domingo, 6 de julho de 2014

O interrogatório do réu no processo criminal eleitoral

Hoje, 06-07, se inicia o processo eleitoral propriamente dito, período crítico da campanha eleitoral, no qual, a partir daí, resta autorizada a efetiva propaganda, hábil a angariar a simpatia do eleitorado.
A legislação eleitoral, seja cível ou criminal, regula, à exaustão, a matéria envolta à propaganda eleitoral, disciplinando sua consecução, vedando modalidades, assim como imputando sanções ao descumprimento dos preceitos relativos à temática. De igual sorte, além disso, dentre outras tantas disposições, há várias vedações previstas na legislação regente, ilícitos eleitorais atentatórios à lisura das eleições, à legitimidade do processo eleitoral, à liberdade do voto do eleitor, etc., os quais, inclusive, poderão ensejar a cassação dos registros de candidatura (Lei n°. 9.505/97, arts. 30-A, 41-A, 73, 74, 77; Lei Complementar n°.64/90, art. 22; etc.).
Pois bem. Nada obstante, o tema da nossa primeira coluna não recairá, pois, sobre o direito eleitoral em si, mas sim sobre o processo, em específico, criminal eleitoral (afinal, adequemo-nos, pois, a própria realidade deste importante grupo).
Matéria ainda candente no âmbito do contencioso eleitoral, em específico nas lides criminais eleitorais, é a adoção do rito processual competente à persecução criminal eleitoral.
Muitos juízos zonais eleitorais (primeira instância nas eleições municipais), assim como Tribunais Regionais, ao se defrontarem com eventual acusação, entendem por bem, tudo em prol da especialidade, adotar o rito processual estatuído no Código Eleitoral, o qual prevê o interrogatório dos acusados logo no início do procedimento. Nesse viés, portanto, o rito processual previsto na legislação especial preponderaria em relação à lei geral.
A título de ilustração:
EMENTA: [...]. Preliminar de cerceamento de defesa pela ausência de interrogatório ao final da instrução. Rejeitada. O processo por crimes eleitorais segue rito especial previsto no Código Eleitoral. Aplicação do CPP de forma apenas subsidiária. Art. 364, CE. Não incidência das modificações implementadas pela Lei n. 11.719/2008. [...]. Impossibilidade de reconhecimento de nulidade. (RECURSO CRIMINAL nº 12158, Acórdão de 13/03/2012, Relator (a) LUCIANA DINIZ NEPOMUCENO, Publicação: DJEMG – Diário de Justiça Eletrônico-TREMG, Data 22/03/2012).
Vejamos, pois bem, a legislação de regência:
O Código Eleitoral (Lei n°. 4.737/65) prevê, no correspondente artigo 357, que, uma vez – supostamente – verificada a infração penal, em não sendo caso de arquivamento ou de diligências, “o Ministério Público oferecerá a denúncia dentro do prazo de 10 (dez) dias”.
Já o caput do artigo 359 correspondente é claro no sentido de que, uma vez recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para o interrogatório.
Dada a relevância para o presente ensaio, vale, inclusive, transcrever, na íntegra, o dispositivo legal precitado, senão vejamos:
“Art. 359. Recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para o depoimento pessoal do acusado, ordenando a citação deste e a notificação do Ministério Público”.
O ato do interrogatório, assim, não obstante seja ato de defesa (pessoal), no procedimento trazido a partir do Códex, deverá (deveria) ser tomado logo no início do processo, antes mesmo da apresentação das alegações escritas (parágrafo único do artigo 359 do Código Eleitoral). E tal procedimento, à luz do princípio da especialidade, tem sido seguido, e muito, por juízos eleitorais Brasil afora.
Contudo, não assiste razão, e é no contraponto que (mais uma vez) viremos a apresentar que recairá o objeto da presente construção.
O interrogatório do réu se mostra como um importantíssimo instrumento de defesa do acusado, consubstanciando-se em um eficaz mecanismo hábil a garantir o exercício do sagrado direito à defesa, na plenitude constitucional.
Sobre o ato, importante trazer as lições de AURY LOPES JR[1], para quem  a defesa pessoal é a possibilidade de o sujeito passivo resistir pessoalmente à pretensão acusatória, seja através de atuações positivas ou negativas.
Em sendo ato de defesa, por oportuno, não poderia, dessa forma, ser tomado logo no início do processo, sem sequer ter havido a possibilidade de o acusado apresentar as correspondentes alegações escritas (defesa escrita), tampouco analisar, ainda que de forma superficial, os argumentos e as provas acusatórias.
Em recente precedente, tido como leading case, a Suprema Corte, por unanimidade, considerou que a transferência deste importante instituto de defesa para a fase posterior à instrução probatória, constitui-se mecanismo mais eficaz para garantia da ampla defesa (Agravo Regimental na Ação Penal n. 528), cuja pertinência inerente ao decisum, a partir do voto condutor de lavra do Ministro ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI, faz valer a transcrição:
“[...] a realização do interrogatório do acusado como o ato final da fase instrutória permitirá a ele ter, digamos, um panorama geral, uma visão global de todas as provas até então produzidas nos autos, quer aquelas que o favorecem, que aquelas que o incriminam, uma vez que ele, ao contrário do que hoje sucede – hoje, o interrogatório como sendo um ato que precede a própria instrução probatória muitas vezes não permite ao réu que apresente elementos de defesa que possam suportar aquela versão que ele pretende transmitir ao juízo processante -, com a nova disciplina ritual e tendo lugar na última fase da instrução [...]”.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu, como se vê, o avanço trazido pela Lei n. 11.719/2008, tudo ao prever, no artigo 400 do Código de Processo Penal, o interrogatório do réu ao final da instrução processual, de modo a garantir a ampla defesa de forma plena.

