Mais claramente a partir do final da década de setenta do século passado, pôde ser identificada uma série de ações estatais contra o crime desenvolvidas por Ron Clarke e sua equipe de investigação do Home Office em Londres e, paralelamente, por Jan Van Dijk, alto funcionário do Ministério da Justiça, em Haia.
Jock Young nominou este movimento governamental de “nova” criminologia administrativa, em atenção às evidentes convergências com a teoria clássica do Século XVIII, que havia sido definida por George Vold como “criminologia administrativa”. O ponto de aproximação consiste na consideração do criminoso como ser humano racional que, dotado de livre-arbítrio e responsabilidade, opta por praticar um crime, ao invés de portar-se de modo legalmente exigido (em oposição ao determinismo positivista).
Com o fim da Segunda Grande Guerra, expande-se o Estado de Bem-Estar Social na Europa e owelfare state nos EUA, que tinham por objetivo fundamental, dentre outros na área econômica, a diminuição da desigualdade social e da precária condição de vida dos pobres por meio de programas assistencialistas executados pelos agentes da mão esquerda do Estado[1].
O previdenciarismo penal[2], lastreado pelo determinismo positivista então ainda dominante (mas já duramente criticado), restava aceitável diante dos benefícios experimentados pela população europeia e estadunidense no pós-guerra.
Entendia-se que a melhoria estrutural do Estado e o aumento dos níveis econômicos e sociais da população seriam condicionantes da redução dos índices de criminalidade. A relação, portanto, seria evidente: o crescimento da riqueza e sua distribuição (ainda que mínima) seriam inversamente proporcionais à violência social. Quanto maior a riqueza existente e melhor sua distribuição, menor seria a quantidade de crimes e criminosos.
Com a polarização do mundo no pós-guerra, capitalistas e socialistas se enfrentavam por meio da chamada guerra fria, momento no qual a melhoria das condições mínimas da população nos Estados capitalistas era imprescindível para assegurar o “sonho americano”,
Os volumosos gastos aplicados na área social não foram capazes de aplacar os índices europeus oficiais de criminalidade cujo incremento foi considerável nas décadas seguintes à II Guerra Mundial[3]:
TOTAL DE CRIMES REGISTRADOS | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1950 | 1960 | 1970 | 1980 | |||||
Alemanha | 1.327.455 | 2.034.239 | 2.413.586 | 3.815.774 | ||||
Holanda | 96.500 | 131.800 | 265.700 | 705.700 | ||||
Reino Unido | 479.400 | 743.713 | 1.550.995 | 2.688.235 | ||||
EUA | N/I | 3.384.200 | 8.098.000 | 13.408.300 |
A Criminologia Crítica também desempenhou papel fundamental neste contexto histórico ao propor a superação do modelo positivista por meio da radical mudança do objeto de estudo criminológico, que passa da análise do criminoso para o estudo da política pública de criminalização, especialmente na análise das específicas ações seletivas das instâncias formais de controle.
Restou célebre a frase “nothing works” de Robert Martinson[4] em 1974 que, embora tratando das questões relacionadas ao cárcere, especialmente ao tratamento dos apenados com privação da liberdade, pode sintetizar a crise geral do sistema penal e, consequentemente, da criminologia.
Diante da crise econômica experimentada na década de 70, o que por si só já impactaria na gestão da miséria pelo viés social, e a explosão da criminalidade então vivenciada, os Estados iniciam um verdadeiro combate ao crime e, principalmente, aos criminosos passando constantemente a focar um inimigo identificado ou identificável. Por exemplo, pobres, estrangeiros, negros, traficantes etc.
Considerando o já narrado curso histórico, aos Estados, foram exigidas prontas respostas aos cada vez mais graves fenômenos criminais. A forma de tratamento dos criminosos até então adotada, fundada nos objetivos declarados de ressocialização e de reintegração à sociedade, e os altos custos financeiros que tais medidas importavam passam a ser gradativamente substituídos pelo endurecimento das ações de força contra os “indesejáveis”.
A nova criminologia administrativa afirma competir ao Poder Público incrementar as chances de punição dos infratores, através de mecanismos que efetivem a diminuição da criminalidade impune (cifras negras) e, ao mesmo tempo, medidas para diminuição do valor do benefício pretendido pelo criminoso, desestimulando-o.
Como movimento governamental destinado unicamente a combater os criminosos e seus crimes, a adoção pelo Estado da nova criminologia administrativa importou a adoção de medidas legislativas e executivas, tais como: a) Substituição dos tipos de dano por tipos de perigo abstrato, incriminando a mera exposição do bem tutelado a risco potencial; b) Incriminação dos atos preparatórios e até mesmo da cogitação; c) A pena deixa de ter como finalidade a reabilitação do criminoso pela prevenção individual, aumentando-se a prevenção geral por meio de estratégias de marketing na “guerra contra o crime”, e a quantificação da pena se lastreia na potencial reincidência do criminoso ao invés de se basear na gravidade do fato cometido, tal como ocorre na chamada “Three Strikes law and you're out” d) Monitoramento ante (Câmeras) e pós (tornozeleiras) factum.
