quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Tribunal de Justiça absolve comandante do massacre do Carandiru


Por 20 votos a 2, desembargadores “reinterpretaram” a decisão do júri popular, que havia condenado o coronel Ubiratan Guimarães (esq.) em primeira instância a 632 anos de prisão, alegando que a polícia não poderia ter cometido excesso se cumpria estritamente seu dever legal.
SÃO PAULO – Um plenário lotado, muitas pessoas de pé. Sobre a mesa, os 133 volumes com mais de 12 mil páginas do processo que, em primeira instância, por júri popular, resultou na condenação de 632 anos de prisão do coronel Ubiratan Guimarães. No dia 2 de outubro de 1992, ele estava à frente das tropas que invadiram o pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, com o objetivo de conter uma rebelião. O resultado da ação das Tropas de Choque, do Comando de Operações Especiais (COE) e do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE), designadas pelo coronel para a invasão, foi de 111 mortos e dezenas de feridos, naquele que ficou conhecido como o maior massacre em um presídio na história de todo o mundo.

A operação desastrosa gerou repercussões internacionais e diversos relatórios de organizações defensoras dos direitos humanos no exterior. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) determinou, no ano 2000, que o Brasil deveria acabar com a impunidade nesse caso, condenando os responsáveis pelo crime. Único a ser julgado até então, Ubiratan Guimarães aguardava a decisão definitiva da Justiça em liberdade. Nesta quarta-feira (15), o recurso apresentado por sua defesa foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já que o coronel da reserva hoje é deputado estadual. Estavam ali, portanto, reunidos, os desembargadores mais antigos – e em teoria os mais experientes – do estado.

Entre as alegações da defesa, estavam argumentos que questionavam desde a competência do Tribunal para julgar o recurso até a interpretação do júri popular acerca da atitude do acusado, passando por uma longa lista de contradições que supostamente invalidariam o julgamento realizado em 2001. Entre elas, a defesa afirmava, por exemplo, que a decisão dos jurados foi contrária aos fatos apresentados nos autos. “Este julgamento é o paradigma da aberração da decisão de um júri por contradições do processo. Se este julgamento não for anulado, nenhum mais poderá ser”, ameaçou o defensor Vicente Caccione, advogado do réu e também deputado estadual em São Paulo pelo PTB de Ubiratan.

Caccione lembrou que a decisão tomada pelo coronel Ubiratan Guimarães na ação do Carandiru foi consensuada por todas as autoridades presentes e consultadas, com “o respaldo do governador, com apoio do secretário de Segurança Pública, na presença do juiz corregedor, do juiz aposentado e então secretário adjunto de Segurança Pública, e com a complacência de Ismael Pedrosa, diretor do presídio, assassinado recentemente pelo PCC. O coronel Ubiratan é um bode expiatório de um crime pelo qual ninguém ainda foi julgado”, disse. “Não há uma linha nos autos que diga que o coronel tenha dito ou induzido alguém à violência. Se não tivesse invadido o presídio, estaria descumprindo seu dever legal. Um dos peritos disse que, se a polícia não tivesse entrado, os outros dois mil presos teriam morrido intoxicados pelo fogo que queimava”, afirmou.

Alegou ainda ter havido um verdadeiro confronto entre os policiais e os detentos no terceiro andar do pavilhão 9, onde morreu a imensa maioria dos 111 assassinados. “Os presos disseram que queriam enfrentar a polícia. Foram para seus andares, tocaiando os policiais. Se houvesse um ânimo de assassinato pela polícia, todos os 2 mil detidos do Carandiru não estariam vivos. Os que morreram foram os que enfrentaram a polícia, que agiram de forma violenta, de acordo com a prática que tinham em vida. Ali havia 2069 corpos de extrema periculosidade”, acusou o advogado.

