terça-feira, 27 de maio de 2014

Especialistas questionam droga que promete ‘apagar’ más lembranças

  • Vítima de experiência traumática diz que memórias do passado enriquecem o presente




Cecília Coimbra, que foi presa e torturada ao longo de três anos e meio na ditadura, critica a ideia de suprimir as más lembranças
Foto: Pedro Kirilos
Cecília Coimbra, que foi presa e torturada ao longo de três anos e meio na ditadura, critica a ideia de suprimir as más lembranças Pedro Kirilos
RIO - A profecia vem desde, pelo menos, a década de 1930, quando o escritor inglês Aldous Huxley prenunciou, no clássico “Admirável mundo novo”, o soma, a droga do esquecimento e do prazer sem fim. Agora, um estudo publicado na revista “Nature Neuroscience” revela que estamos cada vez mais perto de desenvolver a pílula capaz de eliminar - ou, ao menos, reinterpretar - lembranças de acidentes, guerras, torturas e frustrações, episódios que podem perdurar na memória e prejudicar indivíduos por toda a vida. Os principais beneficiados, segundo cientistas, seriam os que sofrem de estresse pós-traumático. Mas o tema, adorado pela ficção científica, não passa despercebido, e não são poucos os críticos que levantam a questão: as memórias deveriam ser manipuladas?
É assim também no filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Clementine (Kate Winslet) decide esquecer Joel (Jim Carrey) e, para isso, submete-se a um tratamento experimental que apaga totalmente a memória de quando estiveram juntos. A simples sugestão de algo assim é bombardeada por gente como a psicanalista e filósofa Viviane Mosé.
- O ser humano contemporâneo tem tantas ferramentas tecnológicas que perdeu a noção de humanidade. Esquece que o sofrimento é o motor do desenvolvimento humano - ela comenta. - As medicações são eficientes, mas estão diminuindo nossa força de romper nossos limites. O sofrimento deve ser vencido, ele se transforma em ação.
É o que também defende Cecília Coimbra, de 73 anos, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Era estudante quando foi presa em 28 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro. Na época, tinha um filho de 3 anos. Foi torturada e sofreu abusos sexuais. No auge da crueldade, com o corpo nu e amarrado em uma cadeira, foi exposta a um filhote de jacaré, que percorreu sua pele. Esse cenário de horror fez parte de sua vida por três meses e meio.
- São momentos que nunca vou esquecer. As marcas ficam para toda a história - confessa. - Dois anos depois, fiquei grávida. Foi uma gestação terrível. Tinha muitos pesadelos, e todas aquelas cenas sempre voltavam. Comecei a fazer análise, mas não adiantava.
Após 15 anos, ela decidiu contar sua história por meio do grupo Tortura Nunca Mais, da qual é uma das fundadoras e vice-presidente. Foi quando a dor começou a ser amenizada.
- Percebi que fui para outro patamar. Eu saí daquela situação de vítima para a de sobrevivente, que usa a sua dor para batalhar - afirma. - Encarar a dor de frente é muito mais aconselhável do que ficar se martirizando dentro de quatro paredes de um consultório. Sem minhas lembranças, seria uma pessoa mais pobre. Acho que minha vida enriqueceu muito com essa experiência.
Para o neurocientista da UFRJ Stevens Rehen, a ciência traz questões éticas interessantes.
- O avanço científico traz quebras de paradigmas, ele desafia a forma vigente de pensar. E a população vai decidir até onde a ciência vai - pondera. - Imagine um soldado de guerra. Se seu trauma fosse apagado, estaria limpo para ir novamente a outra guerra sem problema. Mas este seria um uso muito sombrio da droga, perto da ficção.
Segundo especialistas, a pesquisa não é tão tenebrosa como prenunciava “Admirável Mundo Novo”. A substância usada no estudo é a fingolimod, já aprovada pela FDA (a agência reguladora de remédios dos Estados Unidos) e empregada no tratamento de esclerose múltipla reincidente. Desta vez, ela foi testada com outro fim. Pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade da Comunidade de Virgínia experimentaram o produto em camundongos submetidos a eventos traumáticos. Nos testes, o animal entrava numa câmara onde levava choques sem grande voltagem. Em seguida, após tomar a droga, ele voltava à mesma câmera, evidenciando que havia se esquecido de associá-la às dores da carga elétrica.
Os neurocientistas esperam que a droga possa, no futuro, servir para eliminar lembranças traumáticas de uma pessoa, num processo conhecido como a “extinção do medo”. Há tempos, procura-se uma forma de supressão de memórias sem efeitos colaterais no sistema imunológico. Anos atrás, esperanças foram depositadas na enzima histona deacetilase (HDAC), mas, enquanto alguns dos experimentos suprimiam as lembranças, outros as amplificavam. A equipe de cientistas acredita que o uso da fingolimod é capaz de induzir à extinção da memória sem alterações no sistema imune.
Martin Cammarota, professor de Psicofarmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisador do Instituto do Cérebro elogia a descoberta de uma aplicação inesperada para a droga a partir de um mecanismo já conhecido. Mas é cético sobre seu uso.
- O desenvolvimento farmacológico que trate de lembranças indesejadas talvez leve mais tempo e talvez nunca aconteça da maneira como se imagina ou da forma como se é colocado no cinema ou na literatura - comenta. - O que pode ocorrer é a droga ajudar na reinterpretação da memória.
Em vez de apagar, ressignificar
Para explicar, ele cita o exemplo de uma relação amorosa em que ocorre uma traição. A ideia que se tem, ele diz, é chegar ao dia em que a droga poderia simplesmente apagar a má lembrança da memória do outro. Mas ele defende que o ideal, em vez disso, não seria apagá-la. A droga poderia, isso sim, torná-la menos dolorosa ou incapacitante. Seria como se Clementine se lembrasse de Joel, mas sem o peso traumático da relação. Afinal, o cientista explica que é quase impossível esquecer algo seletivamente. Ou seja, a memória da traição não existe sozinha, mas junto a outros sentimentos e lembranças do namoro.
Um dos principais estudiosos da memória no Brasil, o pesquisador Ivan Izquierdo também tranquiliza.
- O artigo é incompleto. Faltou a análise em camundongos normais. O experimento foi feito em animais com déficit imunológico muito grande, mais suscetíveis à extinção da memória. Não sabemos se isso ocorreria em camundongos normais - analisa, decretando: - Já não se procura mais a deleção da memória, isso é uma loucura, algo eticamente indesejável.


O Globo

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