terça-feira, 5 de março de 2013

É possível reconhecer a figura do roubo insignificante?


Por primeiro, agradecemos ao Blog Ciências Criminais pela oportunidade de divulgar nossas idéias e reflexões sobre o Direito Penal, ramo que nos fascina justamente por lidar com os bens mais precisos da humanidade. Estaremos sempre abertos ao diálogo e ao bom debate, no intuito de aprimorar nossas linhas de pensamento crítico, adotando como norte os princípios e garantias constitucionais, buscando contribuir de alguma maneira para o desenvolvimento dessa importante área da ciência jurídica.
Nesse primeiro encontro, estamos trazendo um caso prático, vivenciado por nós enquanto magistrado criminal, através do qual pretendemos fomentar a discussão referente à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ou bagatela ao crime de roubo, tema assaz candente e por demais controvertido na doutrina e jurisprudência nativas.
No mês de fevereiro do ano de 2012, após retorno das férias, recebemos uma denúncia, rezando uma suposta prática de roubo qualificado pelo concurso de pessoas (art. 157, §2º, do CP). A peça Ministerial dizia que Guilherme (19 anos) e Sérgio (18 anos) teriam adentrado num mercadinho, passando a olhar as mercadorias ali expostas. Num dado momento, Antônio, o proprietário, que residia num imóvel construído acima do tal estabelecimento comercial, dirigiu-se até o banheiro. Ato contínuo, Guilherme, percebendo que estava somente com Sérgio no mercado, fechou a porta do banheiro, trancando Antônio pelo lado de dentro. De imediato, Guilherme e Sérgio pegaram o que quiseram: quatro pacotes de bolacha recheada, refrigerantes e algumas bebidas alcoólicas, partindo em disparada.
Alguns instantes após, Antônio conseguiu sair do banheiro, por intermédio da ajuda de sua esposa, e acionou uma viatura policial. Passados cerca de 30 (trinta) minutos de toda empreitada delitiva, Guilherme e Sérgio foram localizados e presos em flagrante delito. Todos os objetos subtraídos foram recuperados e entregues à vítima, não lhe ocasionando nenhum prejuízo material.
Confessamos que de início nos perguntamos: esse fato encontra adequação típica no furto ou no roubo? Indo humildemente ao CP, constatamos que o Promotor atuou em perfeita sintonia com a lei. Deveras, houve subtração de coisa alheia móvel, após redução da vítima à impossibilidade de resistência, praticada por duas pessoas. Estava perfeita a tipicidade formal do crime de roubo qualificado e consumado.
Perguntamos: caberia aplicação do principio da insignificância no caso em tela?
De arranque, asseveramos hic et nunc que dita aplicação é uma tendência com viabilidade jurídica e respaldada pela força normativa da nossa Constituição Federal, a qual veio à lume içando como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana[1] (art. 1, inc. III), objetivando erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, inc. III).
Tecnicamente, tem mira a redução do alcance do art. 157 do Código Penal Brasileiro, mais precisamente na ocasião em que o legislador impulsiona o uso da interpretação analógica[2], quando diz: por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. Buscamos abstrair da moldura do aludido dispositivo todas aquelas condutas situadas no local por nós denominado de zona cinzenta da tipicidade. Em outras palavras: condutas que possuem tipicidade formal, mas ressentem de tipicidade material, consoante aquela embutida peça do parquet.
Vejamos o raciocínio jurídico.
Uma vez permitida a interpretação analógica pela redação do art. 157, fica evidente que o legislador deixou a cargo do órgão julgador a sensibilidade/responsabilidade jurídica de joeirar quais seriam as hipóteses de condutas subsumíveis ao meio capaz de reduzir a impossibilidade de resistência do ofendido. Nada mais justo! Isso porque, mesmo de maneira involuntária, a atividade legiferante termina por abarcar situações mais brandas, sem danosidade social alguma, como a hipótese acima narrada. Razão disso, não concordamos com o entendimento absoluto pelo qual não caberia, de forma alguma, o reconhecimento da bagatelaridade no crime de roubo[3]. Ora, ao nosso sentir, a redação ampla daquela referida figura típica também terminou por englobar condutas sem dignidade penal.
            D’outro lado, há que se considerar para tanto a constante relativização dos bens jurídicos amparados penalmente. A evolução, nesse ponto, é patente. Se as teorias cravadas na utilidade social do bem e no direito processual penal não foram capazes de acenar para critérios firmes e seguros que distinguissem bens disponíveis e indisponíveis[4], é bem verdade que o desenvolvimento social nos mostra que o único bem jurídico penal absolutamente indisponível é a vida. Nesse quadrante, nossa tese estriba-se no sentido de que o patrimônio, a liberdade individual e a integridade física podem ser alvo de agressão insignificante, sem ensejar a necessidade da intervenção penal.