Sua principal tese, no entanto, foi a de que o júri popular compreendeu que o coronel Ubiratan não agiu com a intenção de matar, já que afirmou que ele se encontrava no estrito cumprimento de seu dever legal. Esta foi uma das perguntas a que os 7 jurados de 2001 responderam afirmativamente. Eles também afirmaram a inexigibilidade de conduta adversa por parte do coronel, ou seja, que outra atitude do comandante das tropas não era exigida naquela situação. Uma questão posterior, no entanto, foi a responsável pela condenação de Guimarães. A que houve excesso na sua decisão, a principal tese do Ministério Público.

Na argumentação de Caccione, no entanto, este excesso não houve. “Um ou outro policial pode ter se excedido na ação. Estavam num pavilhão escuro com 2069 homens, são seres humanos, estavam com medo, entraram e encontraram tábuas com pregos cheias de sangue, sendo que 22% dos internos são portadores de HIV. Naquele caos, com a cadeia revirada, o que pode ser chamado de excesso? Dois mil presos que saíram ilesos? Isso é excesso?”, questionou. “O mal neste país é querer fazer justiça levado pela pressão social, conduzida pela imprensa. Eu mesmo cheguei a acreditar que tinha havido um massacre no Carandiru. Mas dizer que houve um massacre de cem presos quando a verdade é que a polícia entrou e salvou dois mil?”, disse, reafirmando que não pode haver excesso no cumprimento do dever legal, mas não no estrito cumprimento desse dever. E que, portanto, a última questão não deveria ter sido postada ao júri popular.

A ACUSAÇÃO
O procurador Antonio Visconti rebateu a alegação da acusação explicando que o excesso teria se dado na escolha das tropas por parte do coronel Ubiratan Guimarães, que sabia da violência com que agiam as tropas designadas para a invasão. Tratava-se ali de uma discussão se a entrada dos policiais tinha sido com os meios e as proporções adequadas.

“O 1o Batalhão de Choque, a Rota, o Coe são tropas de confronto, municiadas com armamento de grosso calibre, como metralhadoras e fuzis, porque se destinam ao embate com deliquentes fortemente armados. Mas ali havia presos amotinados, que já tinham jogado as armas brancas pelas janelas. À disposição do coronel havia o 2o e o 3o Batalhão de Choque, que são tropas de contenção, com calibres menores, carabinas, espingardas, com um forte equipamento de proteção e dissuasão, como bombas de gás lacrimogêneo, e com homens treinados à tolerância e a situações criadas pelo oponente que fazem entender que, na algazarra, se vai fazer horrores, o que não é verdade. É tarefa dessas tropas restabelecer a ordem. Sempre deram conta do recado. Por que então a opção por tropas de confronto?”, questionou o procurador. “Quando a opção foi feita, em contrariedade a todas as regras da corporação, o resultado, mais do que previsto, era inevitável. E por isso se seguiu o morticínio e essa tragédia que tanto marcou o país. Pelo tipo de armamento, pelo perfil psicológico escolhido pelo coronel Ubiratan”.

Lembrou também que os disparos que os réus admitem ter dado – há em andamento um processo contra 84 policiais que participaram da ação – é de 244 projéteis. Mas 394 atingiram as vítimas. “Quem age no estrito cumprimento do dever legal tem necessidade de calar a verdade? Se era uma operação necessária, com os meios adequados e empregados proporcionalmente, não teria esse inédito saldo de mortes, e os réus não teriam dificuldade em explicar a conduta de cada um”, afirmou Visconti.

Para a promotoria, não havia dúvida nenhuma de que o que aconteceu naquele dia foi um massacre sob a responsabilidade do coronel Ubiratan. “Os autos evidenciam que o massacre pode ser imputado não apenas no emprego das armas que levaram à carnificina, mas à escolha das tropas. Naquele momento, foi dada a partida para o massacre do Carandiru”, descreveu o Ministério Público, para quem ficou patente o sofisma utilizado pela defesa acerca do termo “estrito”.

