segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Laudo aponta doença mental e compara filho de PMs a Dom Quixote

Psicopatologia fez Marcelo Pesseghini ter delírios e confundir realidade.
Lesão cerebral e jogos violentos contribuíram para crimes, diz documento.


Pesseghini (Foto: Reprodução/ TV Globo)Laudo psiquiátrico será anexado ao inquérito poli-
cial sobre mortes (Foto: Reprodução/ TV Globo)
O laudo psiquiátrico sobre o perfil de Marcelo Pesseghini aponta que complicações de uma doença mental aliadas a fatores externos levaram o adolescente de 13 anos a matar toda a família e cometer suicídio em 5 de agosto em São Paulo. De acordo com o documento, o estudante sofria de uma “encefalopatia hipóxica” (falta de oxigenação no cérebro) que o fez desenvolver um "delírio encapsulado” (tinha ideias delirantes). E que também foi influenciado por games violentos.
Assinado pelo psiquiatra forense Guido Palomba, o laudo compara essa perda da noção de realidade vivida por Pesseghini com a do personagem Dom Quixote. No livro, o personagem de Miguel de Cervantes y Saavedra começa ler romances e perde o juízo. Acredita que as histórias que leu foram reais e decide se tornar um cavaleiro andante e parte pelo mundo para viver seu próprio romance.
O laudo aponta que, durante uma complicação em um procedimento hospitalar aos 2 anos de idade, Marcelo ficou momentaneamente sem oxigênio no cérebro e sofreu uma lesão hospitalar. Após o ocorrido, Marcelo sofreu a encefalopatia e passou a ter delírios, inclusive na adolescência.
De acordo com o laudo, recentemente Marcelo confundiu ficção com realidade e quis se tornar justiceiro. Ele criou um grupo imaginário de assassinos de aluguel e passou a usar um capuz, tudo isso inspirado no personagem de um videogame violento. Para concretizar seu sonho, no entanto, era preciso eliminar alguns “obstáculos”: seus familiares superprotetores, de acordo com o laudo.
Depois disso, como seus amigos de escola não acreditaram que Marcelo assassinou a família e não quiseram fugir com ele, o psiquiatra avalia que ele se matou, “não por arrependimento, mas por fracasso”.
G1 teve acesso ao perfil psicológico do adolescente feito a pedido da Polícia Civil. O documento, concluído na quarta-feira (18), tem o objetivo de saber o que levou Marcelo a usar a pistola .40 da mãe para executar os pais, que eram policiais militares, a avó materna e a tia-avó,e se matar depois.
O laudo concluiu que “a motivação do crime foi psicopatológica”. O relatório já está com o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) para ser anexado ao inquérito, que irá concluir que o adolescente matou a família e se suicidiou. O prazo para a conclusão do inquérito já expirou e foi prorrogado até 5 de outubro - e poderá ser prorrogado novamente por mais 30 dias.

As 35 páginas do chamado “exame de insanidade mental póstumo retrospectivo” foram feitas a partir de análises baseadas em depoimentos e entrevistas de testemunhas que conviveram com Marcelo - médicos que cuidavam dele, colegas de classe, professores, outros parentes e exames periciais sobre as mortes.

