Deangelis Lacerda¹
Há tempos o Brasil experimenta determinado “fenômeno jurídico” de criação quase que desenfreada de tipos penais das mais variadas espécies. A cada novo “fato social desagradável”, a cada “modificação negativa” do mundo exterior – ou nem isso –, a saga pela criminalização da conduta respectiva se inicia. A mídia², não raras as vezes composta por jornalistas desqualificados do ponto de vista técnico jurídico, contribui de maneira feroz para a potencialização desse fenômeno. A população, por sua vez, caminha pela mesma trilha nebulosa.
O Código Penal brasileiro é datado de 07 de dezembro de 1940. Desde então, inúmeras alterações foram levadas a efeito, a maioria delas como forma de constituir novos tipos penais e/ou agravar reprimendas até então estabelecidas. O fato é que, ao contrário do que pensa a grande massa, a tipificação criminal de “comportamentos sociais não desejáveis”, por si só, não é – e jamais será – suficiente à diminuição de tais condutas. Noutras palavras, criar novos delitos – juridicamente falando – não parece ser a solução para o problema da crescente onda de práticas criminosas no nosso país – ou em qualquer outro.
Embora não sirva como parâmetro ideal, levantamentos feitos pelo Departamento Penitenciário Nacional, ligado ao Ministério da Justiça, apontam que entre os anos de 1990 e 2014, houve um aumento de 575% (quinhentos e setenta e cinco por cento) no número de pessoas custodiadas no Brasil. Em 1990, de acordo com o referido estudo, o contingente carcerário brasileiro era de cerca de 90.000 (noventa mil) pessoas. Em 2014, esse número saltou para mais de 607.000 (seiscentos e sete mil). Enquanto a população desta terra tupiniquim cresceu em média 1,1% (um vírgula um por cento) ao ano desde 2000, a massa carcerária aumentou 7% (sete por cento) ao ano no mesmo período.³
Obviamente, poder-se-ia argumentar que o expressivo crescimento da nossa população carcerária se deu em razão de maior (de)eficiência do poder público (polícias, Ministério Público, Judiciário) no combate ao crime (investigação, processamento, condenação, punição), o que, guardadas as devidas ressalvas, até pode ser uma assertiva verdadeira, embora bastante questionável.
Entretanto – e este é o ponto fulcral –, é fato que o crescimento dessa classe de pessoas encarceradas se dá – não exclusivamente, mas também – em função do aumento de infrações penais cometidas no país durante este período. Isso quer dizer que, ainda que consideradas todas as alterações introduzidas no Código Penal e na legislação penal extravagante (a maioria delas criando tipos penais ou agravando penas outrora estabelecidas), houve – e ainda há – um aumento considerável da criminalidade (leia-se: prática de conduta considerada como ilícito penal), o que nos leva a concluir, indiscutivelmente, que o Direito Penal não é, salvo melhor juízo, o caminho para tempos de paz. É preciso que seja aceita a ideia de que devemos buscar algo melhor do que o Direito Penal. Para tanto, parece-me latente a necessidade de “aprimoramento de diversos setores”, como, por exemplo, melhor distribuição de renda, efetivo acesso aos direitos fundamentais consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil etc. A conclusão é que o modelo de Direito Penal que temos atualmente nem de longe é capaz de extirpar – ou mesmo minorar – a “cadeia criminosa” no Brasil.
O problema é agravado ainda mais quando lançamos à mesa a questão da pena privativa de liberdade, a qual, sem qualquer dúvida, não é suficiente ou capaz de reeducar o infrator ou mesmo de inibir a criminalidade. Reflexo disso são os altíssimos índices de reincidência no Brasil. O custo econômico considerável de um indivíduo preso também é algo que deve ser sopesado.
Ademais, na discussão deste assunto, a hipocrisia deve ser deixada de lado. O “desengessamento” da forma de pensar o Direito Penal é medida que se impõe. Cito, por exemplo, a questão relacionada à comercialização das drogas classificadas como ilícitas.
Mesmo após a edição da Lei 11.343/06, o comércio ilegal de entorpecentes – altamente lucrativo, por sinal –, é uma realidade no Brasil. Penas foram endurecidas (com exceção do caso do usuário [art. 28]), assim como a “caçada” – ainda que midiática – aos narcotraficantes, e, não obstante, todos os dias somos “bombardeados” com informações dando conta dos alarmantes números relacionados à mercancia de substâncias tóxicas em desacordo com a legislação. Com isso, a “cadeia criminal” é movimentada, na medida em que o tráfico de drogas, por vezes, é a mola propulsora para a prática de outras infrações penais, como homicídios, roubos, furtos. E o Estado não se mostra capaz de vencer essa guerra criada por ele mesmo. Será este o melhor caminho? Não está na hora de repensarmos “a questão do tráfico de drogas”?
Enfim, ao que parece, o Direito Penal faliu – ou nunca prosperou. A ideia de que a punição criminal seria o caminho ideal para a resolução do problema da criminalidade, idem. A ressocialização do atingindo pelo Direito Penal não passa de um mito. O que o Estado busca, na verdade, é a “aniquilação do criminoso”, mesmo sabendo que nothing works (nada funciona).
¹ LACERDA, Deangelis. Aluno do programa do Doutorado em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires. Advogado. Professor de Direito da Faculdade Castelo Branco – FCB, Colatina/ES.
² GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização. O sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015, pág. 485: “Ou seja, a mídia passa o que os espectadores querem ver e esses querem ver o espetáculo de „impunidade‟ que ela tem a lhes oferecer, embora a influência daquela sobre eles seja „levemente maior‟ na medida em que, existindo uma cartelização da comunicação (informação) espetacular da „impunidade‟, ficam aqueles limitados a um cardápio combinado (harmonização entre secos e molhados).”
³ http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatoriodepen-versao-web.pdf.
Advogado. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Penal da Faculdade Castelo Branco, Colatina-ES. Aluno do programa de Doutorado em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires - UBA. Especialista em Direito Público pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Autor de artigos científicos, inclusive publicados na coleção "Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano" (v. XII e XV). Criador do ig "@criminalizado" (Instagram).
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