A Criminologia situacional ou de oportunidade tem por propósito a análise do crime e suas circunstâncias fáticas sob a perspectiva dos agentes facilitadores, internos e externos, que irrompem os freios inibitórios da pessoa, o que a faz ser rotulada pelo Estado como um ser criminoso. Pode-se dizer que esta teoria do controle social analisa o crime (parte), mas não o fenômeno criminológico como um todo, já que despreza o enfrentamento de suas raízes.
Parte-se do pressuposto de que a grande maioria dos crimes acontece em razão de uma situação de oportunidade analisada pelo autor, que sopesa a proporção entre os riscos de ser identificado e detido pelas agências de controle e o beneficio (financeiro, emocional, sexual etc.) que pode advir da atividade criminosa. Trata-se, portanto, de uma análise simples de custo- benefício.
A prevenção situacional, além da influência atuarial já afirmada, também é levada a cabo por meio de inúmeras intervenções no campo dos direitos e liberdades individuais, essencialmente sob a forma de restrição e privação, tais como: “toque de recolher”, horário para fechamento de bares e boates, câmeras de vigilância, identificação e detenção criminal de meros suspeitos, barreiras policiais em áreas de especial interesse econômico, cultural, turístico etc.
Usando as ditas técnicas estatísticas visando antever a ocorrência do crime, conjugadas com mecanismos tecnológicos cada vez mais modernos e a capacitação dos agentes de repressão, o objetivo é diminuir a criminalidade impune, “domesticando” os potenciais criminosos.
Encampa, ainda, para legitimar a necessidade/finalidade da pena privativa de liberdade a teoria da Incapacitação, modelo essencialmente utilitarista de punição que sustenta ser possível ao Estado deter criminosos por bastante tempo e, assim, adiar a retomada da atividade criminosa independentemente do nível de gravidade da infração efetivamente cometida, mas sim considerada a alta probabilidade de reincidência.
Para a Teoria da Escolha Racional (Rational Choice, de Clarke e Cornish), os destinatários das leis penais, isto é, as pessoas, são dotadas de livre-arbítrio na eleição dos atos que pretendem ou não praticar. Dotadas, portanto, de autonomia, às pessoas são imputadas as consequências dos atos por elas praticados, numa clara simbiose entre liberdade (em agir) e responsabilidade (pela ação).
Considerando que os princípios da legalidade (tipificação e taxatividade dos crimes) e da anterioridade (tipificação prévia à conduta) se tornaram unânimes na segunda metade do século XX[5], oportunizou-se às pessoas a posição de vantagem de saber exatamente quais as consequências legais dos atos por elas praticados, seja na aferição de eventual licitude, seja para saber a quantidade máxima de pena aplicável pelo Estado em caso de prática de determinado ato.
Justifica-se, portanto, a caracterização do ser humano dotado de livre arbítrio na eleição (fases de cogitação e preparação) e implementação (fase de execução) de uma atividade criminosa. Parte-se do pressuposto de que as pessoas, ao projetarem uma atividade ilícita, já na fase de cogitação, consideram a relação existente entre o risco da punição e o beneficio da empreitada criminosa. Para tanto, entendem que a grande maioria dos crimes ocorre por puro ímpeto do agente diante de uma situação em que ele julga favoráveis a si, como, por exemplo, as condições da vítima, do ambiente etc, favoráveis a si.
Assim, a orientação em análise propõe duas formas de intervenção estatal para dificultar práticas criminosas:
A – Reforço dos freios inibitórios das pessoas - a utilização pelo Estado de meios tecnológicos e humanos que reforcem a sensação de vigilância e de presença do Poder Público nas mais diversas situações do dia-a-dia, efetivando um sobrepeso do custo na análise de custo-benefício pelo pretenso criminoso. São exemplos concretos desta intervenção estatal: câmeras de vigilância, policiamento de proximidade, modernização das perícias da polícia científica e documentos de identificação com microchip.
B – Diminuição do valor do benefício pretendido com o crime - O Poder Público também pode implementar ou exigir que os particulares adotem medidas destinadas a diminuir a utilidade dos bens jurídicos expostos ao perigo de ataques criminosos. São exemplos: exigência de numeração seriada para aparelhos eletrônicos e incentivo na utilização de meios eletrônico de pagamento ao invés de moeda corrente.
Outra orientação da criminologia situacional é a Teoria do Estilo de Vida (da potencial vítima) de Gottffredson, Redson e Garofalo, que centra suas atenções na identificação e análise das características da vítima como idade, sexo e compleição física dentre as situações motivadoras para a prática do crime.
Considera preponderante na análise situacional do crime as características físicas e psíquicas das pessoas que justamente as colocam na condição de potenciais vítimas. Em certos crimes, os criminosos têm em mente um modelo predeterminado de vítima, com suas características previamente identificáveis, atuando como condicionantes para sua empreitada criminosa.