O documento sustenta a tese da investigação: Marcelo matou o pai, o sargento das Rondas Tobias de Aguiar (Rota), Luís Marcelo Pesseghini, de 40 anos; a mãe, a cabo Andréia Bovo Pesseghini, de 36; a avó-materna Benedita de Oliveira Bovo, 65; e a tia-avó Bernadete Oliveira da Silva, 55. Depois, o adolescente dirigiu o carro da mãe até uma rua próxima ao colégio onde estudava, dormiu dentro do veículo, e foi para a aula. Lá, contou para os amigos que havia matado a família, mas ninguém acreditou. Em seguida, voltou para a residência e se matou. Todos foram mortos com tiros na cabeça.
Crime em família SP 08/08 (Foto: Arte/G1)
Veja abaixo trechos e detalhes da "perícia psiquiátrica":
Encefalopatia hipóxica
De acordo com o laudo, Marcelo, que havia nascido com fibrose cística (doença genética que afeta o funcionamento de secreções do corpo, levando a problemas nos pulmões e no sistema digestivo; ela não tem cura e pode levar à morte precoce), teve pneumotórax (ar na cavidade pleural) perto dos 2 anos de idade durante um procedimento hospitalar. Em decorrência disso, teve encefalopatia hipóxica, que o deixou sem oxigênio no cérebro, “lesando os neurônios”.
“Cérebro lesado em tenra idade é sinônimo de psiquismo com transtorno. As lesões cerebrais em tenra idade, por hipóxia, causam a chamada encefalopatia”, relata o laudo.
“Marcelo era encefalopata”, informa o laudo. Encefalopatas costumam apresentar frieza afetiva, insensibilidade moral, indiferença, ausência de sentimentos (piedade, compaixão, remorso), premeditação doentia, conservam outras esferas sociais, obsessão etc.
'Delírio encapsulado'
Ainda segundo o documento, essa lesão cerebral na infância, a encefalopatia hipóxica, que privou o cérebro de Marcelo de oxigenação, desencadeou tempos depois ideias delirantes “nas quais a imaginação e a realidade se misturam morbidamente”, mesmo na adolescência. O nome disso, segundo o laudo, é “delírio encapsulado”. A inteligência dele, no entanto, não foi afetada, tanto é que era considerado um bom aluno.
Games
O laudo aponta que, neste ano, esse quadro de delírios se agravou quando Marcelo quis se tornar um justiceiro, um matador de aluguel de corruptos, inspirado no game "Assassin’s Creed". Um mês antes dos crimes, o estudante passou a usar a imagem do assassino do jogo no seu perfil doFacebook, e começou a usar um capuz como o personagem Desmond Miles - um barman que volta no tempo na pele de seus ancestrais. Com isso, encarna o matador Altair e se envolve na guerra entre assassinos e templários ao longo de diversos eventos históricos.
“Aí vieram os games, em uma época em que já tinha familiaridade com as armas de verdade. Nasceu o desejo de tornar-se um herói, mais importante que seus próprios pais”, informa o laudo. “Assim, despontou a sua realidade, não mais fictícia como nos videojogos, cujos atores sempre retornam à vida, mas um mundo real que lhe satisfazia o sentimento de ser um justiceiro de verdade”, aponta o laudo.
Os Mercenários
O laudo indica que Marcelo também começou a convidar amigos para fazer parte de um grupo criado por ele: Os Mercenários. “Seus membros seriam justiceiros, matadores de corruptos”, informa o laudo. “Nesse contexto lhe era familiar o conceito de justiceiro, pois seus pais eram policiais, que falavam em prisão, de cujo tipo de ação Marcelo se vangloriava, tanto é que contava aos amigos da escola”.

