quarta-feira, 11 de abril de 2012

STF: relator defende Estado laico e vota a favor de aborto


Relator do processo que pede o fim da criminalização do aborto de fetos anencéfalos e da condenação de médicos que realizem a prática, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello usou o argumento de que o Brasil é Estado laico ao votar favoravelmente pela ação. Os grupos religiosos são os principais críticos da descriminalização da prática.
"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", disse o ministro, citando um trecho da Bíblia na qual Jesus Cristo defendia o cumprimento de leis vigentes. "Deuses e césares tem espaços apartados. O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro", ponderou o ministro.
"A interrupção da gravidez de feto anencéfalo não pode ser examinada sobre o influxo de orientações morais e religiosas. Numa democracia não é legitimo excluir qualquer ator da arena de definição do sentido da Constituição. Contudo, para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos dos religiosos devem ser traduzidos em termos de razões públicas", defendeu Marco Aurélio.
Para o relator, "o feto anencéfalo é um morto cerebral, que tem batimento cardíaco e respiração". "A anencefalia configura, e não existem dúvidas, uma doença congênita letal, pois não há possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior", disse. "O anencéfalo jamais se tornará um pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura", acrescentou, rebatendo críticas de que a descriminalização poderia ser comparada a práticas nazistas de extermínio de pessoas com deficiências.
Segundo o ministro, foram concedidas 3 mil autorizações judiciais no país para interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Marco Aurélio apresentou dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) de grande incidência de anencefalia no Brasil. Segundo o ministro, relatando dados oficiais, a cada mil recém-nascidos no Brasil um é diagnosticado com a má formação cerebral. Esse índice deixa o Brasil em quarto lugar no mundo com mais casos de fetos anencéfalos, atrás de Chile, México e Paraguai.
Citando trechos de documento do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a escritora e filósofa feminista Simone de Beauvoir e a ex-ministra Nilcéia Freire, titular da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres no governo Luiz Inácio Lula da Silva, o magistrado considerou que a decisão sobre o assunto cabe à esfera privada de cada mulher.
"Não se coaduna com o princípio da proporcionalidade privilegiar apenas um dos seres da relação (o feto anencéfalo), aniquilando os direitos da mulher, impingindo-lhe sofrimento desarrazoado", afirmou ele em sua decisão. "(Isso) vai de encontro aos princípios basilares do sistema Constitucional, mais precisamente a dignidade da pessoa humana (...) e o direito de privacidade, autonomia, e integridade física, moral e psicológica da mulher."
Segundo ele, a continuidade da gestação causa mais males à mulher do que sua "interrupção terapêutica". "Mostra-se inadmissível fechar os olhos e o coração ao que é vivenciado diuturnamente pelas mulheres, seus companheiros e suas famílias", disse ele, citando exemplos em que houve sofrimento por parte de mulheres que gestaram fetos anencéfalos. "A incolumidade física do feto anencéfalo não pode ser preservada em detrimento dos direitos básicos da mulher."
Como relator, Marco Aurélio é o primeiro ministro a votar no julgamento. O processo é movido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que se fundou na certeza da letalidade da anencefalia. A Procuradoria-Geral da República também se manifestou hoje pela descriminalização da prática em casos de anencéfalos. Por ter atuado nesta mesma ação como Advogado-Geral da União, o ministro Dias Toffoli se declarou impedido de votar no julgamento.
Depois do voto de Marco Aurélio, a presidência suspendeu a sessão até as 14h30.
O julgamento
O processo julgado no STF nesta quarta-feira foi movido em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que pede para explicitar que a prática do aborto, em caso de gravidez de feto anencéfalo, não seja considerada crime.
Atualmente, o Código Penal prevê apenas duas situações em que pode ser realizado o aborto: em caso de estupro ou de claro risco à vida da mulher. A legislação proíbe todas as outras situações, estabelecendo pena de um a três anos de reclusão para a grávida que se submeter ao procedimento. Para profissional de saúde que realizar a prática, ainda que com o consentimento da gestante, a pena é de um a quatro anos.
Em 2004, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar para autorizar a antecipação do parto quando a deformidade fosse identificada por meio de laudo médico. Porém, pouco mais de três meses depois, o plenário decidiu, por maioria de votos, cassar a autorização concedida. Em 2008, foi realizada uma audiência pública, quando representantes do governo, especialistas em genética, entidades religiosas e da sociedade civil falaram sobre o tema.
A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação do cérebro e do córtex do bebê, havendo apenas um "resíduo" do tronco encefálico. De acordo com a CNTS, a doença provoca a morte de 65% dos bebês ainda dentro do útero materno e, nos casos de nascimento, sobrevida de algumas horas ou, no máximo, dias.

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