A mesma Corte (STF), analisando situação idêntica a que aqui se discute, nos autos do Habeas Corpus n°. 107795/SP, a partir de magistral voto do Eminente Ministro CELSO DE MELLO, reafirmou o entendimento e, ainda, o impôs ao âmbito do processo criminal eleitoral; vejamos a ementa do respeitável Julgado:

EMENTA: CRIME ELEITORAL. PROCEDIMENTO PENAL DEFINIDO PELO PRÓPRIO CÓDIGO ELEITORAL (“LEX SPECIALIS”). PRETENDIDA OBSERVÂNCIA DO NOVOITER PROCEDIMENTAL ESTABELECIDO PELA REFORMA PROCESSUAL PENAL DE 2008, QUE INTRODUZIU ALTERAÇÕES NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (“LEX GENERALIS”). ANTINOMIA MERAMENTE APARENTE, PORQUE SUPERÁVEL MEDIANTE APLICAÇÃO DO CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE (“LEX SPECIALIS DEROGAT LEGI GENERALI”). CONCEPÇÃO ORTODOXA QUE PREVALECE, ORDINARIAMENTE, NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS ANTINÔMICOS QUE OPÕEM LEIS DE CARÁTER GERAL ÀQUELAS DE CONTEÚDO ESPECIAL. PRETENDIDA UTILIZAÇÃO DE FATOR DIVERSODE SUPERAÇÃO DESSA ESPECÍFICA ANTINOMIA DE PRIMEIRO GRAU, MEDIANTE OPÇÃO HERMENÊUTICA QUE SE MOSTRA MAIS COMPATÍVEL COM OSPOSTULADOS QUE INFORMAM O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE DEFESA. VALIOSO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (AP 528-AgR/DF, REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI). NOVA ORDEM RITUAL QUE, POR REVELAR-SE MAIS FAVORÁVEL AO ACUSADO (CPP, ARTS. 396 E 396-A, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.719/2008), DEVERIA REGER O PROCEDIMENTO PENAL, NÃO OBSTANTE DISCIPLINADO EM LEGISLAÇÃO ESPECIAL, NOS CASOS DE CRIME ELEITORAL. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DESSA POSTULAÇÃO. OCORRÊNCIA DE “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
Verdadeiramente, o artigo 400 do Código de Processo Penal traz regra procedimental penal, consubstanciada no sentido de possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, após a inquirição das testemunhas, bem como após a produção de outras provas e eventuais diligências diversas, e tudo a possibilitar a mais ampla defesa do acusado à luz da Lei das Leis, Carta-Mãe que a todos submete, sem distinções.
Ora, tal procedimento merece aplicação às demais lides penais (dentre elas, a criminal eleitoral), de modo a harmonizar, assim, eventuais procedimentos especiais com a regra geral, de modo a potencializar, ao final, a maior concretização dos direitos fundamentais.
Foi, por exemplo, na esteira do que defendemos, o entendimento do Egrégio Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul que, nos autos do Habeas Corpus n°. 12-875, originário do município de Bagé-RS, por maioria de votos, assim decidiu, in verbis:
Habeas corpus, com pedido de liminar. Impetração que visa a suspender a audiência destinada ao interrogatório do paciente, porquanto adotado o rito do Código Eleitoral, que prevê o interrogatório dos acusados no início do procedimento, contrariando o disposto no art. 400 do Código de Processo Penal. Pleito liminar deferido. Não se discute a existência de norma especial contida no Código Eleitoral, todavia, buscando dar maior concretização aos direitos fundamentais, necessária a harmonização desta com a norma geral, contida no Código de Processo Penal. O interrogatório deve ser realizado ao final da instrução, em observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Concessão da ordem
Considerando que estamos a tratar, na espécie, de um processo criminal (eleitoral), bem como que o Código Eleitoral remonta à década de 60, em prol das garantias fundamentais insculpidas na Carta de 88, merece atenção à regra contida no já citado artigo 400 do CPP, na qual o interrogatório do réu, como meio de defesa que é, deva ser tomado ao final da instrução processual, de forma a garantir, nesse viés, o amplo e pleno exercício do direito de defesa.
Não se desconhece a regra contida na legislação especial. No entanto, pensamos que a melhor interpretação é a aqui defendida, tudo com o fim de potencializar, ao máximo, e à luz da própria ordem constitucional vigente, os direitos dos acusados, merecendo, assim, à luz do que dispõe o artigo 400 do Código de Processo Penal, ser aplicada a regra geral processual, no sentido de que o interrogatório do acusado se dê como ato último da instrução processual, tudo em prol da ampla defesa e do contraditório, com vistas a se efetivar, no plano prático, material, o devido e democrático processo criminal eleitoral.





[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 10ª ed., Saraiva, Porto Alegre, 2013. p. 558-560.



Porto Alegre, 06 de julho de 2014.

Dr. Guilherme Rodrigues Carvalho Barcelos (Guilherme Barcelos) é Advogado em Porto Alegre/RS, Militante no Direito Eleitoral. Pós Graduado em Direito Eleitoral. Autor de artigos jurídicos publicados em diversos meios (Revista do TSE, inclusive)

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