Por primeiro,
agradecemos ao Blog Ciências Criminais pela oportunidade de divulgar nossas
idéias e reflexões sobre o Direito Penal, ramo que nos fascina justamente por
lidar com os bens mais precisos da humanidade. Estaremos sempre abertos ao
diálogo e ao bom debate, no intuito de aprimorar nossas linhas de pensamento
crítico, adotando como norte os princípios e garantias constitucionais,
buscando contribuir de alguma maneira para o desenvolvimento dessa importante
área da ciência jurídica.
Nesse primeiro
encontro, estamos trazendo um caso prático, vivenciado por nós enquanto
magistrado criminal, através do qual pretendemos fomentar a discussão referente
à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ou bagatela ao
crime de roubo, tema assaz candente e por demais controvertido na doutrina e
jurisprudência nativas.
No mês de fevereiro
do ano de 2012, após retorno das férias, recebemos uma denúncia, rezando uma
suposta prática de roubo qualificado pelo concurso de pessoas (art. 157, §2º,
do CP). A peça Ministerial dizia que Guilherme (19 anos) e Sérgio (18 anos)
teriam adentrado num mercadinho, passando a olhar as mercadorias ali expostas.
Num dado momento, Antônio, o proprietário, que residia num imóvel construído
acima do tal estabelecimento comercial, dirigiu-se até o banheiro. Ato
contínuo, Guilherme, percebendo que estava somente com Sérgio no mercado,
fechou a porta do banheiro, trancando Antônio pelo lado de dentro. De imediato,
Guilherme e Sérgio pegaram o que quiseram: quatro pacotes de bolacha recheada,
refrigerantes e algumas bebidas alcoólicas, partindo em disparada.
Alguns instantes
após, Antônio conseguiu sair do banheiro, por intermédio da ajuda de sua
esposa, e acionou uma viatura policial. Passados cerca de 30 (trinta) minutos
de toda empreitada delitiva, Guilherme e Sérgio foram localizados e presos em
flagrante delito. Todos os objetos subtraídos foram recuperados e entregues à
vítima, não lhe ocasionando nenhum prejuízo material.
Confessamos que de
início nos perguntamos: esse fato encontra adequação típica no furto ou no
roubo? Indo humildemente ao CP, constatamos que o Promotor atuou em perfeita
sintonia com a lei. Deveras, houve subtração
de coisa alheia móvel, após redução da
vítima à impossibilidade de resistência, praticada por duas pessoas. Estava perfeita a tipicidade formal do
crime de roubo qualificado e consumado.
Perguntamos:
caberia aplicação do principio da insignificância no caso em tela?
De
arranque, asseveramos hic et nunc que dita aplicação é uma tendência com
viabilidade jurídica e respaldada pela força
normativa da nossa Constituição Federal, a qual veio à lume içando como um
de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana[1]
(art. 1, inc. III), objetivando erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, inc. III).
Tecnicamente,
tem mira a redução do alcance do art. 157 do Código Penal Brasileiro, mais
precisamente na ocasião em que o legislador impulsiona o uso da interpretação
analógica[2],
quando diz: por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.
Buscamos abstrair da moldura do aludido dispositivo todas aquelas condutas
situadas no local por nós denominado de zona cinzenta da tipicidade. Em outras
palavras: condutas que possuem tipicidade formal, mas ressentem de tipicidade
material, consoante aquela embutida peça do parquet.
Vejamos
o raciocínio jurídico.
Uma
vez permitida a interpretação analógica pela redação do art. 157, fica evidente
que o legislador deixou a cargo do órgão julgador a
sensibilidade/responsabilidade jurídica de joeirar quais seriam as hipóteses de
condutas subsumíveis ao meio capaz de reduzir a impossibilidade de
resistência do ofendido. Nada mais justo! Isso porque, mesmo de maneira
involuntária, a atividade legiferante termina por abarcar situações mais
brandas, sem danosidade social alguma, como a hipótese acima narrada. Razão
disso, não concordamos com o entendimento absoluto pelo qual não
caberia, de forma alguma, o reconhecimento da bagatelaridade no crime de roubo[3].
Ora, ao nosso sentir, a redação ampla daquela referida figura típica também
terminou por englobar condutas sem dignidade
penal.