Pensando assim, é possível a existência do roubo insignificante.
Todavia, não estamos pregando aqui o retalhamento dos delitos complexos.
A nossa idéia orienta a aplicação da insignificância no crime de roubo, sem cisão.
Não comungamos, permissa venia, com alguns julgados que terminam por cindir o crime de roubo, reconhecendo a bagatelaridade apenas na sua parte patrimonial, condenando o agente pelo delito subsidiário. Tal atitude trata-se de verdadeira arquitetura jurídica, sem respaldo no próprio princípio da razoabilidade. Por certo, se levada a efeito o precitado entendimento, seriam inúmeras as situações de intranqüilidade social. Imaginemos o seguinte exemplo: Ticio mata Nondas para roubar o seu boné. O fato e, sem duvida, um latrocínio, com pena de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos de reclusão. Entretanto, adotada a possibilidade de cindir a conduta e aplicar a insignificância na parte patrimonial, o agente seria condenado por homicídio simples, com pena de 06 (seis) a 20 (vinte) anos.
Não perfilhamos tal linha de pensamento.
Imperioso notar até mesmo as implicações inconstitucionais de ordem processual no exemplo dado, eis que o Tribunal do Júri apreciaria um nítido delito patrimonial!
De maneira diversa, e com esteio na razoabilidade, deflagramos, num primeiro momento, a bandeira da necessidade de reconhecimento da relatividade dos bens jurídicos protegidos no crime de roubo, quebrando todo argumento que os coloquem como absolutos, sem possibilidade de sofrerem lesões insignificantes. Sob tal ótica, o interprete deve aferir a materialidade do delito fincando-se na efetiva ofensa sofrida pelo bem e não na sua qualidade. Dentro desse viés de possibilidade, ficaria a cargo do magistrado dizer se aquele bem agora relativizado (patrimônio, integridade física e liberdade individual) recebeu afetação significativa ou não.
Numa primeira investida, não teríamos obstáculos aceitáveis para inviabilizar o reconhecimento da relatividade na parte do roubo referente ao patrimônio, haja vista a existência torrencial de julgados e farta messe doutrinaria. Poder-se-ia, então, tentar a inviabilização quanto à integridade física e a liberdade individual. Todavia, também já são inúmeros os julgados, inclusive do STF, que acenam para o cabimento da lesão corporal insignificante – aliás, o próprio Código Penal Militar admite dita interpretação. O “problema” seria a relativização da liberdade individual do ofendido.
Nesse ponto, bastaria um simples questionamento para aceitação da relativização da liberdade individual, a saber: se a integridade física, bem mais importante, vem sendo relativizada, por que a liberdade individual não seria? Pensamos, só por isso, que já seria aceitável o cabimento do princípio da insignificância em alguns casos de roubo, sem cisão de suas elementares. Seria valorado pelo órgão judicante se ocorreu a restrição mínima da liberdade e a subtração de objeto com valor ínfimo. Entendemos, ainda, que a bagatelaridade não se caracterizaria na existência de significativa violência ou grave ameaça.
Na trilha da argumentação jurídica expendida, entendemos no caso em testilha que não se fez presente a tipicidade material da conduta, daí por que rejeitamos a denúncia, mediante o reconhecimento da figura do roubo insignificante. Naquela oportunidade, citamos Fernando Célio de Brito Nogueira[5], o qual, com razão, pontua que:
Bem por isso, numa visão mais humanizada do Direito Penal, o principio da insignificância não pode ser desprezado ou desconsiderado a pretexto de fomentar a impunidade. O que fomenta a impunidade e o recrudescimento da criminalidade são muito mais a ausência de resposta estatal efetiva aos grandes desmandos e ilicitudes da Nação, condutas que não raras vezes sangram os cofres públicos e os bolsos dos cidadãos que trabalham e pagam impostos, bem como o não-atendimento das necessidades básicas das pessoas.
Concluímos, então, sublinhando a premente a necessidade de o moderno operador do direito abandonar alguns pensamentos reacionários, embalado pela coragem de concretizar a justiça calcada em princípios. Daí resulta, em nossa concepção, a possibilidade de se reconhecer a figura do roubo insignificante, o qual tocará em grande parcela de abnegados do Estado, excluindo os pobres de cristo do inferno dantesco, que são os nossos presídios, suavizando a seletividade do sistema punitivo.
Está aberto o debate!
Saudações,



