(Trecho extraído da obra: Sentença Penal e Dosimetria da Pena – Teoria e Prática – Cláudio Mendes Júnior)
O homem, ser gregário por natureza, vive em contínua interação com seus semelhantes num processo constante e dinâmico em que os conflitos necessariamente advêm como consequência das naturais discordâncias de posicionamentos nos diversos setores da vida e consequente tentativa de imposição ao próximo das medidas que a cada um parecem justas.
É inerente ao homem a ideia de punir para restabelecer a harmonia e a ordem eventualmente alteradas por ato de outrem. Seja no âmbito familiar, religioso, político ou social, o desvio das condutas tidas por padrão, desde sempre ensejou a aplicação de medidas correicionais.
Nos primórdios quando o homem ainda vivia em estado evolutivo comparável ao dos selvagens, as divergências humanas eram solucionadas caso a caso pelos próprios envolvidos na disputa, prevalecendo o status do mais forte em detrimento do mais fraco.
Era o estágio inicial da autotutela. Não havia ainda o Estado. Vigia a lei do mais forte. A vingança privada muito bem sintetizada na expressão “quem com ferro fere com ferro será ferido”, era o instrumento de solução das lides interindividuais. Em momento posterior passou-se da vingança privada na qual os instrumentos de punição e restabelecimento da normalidade alterada eram impostos caso a caso ao alvedrio do mais forte,
à coletiva ou pública1 onde paulatinamente o direito de aplicação de punições fora transplantado para o chefe do clã, ou tribo, formando-se assim, o embrião do que seria o sistema punitivo do Estado. Aquele membro do clã que cometesse alguma conduta discrepante do código de normas da comunidade sofreria as consequências do seu ato na medida em que estaria sujeito à imposição de penalidades, que variavam em quantidade e qualidade em cada núcleo humano. Neste momento ainda prevalece um estágio pré-civilizado, onde predominam imposições de ordem moral tais como os tabus e totens, diferenciando-se do sistema de autotutela anterior pela maior organização do infligimento da pena bem como pela transferência do poder de punir que sai das mãos do particular para encontrar ancoradouro e fundamento de validade na aceitação de toda a coletividade, abandonando o individualismo da vingança privada na qual a própria pena era escolhida e aquilatada pela vítima.
Era a vítima que imprimia o castigo e sua quantidade, não havendo qualquer segurança jurídica para o agressor punido nem qualquer preocupação com segurança jurídica sob o ponto de vista social; todos eram vítimas e carrascos em potencial, uns dos outros. Esse modelo de controle era caótico, anarquizado e desorganizado.
A história humana demonstra que onde há pessoa humana há sociedade e necessariamente haverá meios de contenção de condutas, sejam estes manejados pelos próprios atores da vida em sociedade, como o era na autotutela e no dente por dente, sejam por uma instituição adrede criada com este fim (Estado)2.
A sua condição de ser sociável por natureza, impõe ao homem a aceitação de limites sem os quais prevaleceriam o caos e o anarquismo. Surge com o crescimento populacional e o desenvolvimento sociopolitico-econômico uma comunidade com extensa gama de situações empíricas que impõe a cada individuo o respeito ao direito do outro. Nasce daí a necessidade do estabelecimento de limites à atividade individual em respeito a direitos do outro. A necessidade de organização da atividade punitiva com a padronização das condutas aceitas pelo corpo social e repressão àquelas que não se coadunem com o sentimento coletivo.
Sem enveredar na discussão teórico-filosófica concernente às diversas teorias que buscam fundamentar e descrever a origem do Estado como ente político capaz de agregar todo o poder que emerge das individualidades, importa esclarecer que, como instituição dotada de poder de coerção, o Estado surgiu como necessidade do estágio de desenvolvimento no qual o homem se encontrava, decorrente de natural e paulatina imposição de fatores variados de ordem sociopolítico-econômicos, e passou a concentrar todo o poder-direito de punir, exercendo o que Max Weber nominou ‘monopólio legítimo da força’, substituindo-se ao particular e subtraindo-lhe, definitiva e quase completamente, o direto de fazer justiça com suas próprias mãos.
A pena nesta fase inicial justifica-se pela necessidade de o Estado reorganizar (ou rearmonizar) o sistema social que foi seriamente afetado com a conduta de um de seus súditos. Conduta esta que se reveste decerta gravidade e afeta seriamente ao direito de outrem e de forma indireta o próprio Estado como mantenedor da paz social. Ao passo em que o Estado confiscou o direito de punir com exclusividade retirando-o dos particulares individualmente, passou a proibi-los de fazê-lo salvo em situações de extremada excepcionalidade, tal como na legítima defesa e estado de necessidade. No sistema estatal de aplicação de penas acresce-se a característica marcante da coercitividade, consistente no poder de impor a sanção ao cidadão sem permitir que este se insurja uma vez que esse poder punitivo se legitima a partir da própria autorização prévia de toda a sociedade da qual ele mesmo faz parte.
É verdade que esta legitimação nem sempre foi decorrente da vontade popular, como se dá na maioria dos casos, modernamente. Ao longo da história observamos que o poder do soberano justificou-se ora por estar associado a uma divindade capaz de distribuir benesses e punições, momento no qual o próprio soberano era alçado à condição de representante terreno da divindade (teocratismo), ora, como ocorria nos Estados absolutos, os poderes convergiam às mãos do governante sem qualquer legitimação popular impondo-se pela força.
Com o advento da independência dos Estados Unidos da América e da Revolução Francesa, uma nova fisionomia de Estado surge no cenário internacional, assumindo ares de democracia tendo como elemento justificador do poder a vontade popular, isto é, o poder como emergente do povo. Toda essa evolução demorou séculos, mas dois momentos merecem maior enfoque neste ensejo.
O primeiro deles foi a idade média, conhecida por alguns historiadores como idade das trevas. Os Estados nacionais criados a partir da organização feudal eram governados por soberanos absolutistas, isto é, que acumulavam em suas mãos todo o poder. O grande ícone deste momento político foi o rei Luís XIV da França, que teria cunhado a expressão “L’État c’est moi” (O Estado sou eu), que retrata bem o momento de repressão absolutista vivido naquela sociedade. O outro momento que significou um marco em todos os segmentos foi o surgimento do movimento iluminista que trouxe ao cenário pensamentos de ordem liberal em todas as áreas do conhecimento e influenciou movimentos de cunho democrático como a independência das colônias inglesas na América (1776) e a Revolução Francesa (1789).
À medida que se modificou a formatação política do Estado desde as trevas da idade média até às luzes da modernidade e os dias atuais, a pena como injunção e manifestação de seu poder punitivo, foi ganhando contornos diferentes, retratadores do momento histórico vivenciado, moldando-se inclusive por força de vetores de ordem macroeconômica.
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NOTAS:
[1] Optei pela expressão ‘coletiva’ uma vez que ‘pública’ pode dar a falsa ideia de que naquele estágio do desenvolvimento humano já se estabelecia a distinção entre público (interesse coletivo) e privado (interesse individual).
[2] É de Ulpiano a máxima: “ ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus”, que significa, onde está o homem, aí está a sociedade; onde está a sociedade, aí está o direito.
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