D’outro
lado, há que se considerar para tanto a constante relativização dos bens
jurídicos amparados penalmente. A evolução, nesse ponto, é patente. Se as
teorias cravadas na utilidade social do bem e no direito processual
penal não foram capazes de acenar para critérios firmes e seguros que
distinguissem bens disponíveis e indisponíveis[4], é
bem verdade que o desenvolvimento social nos mostra que o único bem jurídico
penal absolutamente indisponível é a vida. Nesse quadrante, nossa tese
estriba-se no sentido de que o patrimônio, a liberdade individual e a
integridade física podem ser alvo de agressão insignificante, sem ensejar a
necessidade da intervenção penal.
Pensando
assim, é possível a existência do roubo insignificante.
Todavia,
não estamos pregando aqui o retalhamento dos delitos complexos.
A
nossa idéia orienta a aplicação da insignificância no crime de roubo, sem
cisão.
Não
comungamos, permissa venia, com alguns julgados que terminam por cindir
o crime de roubo, reconhecendo a bagatelaridade apenas na sua parte
patrimonial, condenando o agente pelo delito subsidiário. Tal atitude trata-se
de verdadeira arquitetura jurídica, sem respaldo no próprio princípio da
razoabilidade. Por certo, se levada a efeito o precitado entendimento, seriam
inúmeras as situações de intranqüilidade social. Imaginemos o seguinte exemplo:
Ticio mata Nondas para roubar o seu boné. O fato e, sem duvida, um latrocínio,
com pena de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos de reclusão. Entretanto, adotada a
possibilidade de cindir a conduta e aplicar a insignificância na parte
patrimonial, o agente seria condenado por homicídio simples, com pena de 06
(seis) a 20 (vinte) anos.
Não
perfilhamos tal linha de pensamento.
Imperioso
notar até mesmo as implicações inconstitucionais de ordem processual no exemplo
dado, eis que o Tribunal do Júri apreciaria um nítido delito patrimonial!
De
maneira diversa, e com esteio na razoabilidade, deflagramos, num primeiro
momento, a bandeira da necessidade de reconhecimento da relatividade dos bens
jurídicos protegidos no crime de roubo, quebrando todo argumento que os
coloquem como absolutos, sem possibilidade de sofrerem lesões insignificantes.
Sob tal ótica, o interprete deve aferir a materialidade do delito fincando-se
na efetiva ofensa sofrida pelo bem e não na sua qualidade. Dentro desse viés de
possibilidade, ficaria a cargo do magistrado dizer se aquele bem agora relativizado
(patrimônio, integridade física e liberdade individual) recebeu afetação
significativa ou não.
Numa
primeira investida, não teríamos obstáculos aceitáveis para inviabilizar o
reconhecimento da relatividade na parte do roubo referente ao patrimônio, haja
vista a existência torrencial de julgados e farta messe doutrinaria.
Poder-se-ia, então, tentar a inviabilização quanto à integridade física e a
liberdade individual. Todavia, também já são inúmeros os julgados, inclusive do
STF, que acenam para o cabimento da lesão corporal insignificante – aliás, o
próprio Código Penal Militar admite dita interpretação. O “problema” seria a
relativização da liberdade individual do ofendido.
Nesse ponto,
bastaria um simples questionamento para aceitação da relativização da liberdade
individual, a saber: se a integridade física, bem mais importante, vem sendo
relativizada, por que a liberdade individual não seria? Pensamos, só por isso,
que já seria aceitável o cabimento do princípio da insignificância em alguns
casos de roubo, sem cisão de suas elementares. Seria valorado pelo órgão
judicante se ocorreu a restrição mínima da liberdade e a subtração de objeto
com valor ínfimo. Entendemos, ainda, que a bagatelaridade não se caracterizaria
na existência de significativa violência ou grave ameaça.
Na trilha da
argumentação jurídica expendida, entendemos no caso em testilha que não se fez
presente a tipicidade material da conduta, daí por que rejeitamos a denúncia,
mediante o reconhecimento da figura do roubo insignificante. Naquela
oportunidade, citamos Fernando Célio de Brito Nogueira[5], o
qual, com razão, pontua que:
Bem por isso, numa visão mais humanizada do Direito
Penal, o principio da insignificância não pode ser desprezado ou desconsiderado
a pretexto de fomentar a impunidade. O que fomenta a impunidade e o
recrudescimento da criminalidade são muito mais a ausência de resposta estatal
efetiva aos grandes desmandos e ilicitudes da Nação, condutas que não raras
vezes sangram os cofres públicos e os bolsos dos cidadãos que trabalham e pagam
impostos, bem como o não-atendimento das necessidades básicas das pessoas.