Os pais tinham ensinado Marcelo a atirar com uma arma de verdade e dirigir carros. Há relatos de testemunhas de que ele atirava bem. Chegou a ter espingarda de chumbinho, mas ela foi retirada pela mãe porque atirava em animais e não num alvo de isopor. Antes do crime, o garoto também relatou a amigos que ficou triste por não ter conseguido matar a avó com uma flechada.
“A profissão dos pais o marcou e fazia parte de seu imaginário. Além disso, a morte a vida, já por sua doença degenerativa, já por ser inerente à ação policial, não lhe eram distantes. Marcelo convivia nesse ambiente, nessa atmosfera”, diz o laudo.
Família
Segundo o laudo, para se tornar um herói, Marcelo precisava superar um “obstáculo”: seus pais superprotetores não o deixariam realizar seu sonho. “Contudo, era tímido e infantil, com a saúde fragilizada, vivia sob a superproteção dos pais. Talvez para compensar a grave doença de que padecia, seus pais exageraram certos aspectos, tratando-o como adulto, ensinando-o a atirar e a guiar automóvel”, diz o laudo.
“Então, matou-os e assassinou os outros dois familiares na sequência, que também exerciam controle sobre ele”.
Segundo o laudo, a doença de Marcelo não foi percebida por adultos porque ele não contava suas “ideias mórbidas” a eles, mas sim aos colegas, de sua idade, que não o levavam “à sério”. “Esse delírio circunscrito a esse tema, encapsulado, como se fosse um câncer que pega parte do órgão, não o todo”, diz o laudo.
palomba (Foto: globo news)Psiquiatra forense Guido Palomba elaborou laudo
(Foto / Arquivo: reprodução Globo News)
Dom Quixote
O laudo psiquiátrico compara Marcelo ao personagem Dom Quixote de La Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra. O documento aborda que o adolescente e o herói da obra literária viviam num “mundo imaginado”.
No livro, Dom Quixote é um velho que começa ler romances e perde o juízo. Acredita que as histórias que leu foram reais e decide se tornar um cavaleiro andante e parte pelo mundo para viver seu próprio romance.
“Ao matar os familiares viu-se livre para o mundo imaginado, tornou-se de fato um justiceiro e forniu a mochila com perfume, uma calça, uma faca, um pequeno revólver e alguns rolos de papel higiênico – isso porque sabia que sem medicação (sua mochila não tinha remédios) sofreria diarréias e secreções, dadas as graves lesões pancreática e pulmonar – e saiu para dar andamento ao seu ideal quixotesco, na acepção exata do termo”, diz o laudo.
“Recordando, Dom Quixote perdeu a razão depois de ler muitos livros de cavalaria (Marcelo depois de muitos videojogos) e partiu para se tornar um cavaleiro errante (Marcelo, justiceiro errante). O automóvel de Marcelo no lugar do cavalo Rocinante; a faca e o revólver em vez da lança e do escudo; Sancho Pança (o escudeiro) seria os amigos da escola, convidados no dia seguinte; a saída de Dom Quixote de um lugar de La Mancha, tal qual Marcelo de casa. E em ambos, a empreitada que daria realidade a um ideal justiceiro e andante, com a diferença de que Dom Quixote tinha por amada Dulcineia de El Tobos e Marcelo nunca namorara”, diz o trecho do laudo.
Em outro trecho, ainda sobre a comparação entre Marcelo e Dom Quixote, o laudo informa outra coisa em comum. “E ainda mais, o fim de ambos é igual em um ponto: ao retornarem ao lugar de origem, sentiram-se fracassados; porém, o cavaleiro andante morreu de tristeza e o justiceiro andante se suicidou, como se verá na sequência”.
Imagem de Facebook de adolescente suspeito de matar familiares na Zona Norte de SP (Foto: Reprodução)Imagem de Facebook de adolescente suspeito de
matar familiares na Zona Norte de SP
(Foto: Reprodução Arquivo Pessoal)
Suicídio
De acordo com o laudo, Marcelo não sentiu nenhum sentimento de culpa ao matar os pais e ir para a escola logo em seguida dirigindo o carro da mãe. “Livre, completamente livre pela primeira vez na vida, tornou-se, para si mesmo, alguém poderoso como imaginara. Saiu sozinho de carro à noite! Estacionou, dormiu e foi ao colégio completamente indiferente às mortes da véspera. Aquele seria o seu último dia de aula. Faltava convidar os amigos do Clube dos Mercenários para, juntos, seguirem em frente”.
De acordo com a análise psiquiátrica, Marcelo se sentiu impotente diante do fato de seus amigos de escola, que formavam os Mercenários, não acreditarem que ele matou a família. “Terminada a aula, decepcionado, sem coragem para seguir sozinho rumo ao grande ideal, pegou carona com o pai de um amigo e, de volta à casa, sem os seguidores e sem o carro (ficou parado na rua perto da escola), toda a sua fantástica realidade (ideias delirantes) ruiu completamente”.
De volta para casa, segundo o laudo, Marcelo então começou a se sentir um fracassado por não ter conseguido levar adiante seu plano de se tornar um justiceiro e sair com o Os Mercenários pelo mundo.

“Por cima do monte de entulho sobrevém a cena de imobilidade e morte dos pais. Então, não por arrependimento, mas por fracasso, com a mão esquerda (era canhoto) deu um tiro no próprio ouvido, com a mesma simplicidade que dava tiros nos games, nos quais as pessoas “mortas” sempre apareciam de novo”, aponta o laudo.

O laudo ainda indica que a doença mental de Marcelo causou “um evidente estancamento na fase infantil, pois seus ideais delirantes eram simples, pueris, pouco elaborados.”

“É o que ocorre, guardadas as proporções, com o psiquismo de todas as crianças de pouca idade, em que fantasia e realidade ainda permanecem amalgamadas: quando vestem a máscara de leão, não se acham seres mascarados, mas o próprio leão. Em Marcelo, a máscara era a de justiceiro errante”, finaliza o laudo.
g1

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