A Lei 12.015/09 modificou radicalmente o universo das incriminações relativas à liberdade sexual. Há várias questões a serem levantadas. Algumas, a serem aplaudidas, como, por exemplo, a referência expressa à "exploração sexual" constante agora de vários tipos (art. 228, 229, 231, 231-A). Os delitos tem por objetividade jurídica a proteção da liberdade sexual, não sendo possível recriminar-se penalmente (moralmente, dependerá de cada um). Daí, imperativo que se trate de vedação da exploração sexual e não da atividade de prostituição.
Infelizmente, inúmeras pessoas são iludidas com propostas de trabalho - ainda que sexuais - no exterior, tornando-se reféns de exploração sexual e manutenção em cárcere privado. Tais comportamentos devem e são rigorosamente punidos, aqui e acolá.
Há alguns dias, falamos sobre a decisão da Suprema Corte acerca das ações diretas de constitucionalidade e de inconstituiconalidade de dispositivos da Lei Maria da Penha.
Um amigo do face me encaminhou resumo do voto de um Ministro (vou aguardar para conferir a correção da informação) em que Sua Excelência ressalvava as ações penais de outros crimes que não aqueles apontados na Lei 9.099/95, para fins da "incondicionalidade" da ação. É dizer: ao não se aplicar as disposições da Lei 9.099/95 (tal como previsto na LMP), não caberia a exigência de representação para a lesão corporal leve ou culposa. Mas, para outras hipóteses, e teriam sido mencionados na decisão, os crimes contra a dignidade e a ameaça, permaneceria a exigência da ação condicionada.
Bem, sabemos que o art. 225, CP, estabelece que tais ações seriam condicionadas à representação, salvo quando menor de 18 ou vulnerável a vítima, caso em que seria incondicionada.
Ora, se o STF afirmou que a lesão corporal leve ou culposa deverá ser objeto de ação penal incondicionada, quando no ambiente doméstico, por que razão haveria que se ressaltar o crime contra a dignidade sexual?
De lembrar-se que o art. 101, CP, ainda válido e vigente, impõe a persecução penal pública (que pode ser incondicionada) para os crimes de configuração típica complexa. Por isso, aliás, havendo o resultado morte ou lesão corporal grave, a ação será sempre pública incondicionada!
O problema: qual teria sido o fundamento da incondicionalidade para a lesão leve e culposa? A norma que afasta a Lei 9.099/95 ou eventual violação a princípio constitucional?
Havendo lesão leve no estupro praticado no âmbito das relações domésticas o crime seria de ação incondicionada?
A questão veio a propósito da recente decisão do STF acerca da obrigatoriedade da ação penal nas lesões leves e culposas no ambiente doméstico.
Uma primeira pista para a resposta repousaria no fato da incidência de nova legislação tratando sobre o assunto, com modificação, pela especialidade, das regras gerais do Código Penal. De fato, a Lei 12.015/09 dispõe serem de ação penal pública condicionada o crime de estupro (e alguns outros), salvo quando praticados contra menor de 18 anos e contra vulnerável.
Nesse passo, poder-se-ia pensar que o legislador seguiria mantendo a preocupação com o sigilo do fato, privilegiando a vontade da vítima para a definição da persecução penal.
Para logo, esclareça-se que o propalado strepitus iudicium (escândalo do processo) jamais seria obstáculo para a publicização da ação: o condicionamento à representação já satisfaria tais exigências.
Tudo isso nos remeteria, então, ao disposto no art. 101, do CP, que ainda regula a ação penal nos crimes complexos (condutas integrantes de um tipo mais amplo e que, por si só, constituem delito autônomo). E também, por oportuno, à antiga Súmula 608 do STF.
Com efeito, é bem de ver que o estupro pode ser realizado mediante violência física ou mediante violência moral (grave ameaça).
Na linha da compreensão da citada Súmula 608, mesmo ao tempo da redação anterior (à Lei 12.015) do CP, seria de ação pública incondicionada o crime de estupro praticado mediante violência física, ao entendimento de que a lesão corporal era perseguida por ação pública e não privada, aplicando, portanto, o art. 101, CP.
E a Suprema Corte prosseguiu assim entendendo mesmo após a Lei 9.099/95 condicionar à representação a ação penal nos casos de lesão corporal leve ou culposa.
Eis a resposta, então, que nos parece mais adequada, também em coerência com às orientações do STF sobre a matéria.
Afastada a aplicação da Lei 9.099/95 ao ambiente de violência doméstica (inexigindo-se, portanto, representação nos casos de lesão corporal leve), pensamos que as ações penais nos crimes de estupro ali praticados serão públicas incondicionadas, sempre que praticados os fatos com violência real, na linha do quanto entendido na velha Súmula 608, no art. 101, CP, e segundo a decisão da Suprema Corte em relação à Lei Maria da Penha.
Não é por outra razão que, embora não haja ressalva no art. 225, CP, será de ação pública incondicionada o estupro do qual resulte morte ou lesão corporal grave.
Com isso, teríamos tratamentos diversos para questões diversas, a saber:
a) nos crimes de estupro praticados com violência moral (e não física), as ações penais seriam condicionadas à representação;
b) nos delitos praticados com violência real (física), com lesões leves, as ações seriam condicionadas à representação;
c) no ambiente doméstico, o crime de estupro seria sempre de ação incondicionada, quando praticado com violência física.
Como se vê, uma última questão ainda insistiria em não se calar: seria possível pensar-se na ação pública incondicionada no estupro praticado contra a mulher, no ambiente doméstico, sem violência física?
O STF, até onde soubemos, parece responder negativamente a questão. Aliás, nem sabemos se aquela Corte fez as distinções e ressalvas que acabamos de fazer (estupro com violência leve, sem representação, por força do art. 101, e a Súmula 608.
Mas, o fato é que, em se tratando de violência moral, do mesmo modo que ocorre com o crime de ameaça, nem o art. 101, CP e nem a Súmula 608 autorizariam o entendimento de que o estupro, em tais condições, seria de ação incondicionada, nos casos de violência moral. Teríamos que buscar outra fundamentação, ao nível constitucional.
Fonte: Eugênio Pacelli
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