Assim, podem-se apresentar como exemplo os punguistas cuja atividade ilícita normalmente se efetiva pelo sorrateiro ataque às bolsas de mulheres idosas, especialmente pela absoluta imprevisibilidade de reação em caso de descoberta, o que torna a empreitada criminosa muito menos arriscada.
No livro Social change and crime rate trends: a routine activity approach lançado em 1979, os autores Lawrence E. Cohen e Marcus Felson trazem considerações criminológicas a partir das novas dinâmicas das relações sociais e laborais e lançam a Teoria das Atividades Rotineiras (Teoria da Oportunidade).
Entendem que as atividades rotineiras lícitas ensejam espaço para práticas criminosas e sustentam que a atividade delitiva pressupõe a convergência temporal e espacial de três fatores: (i) um delinquente motivado com capacidade de implementar o plano criminal, (ii) a existência de um objeto, uma vítima e/ou um lugar adequados e (iii) ausência de guardiões, assim consideradas pessoas cuja presença já é suficiente para desestimular o ofensor.
Quando há prevalência e agigantamento do controle social pelo Estado, presente está o securitarismo (direito penal máximo); por outro lado, quando são afirmados, valorizados e garantidos os direitos individuais, tem-se vivo o garantismo (direito penal mínimo).
Nesta situação de embate de forças, a nova criminologia administrativa, de viés evidentemente securitário, reforça o poder estatal de intervenção na autonomia privada, que tende a ser ainda mais opressiva (seletiva) aos grupos vulneráveis, motiva seus “batalhões de choque” contra uma população, social, étnica e economicamente já sofrida e cria zonas de exclusão de violência em favor das elites dominantes.
A “domesticação” do “diferente” e sua integração ao rebanho conformista é o objetivo fundamental da teoria em análise. Caso esta mutação não ocorra rapidamente, este indesejável ficará “enjaulado” pelo máximo de tempo possível ou será executado “para o bem da boa sociedade”.
Há uma gestão atuarial do indivíduo que é transformado e identificado por números e dados estatísticos e tratado pelo Estado conforme as probabilidades dos potenciais riscos que pode causar à sociedade.
Considerando que a nova criminologia administrativa pugna pela prevalência das condições pessoais do autor do delito sobre a relevância dos fatos por ele cometidos, pode-se dizer que se trata de uma teoria que se vale do chamado direito penal do autor, embora a teoria moderna do direito penal sustente que o objeto de análise e julgamento não é o homem, mas sim a conduta típica por ele praticada (direito penal do fato).
Verifica-se, portanto, que a nova criminologia administrativa possibilita que o Estado segregue duramente os “desviantes”, encarcerando-os sem qualquer perspectiva de respeito como ser humano, higienizando a sociedade dos males e dos inimigos eleitos, vivificando o homo sacer da Antiga Roma. Pode-se dizer que no Brasil, para a teoria em comento, os reincidentes são os inimigos a serem eliminados da sociedade.
A nova criminologia administrativa, como amplamente demonstrado, é uma teoria de caráter securitário que provoca graves restrições aos direitos e garantias fundamentais, revelando-se de difícil aplicação plena nos verdadeiros Estados Democráticos de Direito. Entretanto, considerando a crescente onda punitivista, a demonização dos direitos de defesa e as políticas públicas do espetáculo, pode ser que a nova criminologia administrativa, ainda mais dura, agressiva e cruel, sob algum novo rótulo publicitário, talvez até cunhado pela própria mass media, seja a nova “redescoberta” do século XXI.
[1] Termo cunhado por Pierre Bourdieu na entrevista a R. P. Droit e T. Fereczi publicada no Le Monde, em 14 de janeiro de 1992, que em 1998 foi objeto de compilação na obra Confre-feux: propos pour servir à la resistance contre l'invasion néo-libérale, Líber Edítion, Paris, traduzida para o português por Lucy Magalhães, Jorge Zahad Editor. Acessível em http://migre.me/d1joR
[2] “(...) o previdenciarismo penal se voltava aos problemas do desajustamento individual, altamente concentrados nos setores mais pobres da população, e eram por ele atribuídos à pobreza, à socialização deficiente e à privação social. Os problemas com os quais ele lidava eram, em outras palavras, as patologias clássicas da sociedade de classes industrializada e desigual.(...)” A Cultura do Controle, David Garland, Editora Revan, p. 119, Coleção Pensamento Criminológico, tradução, apresentação e notas André Nascimento.
[3] Dados estatíticos obtidos no site da European Commison.
[4] Siginifica “nada funciona”. Artigo intitulado What works? - questions and answers about prision reform - Acessível em http://pt.scribd.com/doc/58100576/MARTINSON-What-Works-Questions-and-Answers-About-Prison-Reform
[5] Principalmente após a malfadada experiência nazista no contexto jurídico alemão.
Conjur
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