quinta-feira, 21 de setembro de 2017

(DES)CONSTRUINDO DIREITO (SOBRE A DECISÃO DO JUIZ DA 14ª VARA CÍVEL DO DF)

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Na última sexta (15/09), uma decisão liminar movimentou as redes sociais. Fruto da Ação Popular movida por uma psicóloga, a qual versa sobre a suspensão da Resolução 01/99, ditada pelo Conselho Federal de Psicologia, a mencionada decisão repercutiu nos vários meios e foi alvo de todos os tipos de opiniões. A referida resolução tem por objeto a orientação sexual e a não patologização de “comportamentos ou práticas homoeróticas”, além disso, os psicólogos não poderão adotar “ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”.

A decisão, em si, não menciona o termo “cura gay”. Entretanto, precisamos fazer algumas considerações relevantes. Primeiro, faremos uma observação.

Você sabe a diferença entre identidade de gênero, orientação sexual e sexo biológico? Explico.

1. Orientação Sexual
Não é o mesmo que opção sexual, diz respeito ao que a pessoa se inclina afetivamente, amorosamente e sexualmente. Qual gênero atrai a pessoa (homossexuais, heterossexuais, bissexuais, assexuais, pansexuais). A sexualidade não se constrói socialmente, gênero sim.

2. Identidade de Gênero
Propôe-se fugir do binarismo (homem-mulher). Está relacionada à imagem que a pessoa tem de si mesma, o gênero o qual ela enxerga como fazendo parte. Há pessoas com mais de um gênero, como os transgêneros.

3. Sexo Biológico
Combinação da genitália com os cromossomos (macho, fêmea, ou intersexual).

Dito isso, vamos à análise da decisão. Quero destacar que o magistrado não disse que homossexualismo é doença, ou defendeu a denominada “cura gay”, nem derrubou a Resolução do Conselho Federal de Psicologia. Inclusive, em sua fundamentação (que não foi tão bem fundamentada, diga-se), adotou o posicionamento da Organização Mundial de Saúde (OMS), no qual é atribuído que “a homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade humana, não podendo ser, portanto, considerada como condição patológica". E não é possível se tratar aquilo que não é doença (provavelmente, um homossexual que queira modificar sua condição, sofrerá muito psicologicamente, e não conseguirá mudar).

O alarde da decisão foi exatamente a contradição entre a fundamentação (que trata o homossexualismo como condição não patológica) e o dispositivo da mesma decisão, no qual o juiz permite clinicar/atender com o objetivo de realizar a reorientação sexual. Tomando de assalto o posicionamento de um colega da área, digo: mas a reorientação não é a patologização das sexualidades não heteronormativas (conceito que, apenas, relacionamentos entre pessoas de sexos opostos ou heterossexuais são normais ou corretos)? Quantos héteros procuram tratamento para deixarem de ser hétero? Ser heterossexual é o aceitável, ou seja, a pessoa heterossexual é aceita sexualmente só por sua condição. Essa condição é normalizada pela sociedade.

Não foi pelas palavras não ditas que a decisão do juiz se tornou, além de contraditória, passível de crítica, é o que ela permite no final. A resolução não é contra o estudo científico da reorientação sexual, desde que seja para afastar o preconceito e “desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”.

O dispositivo da decisão traz uma carga que permite entendermos que oferecer terapia de reorientação não patologiza (toma como doença) as sexualidades não normativas (Homo, bi, etc), além disso, configura a homossexualidade como patológica (já que seria, para a psicóloga autora da Ação Popular, algo a ser tratado e de caráter reversível). É uma pseudoterapia, e digo “pseudo” (falso) porque não se pode reverter uma condição inerente à pessoa (por isso, reitero, ninguém se trata por ser hétero). Pessoas que não se aceitam vão se machucar mais ainda por acreditarem que seu sofrimento de não aceitação (por motivo social/religioso, que seja) pode ter fim com um tratamento que não corresponde à realidade.

O significado da decisão é o que fica, o juiz, em sua fundamentação, não foi homofóbico, ou identificou as sexualidades heteronormativas como patológicas. Mas, em seu dispositivo, permitiu a patologização (que fosse considerado doença), por meio de pseudoterapias de reversão de sexo. Digo que são pseudocientíficas já que é considerado pelo próprio CFP como “charlatanismo”, ou “balela”. E, acredito que, por falta de apuração técnica a respeito de alguns termos, o juiz não se atentou para a representação de sua decisão no mundo social. Tal liminar enfraquece o objetivo da Resolução, a qual visa proteger a sexualidade de cada um de preconceitos e extremismos.

Não se pode comercializar a cura de algo que não é considerado (cientificamente) doença. O ser humano vai violar a sim mesmo, em busca de uma adaptação forçada. Então, sim. Ainda que não fosse intenção do juiz tratar o fornecimento da terapia como tratamento patológico (repito, sexualidade não normativa não é patológica) e permitir o estudo científico da reorientação sexual, as consequências de sua decisão são devastadores e, em termos de estudos científicos, um retrocesso.

Todas as informações do texto (em questão de conceituação de termos e consideração de homossexualismo como não patológico) são fruto de anos de estudos pela área da Psicologia. De acordo com um estudo realizado por Jason Cianciotto e Sean Cahill, é cientificamente consensual que terapias de reorientação sexual são pseudociência*.

O El País, em elaboração de um contexto histórico da Ação Popular, compartilhou a fala da psicóloga quanto à pseudociência de reversão sexual:

Psicóloga de formação e missionária, como define em seu blog, seu registro profissional foi cassado em 2009 porque ela oferecia pseudoterapias para curar a homossexualidade masculina e feminina. Naquele ano, às vésperas de seu julgamento, ela chegou a dizer que pessoas têm atração pelo mesmo sexo "porque foram abusadas na infância e na adolescência e sentiram prazer nisso". Também afirmou que "o movimento pró-homossexualismo tem feito alianças com conselhos de psicologia e quer implantar a ditadura gay no país". Por fim admitiu: "Tenho minha experiência religiosa que eu não nego. Tudo que faço fora do consultório é permeado pelo religioso. Sinto-me direcionada por Deus para ajudar as pessoas que estão homossexuais”.

Não podemos embasar anos de estudo e luta em um argumento que não possui cunho científico, que só demonstra que a bandeira da reorientação sexual é levantada em prol daquilo que a própria Resolução coíbe, o preconceito. Utilizar vertentes religiosas para aquilo que vai contra o que você pensa/gosta é disseminar preconceito. Sem contar que o Brasil é um país laico.  

Por fim, entre ditos e não ditos, precisamos reconhecer que temos muito que avançar, ainda, com relação ao tema. E der que precisamos ler a informação antes de usar argumentos desnecessários e não condizentes com o fato.  






Decisão:
https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2017/09/ATA-DE-AUDI%C3%8ANCIA.pdf

*Fontes: http://www.thetaskforce.org/static_html/downloads/reports/reports/YouthInTheCrosshairs.pdf
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/19/politica/1505853454_712122.html










Karla Alves
Bacharel pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV
Advogada
Membro do Grupo de Pesquisas Direito, Sociedade e Cultura, da Faculdade de
Direito de Vitória – FDV.
Membro do NeCrim (Núcleo de Estudos em Criminologia), ligado ao Grupo de
Pesquisas Direito, Sociedade e Cultura, da Faculdade de Direito de Vitória - FDV


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