“Tenha cuidado”, disse Elias ao filho Rodrigo, de 17 anos, na noite de sábado, 18 de novembro de 2001. O rapaz estava a caminho da discoteca Weif, em Guarulhos, com a namorada. Na volta da balada, deixou a garota em casa e seguiu caminhando junto com cinco amigos. Quando chegou à avenida Miguel Ackel, no bairro de Vila Isabel, foram chamados por dois jovens para ajudá-los a carregar fios de eletricidade que estavam sendo roubados. Três carros da Polícia Militar surgiram e começaram a persegui-los. Os policiais deram seis tiros. Todos correram. Quatro, para o quintal de uma casa; o quinto escondeu-se debaixo de um carro. O único que não conseguiu escapar foi Rodrigo. Sob os olhares de vizinhos e amigos, foi colocado na caçamba da viatura. Jamais retornou.
“Onde está meu filho?” perguntou-se o pai quando acordou na manhã seguinte. Ele esperou até terça feita, quando saiu a pé para fazer o percurso de sua casa até a discoteca onde o jovem fora na noite de sábado. Ali começava a longa investigação pelo paradeiro de seu filho. A saga de Elias Isac dos Santos durou 11 anos e meio e culminou na condenação, por homicídio e ocultação do cadáver de Rodrigo, de dois dos sete PMs envolvidos no seu desaparecimento.
No dia 3 de abril deste ano, o policial Jair de Almeida Bernardo foi sentenciado a 15 anos de prisão. Em 10 de setembro de 2012, Ricardo Veron Guimarães Júnior já havia sido condenado ao mesmo tempo de reclusão. Nos dois julgamentos, o promotor Marcelo de Oliveira conseguiu convencer os jurados de que, apesar de ser um homicídio sem cadáver, a responsabilidade dos policiais estaria provada pelos seguintes fatores: depoimento de um dos PMs das três viaturas, que viu o vulto de uma pessoa sendo colocada na caçamba de uma das viaturas, depoimentos de uma vizinha do local da ocorrência e de um dos amigos de Rodrigo, além de trechos das gravações das viaturas em conversa com o Copom (Centro de Operações da Polícia Militar).
Para Angela Mendes de Almeida, historiadora e coordenadora do Observatório das Violências Policiais de São Paulo (OVP- SP), a sentença é inédita sob vários pontos de vista. “’Sem cadáver não há crime’ é uma frase que o senhor Elias ouviu constantemente em sua busca por justiça. Assim, já é inédita a condenação de PMs em casos de evidentes execuções sumárias. Os jurados condenaram os dois PMs, mesmo sabendo, e aí está o outro elemento inédito, que o corpo de Rodrigo continua desaparecido”, explica.
Na investigação sobre o paradeiro de Rodrigo, moradores do bairro de Vila Isabel informaram que na madrugada de seu desaparecimento houve uma ação policial, por volta da 1h30, na qual um garoto havia sido detido. “Só podia ser Rodrigo”, pensou Elias. O pai do jovem foi atrás do comandante do 39º Batalhão de Polícia Militar de Guarulhos, sargento Wagner Garcia, que negou a existência de ocorrência envolvendo um jovem naquela noite, conta Elias, sentado no sofá de sua casa, 11 anos e seis meses depois do ocorrido, e segurando uma pilha de documentos obtidos durante sua incessante investigação.
Ainda no fim de 2001, de volta ao bairro onde Rodrigo havia sumido, encontrou o amigo que naquele dia se escondeu embaixo do carro. Ele confirmou que o rapaz detido na noite de sábado era seu filho.
Elias também chegou até uma senhora vizinha do local, que havia acompanhado, de casa, a ação da polícia, que fora levada a cabo na frente de seu portão.
Não havia mais dúvidas. Elias tinha certeza que Rodrigo desaparecera nas mãos de policiais. Foi à delegacia de polícia, onde foi desencorajado a denunciar. “Rasga tudo isso. Se o senhor fizer essa denúncia não vai chegar vivo em casa”, ouviu de um escrivão. Elias foi por mais três vezes ao batalhão da PM falar com o sargento Wagner. Em vão. Ele seguia negando que seu filho fora detido naquela noite. Então, passados dez dias do desaparecimento do rapaz, o pai de Rodrigo prestou queixa à Corregedoria da PM.