O desembargador relator do processo, Mohamed Amaro, e o desembargador revisor, Vallim Belocchi, rejeitaram todas as nulidades alegadas pela defesa de Ubiratan Guimarães. Disseram que a defesa deveria ter apresentado o questionamento sobre a última pergunta feita ao júri popular no momento adequado, e não apenas no recurso judicial.

“A defesa, dando-se inerte, não fez nada. Não é jurídico nem moral ao réu prevalecer agora nulidade para a qual não recorreu. Nem que venha especular com isso e se valer dela neste momento”, disse Amaro. E completou: “Ficou evidenciado que o excesso é caracterizado pelo ordenante desrespeitar todos os códigos de conduta militar para retomar a ordem, visto que os presos tinham entregue as armas e estavam nas celas. Foi portanto uma excessiva violência com um conseqüente massacre deliberado. A decisão foi a única possível e não há que se falar em decisão contrária. Por isso, voto pela manutenção da decisão do júri popular”, declarou.

SURPRESA
Os dois votos proferidos anteriormente, no entanto, não foram seguidos pelos demais 20 desembargadores do Órgão Especial que votaram na sessão desta quarta-feira. Seguindo o voto do desembargador Walter Guilherme, que depois de afirmar que aquele se tratava de um julgamento com pano de fundo político, afirmou que não é possível haver excesso na ordem e nem quando se tem o estrito cumprimento de um dever legal. Que a vontade do júri popular era absolver, portanto, o coronel, e que o julgamento de 2001 deveria ter acabado naquele momento. “Considero, portanto, que o coronel está absolvido”, disse.

Vale lembrar que o desembargador Walter Guilherme também anulou em recurso um caso da Favela Naval, absolvendo policiais condenados em primeira instância. Desta vez, 19 desembargadores o seguiram, reinterpretando a decisão do júri popular e da juíza que conduziu o julgamento há quatro anos.

O comandante das tropas que assassinaram 111 detentos há 14 anos comemorou a decisão, dizendo que sempre acreditou na Justiça e trabalhou para salvar a vida dos demais presos do Carandiru. “Nunca demos ordem para matar, muito pelo contrário. Queríamos salvar aqueles que estavam no meio do fogo e tentar restabelecer a ordem”.

“Disseram que a vontade do júri era absolver, quando a meu ver a vontade do júri era condenar, porque ao final afirmou o excesso da ação”, discordou o procurador Antonio Visconti. “A praga do julgamento ideológico é a responsável pelo resultado de hoje. Há aqueles que, quando se questiona direitos humanos, acham que direitos humanos são para as pessoas de bem e não para os marginais. Então têm uma posição de leniência em relação aos violadores de direitos humanos e grande rigor em relação aos marginais”, disse decepcionado.

“O desembargador relator, que analisou o processo durante longos meses, rebateu todas as preliminares, mantendo o julgamento. O desembargador revisor, que ficou com o processo vários meses, também rejeitou as preliminares. O desembargador Walter Guilherme afirmou em plenário que o julgamento é político e que entende que não ocorre excesso nessas duas causas excludentes: exigibilidade de conduta adversa e estrito cumprimento do dever legal. Portanto ele entende que o excesso não deveria ter sido votado e portanto absolve. Mas essa é uma opinião dele, contrária ao que diz a doutrina”, garante o promotor Felipe Locke Cavalcanti, que atou no 2o Tribunal do Júri, que condenou Guimarães a 632 anos de prisão.

A Procuradoria Geral de Justiça deve entrar com um recurso junto ao Superior Tribunal de Justiça, para desconstituir a decisão desta quarta e afirmar a validade do julgamento de 2001. Caso isso aconteça, e o coronel ainda seja deputado, o processo volta para ser julgado pelo Órgão Especial, que apreciará então a parte final do recurso, que diz que a decisão afrontou inteiramente a prova dos autos. O trâmite pode levar mais de dois anos. Em oito, o crime do qual foi absolvido por enquanto o coronel Ubiratan prescreve. Até lá, o comandante do maior massacre em um presídio do mundo continuará em liberdade.

Fonte:Carta Capital

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