Concluímos,
então, sublinhando a premente a necessidade de o moderno operador do direito
abandonar alguns pensamentos reacionários, embalado pela coragem de concretizar
a justiça calcada em princípios. Daí resulta, em nossa concepção, a
possibilidade de se reconhecer a figura do roubo insignificante, o qual
tocará em grande parcela de abnegados do Estado, excluindo os pobres de
cristo do inferno dantesco, que são os nossos presídios, suavizando a
seletividade do sistema punitivo.
Está
aberto o debate!
Saudações,
Paulo
Roberto Fonseca Barbosa,
Juiz de Direito
do Tribunal de Justiça de Sergipe, Titular da Comarca de Ribeirópolis/SE, Juiz
Eleitoral Titular da 26˚ Zona Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de
Sergipe, Mestrando em Direito Penal pela Universidade Federal de Sergipe (UFS),
Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Social da Bahia (FSBA),
Escritor de Artigos Jurídicos e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC/BA).
[1] Adotamos a conceituação de Ingo
Wolfgang Sarlet, para quem dignidade da pessoa humana é “a qualidade intrínseca
e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse
sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa
tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante
o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”. SARLET (2010,
p. 70.
[2] Segundo Damásio de Jesus,
interpretação analógica ou intra legem “é permitida toda vez que uma
clausula genérica se segue a uma formula casuística, devendo entender-se que
aquela só compreende os casos análogos aos mencionados por esta”. DE JESUS
(2011, p. 88).
[3]
Vide: HC 97.190/GO, Min.
DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 10/08/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010
PUBLIC 08-10-2010 EMENT VOL-02418-02 PP-00323 RTJ VOL-00216- PP-00374) e HC
96.671/MG, Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 31/03/2009, DJe-075
DIVULG 23-04-2009 PUBLIC 24-04-2009 EMENT VOL-02357-04 PP-00665)
[4] A teoria da utilidade social do
bem enuncia que “quando este não se reveste de uma imediata utilidade social e
o Estado reconhece ao particular a exclusividade do uso e gozo, este ‘e
disponível, e, contrariamente, quando a utilidade social se manifesta de
imediato, o bem e indisponível.” Por sua vez, a teoria ligada ao direito
processual penal assevera que se “o crime é perseguivel mediante ação penal
pública incondicionada, forma-se uma presunção sobre ser o bem atingido
indisponível, e, inversamente, se a ação penal a ser proposta e de iniciativa
privada, e de se presumir tratar-se de bem disponível. PIERANGELI (1995, p.
109).
[5] NOGUEIRA, Fernando Célio de
Brito. Os miseráveis e o principio da
insignificância. Jus Navigandi, Teresina, ano 2007, n. 53, 1 jan.
2002. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revistas/texto/2526. Acesso em:
26 fev. 2013.
Excelente artigo!!!
ResponderExcluirSergipe mais uma vez surpreendendo com sua justiça bem aplicada.
ResponderExcluirGostei do cuidado para não transformar os propósitos da insignificância em meios de talhar as infrações complexas.
ResponderExcluirUma bela aula.
Satisfações de Campinas/Sp.
Trabalho no Ministério Público e vejo diariamente esse tipo de discrepância entre a chamada "ultima ratio" e as condutas humanas.
ResponderExcluirMuitas vezes ao elaborarmos uma denúncia nesses moldes (e, acreditem, são muitas)nos deparamos com um verdadeiro dilema: como fugir da anseio de punir do estado, ante uma conduta infimamente danosa? Sequer vale a pena provocar toda a força estatal para punir um roubo de um ventilador? E eventualmente condenada, essa pessoa seria jogada ao convívio de outros infratores (provavelmente) muito mais violentos? Como mitigar o "jus puniendi" com a Dignidade da pessoa humana?
Parabéns pelo artigo, discussões como essa provocam uma verdadeira reflexão aos operadores cotidiano do Direito.
É que assim, quando a vitima é o dono do mercadinho, até o homicidio pode ser insignificante. Agora quando a vitima é a nossa filha, a coisa muda de figura.
ResponderExcluirOs garantistas à brasileira não tem empatia pela vitima. O dono do mercadinho pode desenvolver sindrome do pânico, ter que mudar toda a sua vida por causa do crime, vai viver com sensação de insegurança, mas nada disso importa.