terça-feira, 5 de agosto de 2014

Dois cafés e a conta com Maria Nazaré


Catadora de lixo ficou 30 anos sem estudar e enfrentou depressão e problemas físicos até chegar à faculdade de Direito

Maria Nazaré: "Aprendi a não me colocar barreiras e a saber que nunca é tarde para mudar de vida" - Mauro Ventura / O GLOBO

Entre os alunos que começam amanhã o curso de Direito da UFF está Maria Nazaré dos Santos. Ela foge ao perfil tradicional de seus colegas. A começar pela idade, 55 anos. Depois, pela profissão: é catadora de lixo. Nascida em Viçosa (MG), filha de lavradores, foi cedo com a avó materna para Volta Redonda, após a separação dos pais — ele ficou em Minas e a mãe foi ser empregada doméstica no Rio. Aos 16 anos, foi a vez de Nazaré virar doméstica, e também babá. Morou em Barra do Piraí, Barra Mansa, Angra dos Reis, Praia Grande (SP), no Rio e, de novo, em Volta Redonda, onde vive até hoje, no morro de Belo Horizonte. É no campus da cidade que ela vai estudar. Uma das coordenadoras do movimento nacional de catadores de lixo, tirou boa nota no Enem e entrou pelo sistema de cotas. Ficou indecisa entre Psicologia e Direito. “Gosto muito de estudar a mente humana. Mas optei por brigar pela minha profissão. Os catadores têm muitos direitos conquistados que não são aplicados.” Retomar os estudos, já mais velha, lhe permitiu assinar a carteira de trabalho pela primeira vez na vida. Nazaré acredita que vai encontrar um ambiente bom na universidade. “Tenho facilidade de relacionamento.”

REVISTA O GLOBO: Por que a faculdade só agora, aos 55 anos?

MARIA NAZARÉ DOS SANTOS: Parei de estudar aos 16 anos, por causa de meu trabalho como babá e empregada doméstica. Comecei a repetir de ano e acabei interrompendo na sexta série do Ensino Médio. Tempos depois, tive depressão e fiquei também sem trabalhar. Não tinha condições de cuidar de crianças. As pessoas não entendem a depressão como doença, mas perdi de oito a dez anos da minha vida por causa dela. Nas crises, tinha mania de andar sem rumo. Queria ficar perto de mais gente, então passei a fazer os cursinhos que via na rua: de garçom, costureira, salgadeira, serigrafia. Um dia, vi uma clínica gratuita da prefeitura. Lá, fiz terapia de grupo, me consultei com psiquiatra. Era um tratamento pesado, piorei, parei com os remédios, comecei a reagir. Voltei a trabalhar, fui auxiliar de limpeza, recepcionista em academia de ginástica.

E como você virou catadora de lixo?

Nessas andanças pela rua, eu via que os catadores recolhiam material, vendiam e usavam o dinheiro para beber e comprar drogas. E aí, na clínica, encontrava essas mesmas pessoas internadas por causa da bebida e das drogas. Pensei: “Por que não vou reciclar e, em vez de gastar como eles, uso para me sustentar?” Uma vizinha catadora me levou um dia com ela, em 2001. Fui com uma vergonha danada. Catação na época era mal vista, mexer com isso era encarado com nojo. Durante três meses, eu revirei lixo, mexia em latão, mas não gostava. Sugeri então aos moradores da comunidade que pegassem o lixo que produziam, fizessem uma coleta seletiva e me entregassem. Ganhamos todos, porque as enchentes da região diminuíram.

Quando você retomou os estudos?

Em 2006, após 30 anos afastada. Voltei a estudar estimulada por um amigo, que dizia que eu tinha potencial. Fiz Educação para Jovens e Adultos (antigo supletivo). Tive que recomeçar desde o Ensino Fundamental. Terminei o Ensino Médio em 2010. Em 2011 e 2012 fiquei de novo sem estudar, porque estava montando uma cooperativa de catadores. Até que em 2013 veio o Enem e resolvi tentar. Achei que não tinha passado, afinal estava há dois anos parada. E estudei sozinha, já que não tinha dinheiro para cursinho. Lia nas horas vagas, das 23h à 1h. E às 6h já estava de pé para trabalhar. No meio da reciclagem achava muitos livros em boas condições, didáticos ou não. Para quem queria aprender, como eu, era o paraíso.

Foram mais de 30 anos sem estudar. Foi fácil fazer a prova?

Não. Tenho problema de tiroide e fiz a prova em plena crise. Fiquei toda desregulada. Minha concentração estava horrível, tinha insônia, dores nos rins, picos de pressão, colesterol alto, anemia. E minha vista está péssima, só enxergo de longe. Para estudar, tinha que afastar os textos do rosto. Estava sem tempo para cuidar disso, mas agora, com a faculdade, vou fazer os óculos. Minha maior preocupação é conciliar trabalho e estudo, a essa altura da vida. Mas vou me formar, amo desafios. Não entro numa luta para perder. Aprendi a não me colocar barreiras e a saber que nunca é tarde para mudar de vida.


O GLOBO

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