Em seguida, Elias iniciou uma jornada de 40 dias em busca do corpo do filho em IMLs (Institutos Médicos Legais) nas cidades vizinhas de Itaquaquecetuba, Poá, Suzano e Franco da Rocha. “Nas vizinhanças, fiquei sabendo onde os PMs faziam a desova dos corpos nas cidades do entorno.”
Desempregado, sem dinheiro, seu Elias caminhava o dia inteiro em busca do cadáver de Rodrigo e sinais de execução em matos, bueiros, rios, lagos ou qualquer lugar onde sentisse odor de putrefação. Numa dessas caminhadas, ficou sabendo de um ponto de desova num trecho da estrada de Bonsucesso, entre Guarulhos e Itaquaquecetuba.
Era 28 de dezembro de 2001 e chovia muito quando seu Elias entrou no mato. Seus pés afundavam no barro molhado. Escorregou e bateu a mão em alguma coisa fofa, com limo.
Um pouco mais à frente reconheceu um braço, um maxilar, a falange de uma mão e um pé de tênis. Pensou que como o tamanho do tênis era maior do que o filho usava, não era possível que fosse dele. Porém, coincidentemente, voltando para casa encontrou Marcos, outro amigo de Rodrigo. Ao ouvir o relato de Elias, contou que na noite do desaparecimento de seu filho emprestou-lhe o tal tênis. Elias voltou ao matagal com Marcos, que confirmou que aquele era mesmo o calçado que emprestara ao amigo desaparecido há 40 dias.
Também em dezembro, a Corregedoria Militar de Guarulhos abriu um inquérito e ouviu o depoimento dos sete policiais que estavam de plantão naquela noite: cinco soldados, um sargento e um cabo. A versão dada por eles é a de que foram chamados para uma ocorrência de furto de fios da rede elétrica na avenida Miguel Ackel, mas que não houve prisão nem tiros. Já o cabo Leonardo Rodrigues Craveiro afirmou ter visto um “vulto” dentro de um dos carros, corroborando a versão dada pelo amigo de Rodrigo e pela senhora moradora da Vila Isabel.
Dias depois, a Justiça Militar mandou deter os seis policiais: o sargento e os cinco soldados. Enquanto estavam presos foi feita a degravação das fitas do Copom, que indicou que os PMs haviam encontrado os jovens e os perseguido. Sem a prova material do crime, o corpo, os policiais foram soltos. E o cabo Craveiro, com medo das consequências de seu depoimento, pediu transferência para o interior.
Depois de muitas visitas à delegacia de Itaquaquecetuba e ao IML de Suzano, seu Elias encontrou as fotos do corpo de Rodrigo na sede do instituto em Mogi das Cruzes. Conseguiu, via Ministério Público, a exumação do cadáver, mas o exame deu negativo. Com o suporte do promotor Neudival Mascarenhas Filho, de Guarulhos, Elias descobriu que mais seis cadáveres haviam sido enterrados no mesmo dia.
“Pode ter havido troca de corpo”, acredita.
Em novembro de 2002, Mascarenhas Filho reabriu as investigações para apurar não apenas a morte de Rodrigo, como também a de seu irmão, Leandro Isac dos Santos. Egresso da Febem, usuário de drogas e com dívidas, o jovem de 19 anos, foi morto três meses antes do sumiço de Rodrigo.
Em 21 de dezembro de 2005, a Justiça de Guarulhos acolheu a denúncia do promotor Marcelo Alexandre de Oliveira, de homicídio qualificado contra os policiais do 31º Batalhão da Polícia Militar. “Resolvi fazer a denúncia porque estava na cara que eles tinham matado o menino”, afirma o promotor Marcelo Alexandre de Oliveira. Embora o promotor tenha denunciado todos policiais que estavam nas três viaturas, exceto o que afirmou ter visto um vulto em uma delas, e que depois foi atender outra ocorrência, a acusação contra três deles foi descartada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2011. Foram incriminados apenas os dois da viatura na qual Rodrigo foi colocado.
Para seu Elias, a decisão da Justiça, apesar de inédita, não o deixa feliz. “A Justiça me acariciou com uma mão e me esbofeteou com a outra. Porque condenou dois de todos que estavam na mesma ação, inclusive um comandante da companhia”, protesta.
Para ele, os condenados funcionam como “bois de piranha”. Por isso, garante que seguirá lutando: “Como se pode parar numa coisa mal acabada? Minha mente segue, dia e noite, pensando em como prender os responsáveis pela morte do meu filho”.
Procurada, a Polícia Militar não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Carta Capital
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