime bárbaro ocorrido em Vitória-ES contra uma criança. Araceli Cabrera Crespo completaria nesta mesma data 44 anos, à época com 8 anos.
O caso teve publicidade devido ao fato de que o juiz, em uma sentença de mais de 700 páginas, absolveu os acusados (Dante de Barros Michelini – filho -, Dante de Brito Michelini – pai - e Paulo Constanteen Helal), após estes tumultuarem vastamente o processo. Todos eram membros de famílias tradicionais e INFLUENTES de Vitória (tanto que as duas avenidas de maior movimentação carregam seus nomes). Leia o caso aqui: https://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/caso-araceli-completa-44-anos-e-misterio-sobre-a-morte-permanece-no-es.ghtml.
O abuso contra crianças geralmente é velado, sutil e com consequências inimagináveis na personalidade, no comportamento e na vida da criança.
Denuncie: Disque 100
Karla Alves
Bacharel pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV
Advogada
Membro do Grupo de Pesquisas Direito, Sociedade e Cultura, da Faculdade de
Direito de Vitória – FDV.
Membro do NeCrim (Núcleo de Estudos em Criminologia), ligado ao Grupo de
Pesquisas Direito, Sociedade e Cultura, da Faculdade de Direito de Vitória - FDV
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