quarta-feira, 11 de outubro de 2017

COTIDIANO PENAL: A PROVA TESTEMUNHAL E AS FALSAS MEMÓRIAS




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Experimente colocar o dedo no meio dos quadrados e veja a mudança. Sim, eles são exatamente da mesma cor! Impressionante não?
A ilusão de Cornsweet é uma amostra de outras várias contidas na internet que revelam como nosso cérebro reage a efeitos de luz, forma, cor ou espaço, por exemplo. O órgão mais complexo do corpo não carrega esse título à toa, afinal ele desenvolve técnicas e mecanismos incríveis de adaptação, porém impressionantes “falhas” perceptíveis pelas ilusões de ótica.
Mas o que isso tem a ver com Direito Penal e Processo Penal, Dra. Patrícia? MUITO! Essa semana, no meu cotidiano penal, me deparei com uma situação no tribunal do júri e senti a necessidade dividir com os doutores (é boato a mensagem circulada no whatsapp que Temer revogou decreto imperial que garante o direito de sermos chamados de doutores sem termos concluído um doutorado).
Caso Prático (e resolvi colocar caso análogo para ilustrar afim de preservar a parte envolvida)
Em 2004, a vítima e quatro testemunhas apontaram um serralheiro como culpado por três roubos e um caso de atentado violento ao pudor. Todos o identificaram pelas características físicas: negro, cabelo raspado, lábios grossos e ‘olhar triste’. O serralheiro foi condenado a 14 anos e 8 meses de prisão, ficou preso 21 meses, mas a polícia descobriu que ele era inocente.
(Essas características falam muito na prática do Tribunal do Júri).
Diante do exposto vamos aos seguintes esclarecimentos.
DO VALOR PROBATÓRIO DA PROVA TESTEMUNHAL
A prova tem o dever elementar de corroborar os fatos alegados pela parte de modo que convença o julgador a praticar justiça. Em outras palavras, é buscar a verdade viável dentro daquilo que foi produzido nos autos, sendo classificadas como espécies, dentre outras elencadas no Título VII do Livro I do Código de Processo Penal, o interrogatório do acusado, prova testemunhal e o reconhecimento de pessoas.
Vemos na prática que pouco ou nada vale o interrogatório do acusado. Caso decida silenciar, o “decreto” de “culpado” é antecipado, mesmo existindo um arcabouço de provas atestando categoricamente o contrário, ou seja, na dúvida melhor prender. E cabeça de jurado é uma caixinha de surpresas repleta de “achômetros” (“eu acho que...” – neste quesito vejo estar a maior falha do procedimento brasileiro do Tribunal do Júri, a composição do Conselho de Sentença, a ser objeto de outro artigo).
Segundo o art. 202 do Código de Processo Penal, toda e qualquer pessoa que tenha conhecimento do fato pode ser testemunha. É dever jurídico daquele devidamente intimado e a ausência desmotivada pode implicar em condução coercitiva, multa, pagamento das custas da diligência coercitiva ou ser responsabilizado pelo crime de desobediência (art. 219 e 458 do CPP).
Sobre o valor probatório dessa espécie de prova muito já se discutiu e grande foi a celeuma se o homem traz em si a vocação em dizer a verdade ou não. Essa não é a base desse artigo, mas aproveito pra lhe perguntar: você consegue dizer o que comeu ou como estava vestido sábado pela manhã com riqueza de detalhes? Provavelmente, poucos lembrarão.
Mas deixa eu te dizer uma coisa: duas pessoas tem lembranças diferentes do mesmo acontecimento dependendo da posição que se encontravam na situação, levando em consideração os vários sentidos do homem (olfato, visão, tato e audição) e ainda mais, se a pessoa relatora dos fatos tiver vivido vários momentos parecidos é comum confundir os acontecimentos e fazer um embaralho de cenas.
É o que os psicólogos chamam de falsas memórias, ou seja, informações enviadas ao cérebro através de situações que na verdade nunca ocorreram, mas foram alimentadas por informações de terceiros (falsas) e acabam confiando piamente ter vivido aquela situação. E se isso for compelido a declarar sob pressão ou sob forte emoção? Utilizando de perguntas fechadas ou sugestivas? E se forem interrompidas no meio do depoimento por autoridade judicial (e aqui não importa de juiz, promotor, defensor ou advogado) na frente de várias pessoas com o uso de um microfone? Provavelmente, a resposta será aquela que o interlocutor busca ouvir. Sabe o que é mais interessante dessa pesquisa? A falha é inconsciente e a testemunha acredita ter realizado um ótimo trabalho.
É alarmante o número de presos cumprindo pena por crimes que não cometeram com base, exclusivamente, em provas testemunhais. E o perfil assemelhado ao caso apresentado retrata quanto o Brasil carrega no solo dessa amada pátria vastos campos discriminatórios. Tem muita gente inocente pagando alto preço por conduta alheia.
ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO
Recém criada no Brasil em parceria com o Innocence Project EUA e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), em dezembro de 2016, “o Innocence Project Brasil é a primeira organização brasileira voltada especificamente a enfrentar e reverter as condenações de réus inocentes no país.”
O projeto obteve resultados incríveis e me deixou mais apaixonada pela advocacia criminal. Foram mais de 349 pessoas contempladas pelas Ações de Exoneração (assim chamadas nos EUA), muitas delas condenadas a pena de prisão perpétua ou aguardando serem executadas por pena de morte. Dentre outros objetivos, o Innocence Project Brasil visa “fomentar mudanças legislativas e estruturais para prevenir a condenação de inocentes e aprimorar os mecanismos de investigação no processo penal.”
Dentre os dados levantados nos EUA foram identificados como principais causas de erro judiciário o mau uso das perícias, a má conduta dos agentes de Estado, a defesa inadequada, as falsas confissões, os erros de reconhecimento por testemunhas e os depoimentos falsos prestados por informantes em troca de benefícios ou para que a justiça seja feita de alguma forma, mesmo que condenando um inocente. Estamos falando de meios de obtenção de prova dos EUA, tá?!
APRESENTANDO SOLUÇÕES
Para o judiciário, aponto ser edificante e de fácil execução a utilização de entrevista cognitiva a ser realizada por um entrevistador capacitado a elaborar questionamentos capazes de reconstruir o contexto do momento do crime, despoluindo a memória através de técnicas próprias, como o uso da ordem inversa da lembrança, a mudança de perspectiva, por exemplo.
Como advogado, use dos mecanismos que lhe cabem (já falei aqui da plenitude de defesa) para a fiel defesa do seu cliente, não aceite que juiz ou promotor interrompa descabidamente ou induza seu cliente a responder sob forte pressão, se utilizando de insinuações ou conclusões descabidas. Caso haja arbitrariedade, peça para consignar na ata de julgamento do tribunal do júri, p. ex., o desprezo daquela prova e lute por nossas prerrogativas!

¹ http://gcn.net.br/noticias/2137/franca/2006/04/serralheir0-livre-ap-0acutes-d0is-an0s-pres0-p0r-engan0-2137
² https://www.youtube.com/watch?v=ao0TVODH_iE







Por Patrícia Pestana de Azevedo.
Advogada



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