Paulo Roberto Fonseca Barbosa, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Sergipe, Titular da Comarca de Ribeirópolis/SE, Juiz Eleitoral Titular da 26˚ Zona Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, Mestrando em Direito Penal pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Social da Bahia (FSBA), Escritor de Artigos Jurídicos e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA).


[1] Adotamos a conceituação de Ingo Wolfgang Sarlet, para quem dignidade da pessoa humana é “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”. SARLET (2010, p. 70.
[2] Segundo Damásio de Jesus, interpretação analógica ou intra legem “é permitida toda vez que uma clausula genérica se segue a uma formula casuística, devendo entender-se que aquela só compreende os casos análogos aos mencionados por esta”. DE JESUS (2011, p. 88).
[3] Vide: HC 97.190/GO, Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 10/08/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010 EMENT VOL-02418-02 PP-00323 RTJ VOL-00216- PP-00374) e HC 96.671/MG, Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 31/03/2009, DJe-075 DIVULG 23-04-2009 PUBLIC 24-04-2009 EMENT VOL-02357-04 PP-00665)
[4] A teoria da utilidade social do bem enuncia que “quando este não se reveste de uma imediata utilidade social e o Estado reconhece ao particular a exclusividade do uso e gozo, este ‘e disponível, e, contrariamente, quando a utilidade social se manifesta de imediato, o bem e indisponível.” Por sua vez, a teoria ligada ao direito processual penal assevera que se “o crime é perseguivel mediante ação penal pública incondicionada, forma-se uma presunção sobre ser o bem atingido indisponível, e, inversamente, se a ação penal a ser proposta e de iniciativa privada, e de se presumir tratar-se de bem disponível. PIERANGELI (1995, p. 109).
[5] NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Os miseráveis e o principio da insignificância. Jus Navigandi, Teresina, ano 2007, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revistas/texto/2526. Acesso em: 26 fev. 2013.

5 comentários:

  1. Sergipe mais uma vez surpreendendo com sua justiça bem aplicada.

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  2. Gostei do cuidado para não transformar os propósitos da insignificância em meios de talhar as infrações complexas.
    Uma bela aula.
    Satisfações de Campinas/Sp.

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  3. Trabalho no Ministério Público e vejo diariamente esse tipo de discrepância entre a chamada "ultima ratio" e as condutas humanas.

    Muitas vezes ao elaborarmos uma denúncia nesses moldes (e, acreditem, são muitas)nos deparamos com um verdadeiro dilema: como fugir da anseio de punir do estado, ante uma conduta infimamente danosa? Sequer vale a pena provocar toda a força estatal para punir um roubo de um ventilador? E eventualmente condenada, essa pessoa seria jogada ao convívio de outros infratores (provavelmente) muito mais violentos? Como mitigar o "jus puniendi" com a Dignidade da pessoa humana?

    Parabéns pelo artigo, discussões como essa provocam uma verdadeira reflexão aos operadores cotidiano do Direito.

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  4. É que assim, quando a vitima é o dono do mercadinho, até o homicidio pode ser insignificante. Agora quando a vitima é a nossa filha, a coisa muda de figura.
    Os garantistas à brasileira não tem empatia pela vitima. O dono do mercadinho pode desenvolver sindrome do pânico, ter que mudar toda a sua vida por causa do crime, vai viver com sensação de insegurança, mas nada disso importa.

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